Comecemos por uma pequena declaração de conflito de interesses: sou contra a eventual utilização obrigatória da Stayaway Covid, pois não faz sentido forçar a utilização de uma ferramenta de baixa eficácia (isso e muitas outras implicações gravíssimas que tal hipótese traria); e, justamente, sempre duvidei da própria eficácia do sistema, por depender de demasiados elementos, que, por sua vez, dependem demasiado da ação do utilizador final (é preciso ter um telemóvel compatível, é preciso instalar a aplicação, é preciso ligar o Bluetooth, é preciso ter o Bluetooth a funcionar nos momentos que efetivamente importam, é preciso que a bateria aguente o Bluetooth, é preciso que os outros à nossa volta também usem a app, é preciso que os outros a usem e de forma correta, é preciso que os médicos forneçam o código aos infetados, é preciso que os infetados introduzam o código ao mesmo tempo que precisam de cumprir tudo aquilo que já aqui dissemos… Está a perceber por que motivo é pouco eficaz?).
Mas tenho pensado cá com os meus botões que a Stayaway Covid já nos fez a todos um grande favor: colocou-nos, enquanto sociedade, a discutir assuntos de grande importância numa era cada vez mais digital. Nunca tinha visto tanta discussão e debate por causa de uma aplicação. Nunca vi um leque tão variado de pessoas – políticos, advogados, constitucionalistas, jornalistas, programadores, investigadores de segurança, perfeitos anónimos – a defender e a pontapear, em quantidades proporcionais, uma aplicação. Nunca vi tantas pessoas preocupadas com dados pessoais, com o conceito de privacidade, com os fundamentos técnicos de uma app, com os limites do que é aceitável em troca de uma promessa de bem geral e, acima de tudo, nunca vi tantas pessoas assustadas com a potencial ideia de invasão do seu espaço digital – o que por si só diz muito deste debate.
E isto não é obrigatoriamente mau – bem pelo contrário. Penso que todos saímos a ganhar, todos saímos mais fortes, todos saímos mais conscientes, desta troca de ideias. Mesmo que a Stayaway Covid não esteja a gerar o número de alertas de contacto que muitos esperariam, gerou um alerta de consciência que, na minha opinião, também tem um grande valor.
Há, no entanto, um dano colateral a lamentar de toda esta situação: foi um exemplo claro de que muitas pessoas confundem de forma demasiado fácil conceitos como privacidade, segurança, partilha de dados, autoritarismo, monitorização e capitalismo digital. Do ponto de vista da privacidade, a Stayaway Covid é quase irrepreensível. Do ponto de vista da segurança, há efetivamente cenários nos quais pode trazer uma exposição acrescida para os utilizadores, mas são difíceis de explorar. E a partilha de dados é quase toda ela feita de forma anonimizada. Nós, meios de comunicação, falhamos por não termos conseguido explicar isto de forma simplificada. Mas falhou também o Governo, que lançou uma aplicação que depende de muitos ‘ses’ sem fazer um grande esforço para ensinar a população em tornar a app da discórdia num sistema de maior eficácia no controlo da pandemia. Porque sejamos sinceros, muitos portugueses querem esta aplicação – já foram feitos mais de 2,5 milhões de downloads – e aos muitos que não a querem não é pela obrigatoriedade que se lá vai, é com uma aposta na discussão dos prós e contras da sua utilização que estes poderão tomar uma decisão em consciência e não por impulso, por falta de conhecimento ou só porque se é do contra.
E se pensa que toda a discussão gerada em torno da Stayaway Covid tão cedo não se volta a repetir, permita-me partilhar uma opinião diferente: à medida que cada vez mais aspetos da nossa vida são e dependem do mundo digital, à medida que o mundo avança para situações de grande emergência (hoje a pandemia, amanhã as alterações climáticas, no dia seguinte a falta de água, logo seguido das grandes migrações, da falta de comida, de futuras pandemias ainda mais agressivas e por aí fora…), quer queiramos, quer não, vamos ter de discutir cada vez mais os limites da privacidade, da segurança e do que estamos dispostos a dar em troca para que nada de mal nos aconteça. E podemos partir de um princípio básico: é da natureza humana querer saber sempre mais sobre os outros, seja a vizinha do quinto esquerdo, uma empresa bem ou mal intencionada, ou até o próprio Governo.
É por isso que sou da opinião que estamos todos a dever um grande obrigado – sim, essa palavra que para algumas pessoas é difícil de articular, seja em que situação for – à Stayaway Covid. Fez-nos discutir, fez-nos conhecer pontos de vista diferentes, fez-nos mais preparados para debates aos quais, por muito que não queiramos, e por muito com os quais não possamos concordar – mas ainda temos esse direito! – não vamos escapar, e deixa-nos mais preparados para o incrível e aterrador futuro que nos espera.