Diz-se que a melhor maneira de contar uma história é começar in media res. Do meio se compõe a tessitura dos acontecimentos, que se vão revelando, camada após camada, com fios entrecruzados, até se ver surgir o tecido completo de uma vida.
A história do economista de sucesso que abandonou tudo, o conforto, o dinheiro, a convivência prolongada com a família, para se dedicar à fotografia também pode iniciar-se nessa mina de ouro com que se abre o documentário O Sal da Terra, realizado por Wim Wenders e pelo filho do fotógrafo, Juliano Salgado. Wenders, que sempre teve uma fotografia de Salgado à secretária (o retrato de uma mulher cega, que mesmo assim nos fita com olhos de não ver), comprara, anos antes, uma cópia da imagem dos homens transformados, eles próprios, em terra, «pareciam esculpidos em barro», no fundo de uma mina a céu aberto. É que estas fotos de «homens-terra», formigueiro de gente, silhuetas ocre que sobem e descem em carreiros a acarretar torrões, em composições miniaturais, e ao mesmo tempo demoníacas, à Hieronymus Bosch, têm já qualquer coisa de genesíaco. De inicial. Apesar de a carreira de Sebastião Salgado, nessa fase, ainda só ir a meio (entre 1986 e 1992 percorreu 26 países para a sua série O Trabalho). Quando Salgado, nos anos 80, se aproximou da boca desta mina de ouro no Brasil, na Serra Pelada, no Pará, uma cratera maior do que um estádio de futebol, e ouviu todo aquele rumorejar de 50 mil vozes humanas, vindas das entranhas, a 70 metros de profundidade, e os ruídos secos das pás e picaretas, sem qualquer motor mecânico, teve esta mesma sensação de génese: viu, numa fração de segundo, conta no filme, a história do mundo, a construção das pirâmides, da Torre de Babel, as Minas do Rei Salomão.

Lentidão
Mas estava muito longe de bater no fundo. Ali, «o gringo» (à época de barba e cabelo ruivo, impossível passar despercebido) viveu durante semanas com os mineiros. Sem mulheres num raio de 50 quilómetros, e uma violência latente. O trabalho era penoso, mas não eram escravos: «A não ser, talvez, da sua própria vontade de enriquecer», comentou a Isabelle Francq, no livro Da Minha Terra à Terra (lançado em Portugal em 2014, na editora Individual). Aliás, nesta mesma série dedicada ao trabalho, focada na produção em grande escala, em que procurou traçar «uma arqueologia visual» do que ainda restava da era industrial, de todos os trabalhos que testemunhou, em todos os continentes -desde a tecelagem no Bangladesh aos infernais po- ços petrolíferos em chamas no Koweit, o trabalho que mais o chocou encontrou-o nos EUA, num matadouro no Dakota, onde eram abatidos mil porcos por hora e duas mil vacas por dia: «Os trabalhadores repetiam incansavelmente o mesmo gesto sangrento, em salas sem janelas. O odor era insuportável. No primeiro dia, foi impossível tirar uma única fotografia, não parava de vomitar».
Mas para perceber como Sebastião Salgado conseguiu chegar até às profundezas mais tenebrosas do planeta é preciso ir encontrá-lo menino, na fazenda dos pais, situada em Minas Gerais, num vale tão grande que cobria a dimensão de Portugal. Aí, o único rapaz de sete irmãs teve o seu primeiro ensinamento: o da luz e o da sombra. Tem a sensação de ter crescido com a contraluz, as palas dos chapéus, as sombras das árvores onde o colocavam para proteger a pele branca: «Nessa altura não havia protectores solares». «Essa luz, esses espaços são a minha história». A segunda lição foi a do espaço aberto: nadava em riachos cheios de jacarés, galopava a cavalo, saía de manhã e só regressava à noite, percorria sozinho distâncias equivalentes às de Paris a Lisboa. Só para transportar os animais da quinta ao matadouro, ele e o pai levavam mais de um mês, era comum para ele fazer 50 dias de estrada; habituou-se às transumâncias, e sobretudo à lentidão, ao tempo de espera para conversar e admirar a paisagem (terceira lição): «Essa lentidão é a mesma da fotografia». E acrescenta: «Se não se gosta de esperar, não se pode ser fotógrafo. É preciso descobrir o prazer da paciência». Com os homens, o tempo de chegar, de se apresentar, conversar, conhecer as pessoas, até se tornar parte da paisagem. Mas também os animais, conta, neste último seu projeto Génesis, em que, ao longo de oito anos, viajou pelos lugares ainda preservados do planeta. Até aqui só tinha fotografado uma única espécie: os humanos. Quando passou a fotografar animais, percebeu que era também essencial um pacto de respeito mútuo. No filme, vê-se a espera de Salgado, no Ártico, numa espécie de contentor de vigia, a aguardar que um urso branco lhe permita a passagem para uma comunidade de morsas. Ou, relata nesse livro, a vez em que levou um dia para se aproximar, nos Galápagos, de uma ancestral tartaruga de 200 quilos, que, quem sabe, até se cruzou com o próprio Darwin, na viagem do navio Beagle… De cada vez que se aproximava da tartaruga, ela afastava-se, não conseguia fotografá-la. Fez como com os humanos, nunca chegar de surpresa, ou incógnito; teria de travar também conhecimento com o monumental réptil: «Fiquei agachado e comecei a andar à mesma altura que ela, mãos e joelhos no chão. A tartaruga parou de fugir. Quando se deteve, fiz um movimento para trás, ela avançou na minha direção e dei eu mais uns passos atrás» o tempo necessário «para a fazer entender que respeitava o seu território». Em Génesis (ver caixa), Salgado não se comportou como zoólogo ou jornalista. Queria homenagear o planeta, constatar que, apesar de tudo, ele ainda está vivo. E a ideia surgiu após décadas a fotografar a crueldade e a loucura feroz mais extrema da humanidade, as catástrofes desnaturais, os 150 quilómetros de mortos no Ruanda, os campos de refugiados e fome em África, as atrocidades inimagináveis nos Balcãs. Voltou doente, nunca acreditou que pudesse reaparecer tanto ódio étnico e tamanha brutalidade na Europa, depois dos massacres e genocídios que presenciou em África.

Regressou à terra. Há sempre um regresso à terra. À sua terra de infância, onde dantes havia mata Atlântica que cobria metade do vale (o tal que era do tamanho de Portugal). A desflorestação descontrolada tornou-a feia, pobre, desolada. Ele e Lélia, sua mulher e sócia de sempre, criaram o Instituto Terra, projeto ambiental para repor o ecossistema, já com dois milhões de árvores plantadas. Foi daí que partiu a ideia de fotografar árvores, seixos, aves, os olhos dos gorilas, a mão de uma iguana como a de um soldado numa armadura medieval, as rugas de uma tartaruga do tempo de Darwin. Quase como se, ao fazer este outro trilho no seu percurso de fotógrafo, precisasse de uma desintoxicação, de uma limpeza por dentro. Encher-se de beleza, esperança e confiança depois de ter testemunhado tanta agrura, carência de quase tudo, mas também muita dignidade em sítios e circunstâncias onde ela se julgara impossível.
Uma forma de escrita universal
Desde muito cedo, enquanto estudante de Direito (depois acabou por se doutorar em Economia), apercebeu-se de que o mundo está dividido em dois: «De um lado a liberdade para aqueles que têm tudo e do outro uma privação de tudo para aqueles que não têm nada».
A aproximação à «fotografia social» aconteceu-lhe como um prolongamento do seu envolvimento político e das suas origens. O que os escritores relatam com a caneta, ele retrata com as câmaras. Para ele, a fotografia é uma forma de escrita, talvez a mais universal, como a utopia do esperanto concretizada. Com a vantagem de poder ser lida em qualquer lado, sem tradução. O preto e branco é uma abstração, irreal: trata-se de reconstituir as suas emoções através das várias gamas de cinzento. Frações de segundo que contam a história de uma vida ou de um povo. «É uma paixão, porque amo a luz, mas também uma linguagem poderosíssima. Quando comecei, não tinha limites. Queria ir a todos os locais onde a minha curiosidade me levasse, onde a beleza me comovesse. Mas também a todos os locais onde houvesse injustiça social, para a descrever melhor».
O mais incrível é que um dos mais célebres e premiados fotógrafos do mundo pegou numa máquina fotográfica quase por acaso, e já adulto e casado. O pai queria-o fazendeiro ou estudante de Direito.
Ingressou em Direito, acabou por terminar Economia. Eram os tempos do presidente Kubitschek, «o Brasil começava a despertar de um sono de 400 anos, tivemos a sensação de viver num país novo», e in teressava-lhe não a economia empresarial, mas a macroeconomia e as finanças públicas. O menino do interior vivia agora em São Paulo, onde integrava um grupo restrito de formação de altos quadros para fazer face às necessidades do país. Doutorou-se em Paris, já exilado, em fuga da ditadura militar pela sua militância ativista muito próxima dos partidos comunistas e de esquerda. Em Londres, arranjou um cargo internacional na Organização Internacional do Café. Começou a ganhar muito bem, o casal comprou um apartamento perto de Hyde Park, um magnífico carro desportivo. O trabalho de economista levava-o a África. Vinha de lá muito mais satisfeito com as suas fotografias do que com os relatórios económicos. Em África reencontrou-se com o Brasil que lhe estava interdito, e aos 29 anos desistiu da sua promissora carreira para se dedicar ao instável mundo da fotografia independente.

A importância de regressar
Quando pegou pela primeira vez numa câmara, comprada pela mulher, estudante de arquitetura, teve de ler o manual de instruções para perceber como funcionava. O casal largou o apartamento, o carro, o salário e partiu para a zona do Níger, para as regiões onde as organizações internacionais combatiam a seca e a fome. Lélia estava grávida do primeiro de dois filhos Juliano, o corealizador do documentário. Foi duro, passaram por situações complicadas, «mas apaixonante, sentíamos que as nossas imagens podiam ser úteis». Ao fim de 40 incursões a África, em 30 anos, publicou o livro África (2007). Não lhe interessavam as paisagens, muito menos o foclore. Mas a fome, as migrações em massa. Sempre numa lógica de trabalho de longo prazo, em vez de saltitar de um tema para o outro. «A única forma de contar histórias é regressar ao mesmo local diversas vezes». Só os meses que passava com as pessoas, os percursos que palmilhava com elas, as noites em que dormia nos campos de refugiados, ou o acompanhamento a tempo inteiro do Movimento dos Sem Terra, davam coerência aos seus projetos. E é assim que procede há mais de 40 anos. Chegou a estar 18 meses no Mali, na Etiópia, no Chade, no Sudão. E as suas fotos são esmagadoras quando mostram vultos errantes nos campos onde se amontoavam 80 mil desterrados, ou a famosa imagem dos três bebés famélicos, envoltos, em que apenas pelos olhos opacos de um deles se pressente a morte. Os sete anos em que viajou pela América Latina parecem-lhe sete séculos: «Permitiu-me viajar através de culturas onde o tempo se desenrola ao ritmo do passado».
Por todo o seu percurso, por ter assistido de muito perto às gritantes injustiças sociais, por ter sido, também ele, um perseguido e exilado político, sente uma enorme alegria ao ver que os outrora torturados e presos, como Lula ou Dilma, estão agora no poder. Não se considera fotojornalista, nem ao serviço de uma militância. Rejeita a ideia de voyeurismo, apenas tem consciência do desequilíbrio mundial. «Todas as minhas fotos correspondem a momentos que vivi intensamente. Uma raiva dentro de mim levou-me àqueles locais». E não prega a objetividade: «Fotografo em função de mim mesmo e assumo-o». Geralmente fotografa as pessoas de frente, ninguém se furta às suas objetivas e tacitamente autorizam. Parte do seu trabalho prévio é dedicado a conhecer e falar com as gentes. «Nenhuma foto, por si só, pode mudar seja o que for na pobreza do mundo», admite no livro Da Minha Terra à Terra. Mas aliadas a textos e à ação das organizações humanitárias e ambientalistas, engrossa-se o vasto movimento de denúncia.