Em 19 anos, 11 meses e 12 dias, consegui trocar a Torre dos Clérigos com o edifício da Câmara Municipal do Porto, cheguei a escrever silicone em vez de silício, nomeei uma praia na Ilha das Flores que, aparentemente, era de outra ilha qualquer, confundi o administrador da Nintendo com um japonês em passeio domingueiro, disse que a Guerra dos Tronos passava no Netflix, troquei o nome a meia dúzia de entrevistados e publiquei muitas, mas mesmo muitas gralhas. Felizmente, nenhuma destas ocorrências foi suficiente para mudar o curso da História – mas em todos os casos fiz questão de demonstrar a minha disponibilidade para corrigir o que errei. O facto de não ser o melhor jornalista do mundo nunca me impediu de tentar ser honesto com os leitores – e comigo. Até porque vim para o jornalismo como um ato de cidadania – e por sinal consegui garantir um salário.
Olhando para trás, não vejo nenhum pullitzer ou ato heróico, mas permitam-me a imodéstia se disser que nunca regateei esforços para ficar a saber um pouco mais do que sabia antes de escrever um texto. Poderia dar exemplos, mas não vos vou maçar com exercícios de vaidade – até porque não fiz mais que a minha obrigação, enquanto profissional da informação.
Quando entrei na Faculdade, nunca pensei escrever sobre tecnologias ou ciência; e quando surgiu a oportunidade de ir para a Exame Informática tinha tudo para ser um fracasso. Além do perfil de espalha-brasas permanentemente insatisfeito, nunca vi mais de 10 minutos do Star Trek; assisti a uns quantos episódios da Guerra das Estrelas, mas nunca percebi bem por que é que o Indiana Jones aceitou participar sem chapéu; os meus conhecimentos de informática eram tão básicos que fiquei feliz pela vida ao descobrir o control+z; comecei por achar que o Linux poderia ser uma louvável reencarnação dos Índios e demorei a compreender que a Apache usa, de forma abusiva, o nome de um povo como marca comercial (tal como a Amazon, dizem os brasileiros – e eu compreendo-os); e nunca percebi bem o fanatismo em torno da Apple – e continuo a não perceber, apesar de admitir que tenha bons produtos como qualquer outra marca e de, ao longo dos anos, ter aprendido a admirar coisas que não compreendo.
Se alguém ainda tem dúvidas, aqui fica a confissão: sou um tecnofrugal. Uso as tecnologias com uma boa dose de nabice e, por uma questão de princípio, só recorro a gadgets, eletrodomésticos ou aplicações quando não é possível fazer algo de forma mais cómoda, ágil ou barata pela via analógica. Pode parecer um absurdo numa revista de tecnologias, mas não duvido que essa resistência à novidade e ao marketing foi a maior das mais-valias que pude dar à nossa EI. Até porque nunca deixei de tentar de perceber tendências e conceitos. Apenas não tomo, logo à partida, uma inovação por boa só porque a maioria das pessoas começou a usá-la, ou porque figura num anúncio feito à medida dos sonhos americano ou chinês.
Por muito que a tecnologia evolua, a vida humana será sempre insubstituível – e se esse princípio não for respeitado, então teremos alcançado o zénite da inutilidade durante a passagem por este planeta. Metaforicamente falando e sem querer ofender a fé de quem a tem, os humanos têm o direito a escolher-se como substitutos históricos de Deus, mas algo me diz que ficarão muito aquém do Criador se encontrarem mesmo forma de serem irremediavelmente substituídos pelas suas criações.
O tema presta-se a uma breve recordação das palavras de John Casti numa entrevista que fiz em 2012, tendo por pano de fundo a edição do livro “Acontecimentos extremos – 11 cenários para uma catástrofe” e uma previsão que apontava para um mundo governado por Inteligência Artificial e Internet, com o apoio de robôs, já no final deste século.
“Estes computadores não vão acabar com os humanos. Podemos ter uma relação com esse tipo de inteligência similar à que os insetos têm connosco: os insetos também nos prestam serviços úteis… Não temos de achar que isso será mau obrigatoriamente, porque se calhar nem vamos ter noção disso, do mesmo modo que os insetos não têm noção daquilo que fazemos”, lembrou Casti nessa entrevista.
Haverá quem pense que a previsão pessimista foi desenhada à medida das vendas de livros, mas tendo em conta que boa parte das cotações de Wall Street já variam consoante os investimentos ditados por Inteligência Artificial; que desde a década passada que há drones que eliminam inimigos do outro lado do mundo; que todas as vacinas hoje produzidas são feitas por simulações em supercomputadores; que, em breve, os carros autónomos acabarão por se banalizar; que já há contas de Instagram que geram chorudas quantias devido a bots e há governos eleitos devido a campanhas virais no Facebook; sou levado a crer que o dia em que a Humanidade terá apenas uma função decorativa para as máquinas possa não ser apenas uma possibilidade teórica.
Não tenho dúvidas de que caberá à tecnologia salvar a Humanidade (e o ecossistema) do aquecimento global, da sobrepopulação, da pressão alimentar, da escassez energética, da poluição crescente e até da queda de um meteorito ou de uma erupção em Yellowstone. Mas essa certeza não serve de justificação para passarmos a viver numa tecnoditadura ou aceitarmos impávidos e inertes uma ciberdemocracia em que manda quem tiver os melhores algoritmos para controlar a opinião pública – mesmo que seja para negar a ciência e dizer que a Terra é plana.
Não, isto não é aceitável para a minha pessoa: a tecnologia serve para melhorar a vida – e não para substituir a vida. Os videojogos divertem-me durante horas seguidas, mas não substituem uma tarde de futebol à chuva; as redes sociais ajudam a descobrir pessoas interessantes, mas não se comparam ao bater do coração quando olhamos alguém nos olhos; o software de gestão é indispensável para apresentar indicadores financeiros para a tomada de decisão, mas nunca compreenderá o que sente uma colega grávida no final do dia – nem eu sei bem ao certo, quanto mais um computador?
Apesar da frugalidade tecnológica, hoje, sou um homem e um jornalista bem diferente do que era em julho de 2000 – e houve mesmo coisas que nunca mudaram nestes anos todos: nunca quebrei o sigilo das fontes; nunca me armei em chico esperto a publicar informação com ares de exclusivo, sem referir que vinha de um comunicado; e tentei citar sempre todos os órgãos de comunicação social nessa usura que faz parte da profissão e que nos leva a reescrever notícias dos outros – mas que sempre me espicaçou na procura de notícias em primeira-mão para ser compensado em vaidade pelas citações alheias e dar retribuição a todos aqueles que sempre citei, e faço questão de citar. Nem que seja porque há jornalistas que morrem em missão, e outros que se limitam a levantar o telemóvel para sacar uma notícia fidedigna e estrondosa. E ambos são legítimos representantes da profissão e merecem respeito pelo trabalho que tiveram.
Escrito isto, meus caros amigos e leitores, quero dizer com toda a solenidade: mesmo sem me ter em grande conta, houve tempos em que me senti no topo do mundo, pois estava numa revista que chegou a antecipar, umas quantas vezes, notícias que os “grandes” jornais davam dias depois – e que, entre o final da década passada e a atualidade, conseguiu gerar quatro produtos editoriais que ainda perduram, sem deixar de gerar conteúdos para outras revistas e de organizar uma ou outra conferência – com uma redação de quatro jornalistas e um designer gráfico.
Talvez possa parecer exagero ou vistas curtas, mas não conheço nenhum outro título de imprensa que tenha feito o mesmo na Europa.
Agora, chegou a hora de seguir outro caminho e agradecer à Exame Informática – mais que não seja porque, se tivermos em conta apenas as horas de vigília ao longo do dia, devo ter passado mais tempo com os membros da redação do que com a minha família. E se isso não lhes vale medalha ou comenda, merece pelo menos o reconhecimento público.
Começo por lembrar a Isabel Infante, o Márcio Florindo, o Paulo Vasco Silva, o Ricardo Fortunato, o Paul Taylor, o Pedro Melim, o João Santos Pereira, o Filipe Pombo, o Sérgio Azenha, a Ana Pereira Martins, a Eugénia Borges, o Dilpesh Laxmidas e o Pedro Carinhas, que já não trabalham com a EI – e obviamente não esqueço os que ficam: o cineasta de poucas palavras que dá pelo nome de Élio Martins; esse gerador de talento com pernas que é o Rui da Rocha Ferreira; o Paulo Matos, um exemplo de discrição que faz com competência muitas coisas que eu não sei fazer; o Sérgio Magno, que sempre me deu assessoria técnica crucial para muitos textos que escrevi; e o Hugo Filipe, o homem com mais anos de EI (eu era o segundo), que é o tambor desta galera e que, sempre que necessário, faz lembrar que o todo tem de ser sempre maior que a soma das partes – porque nós somos Exame Informática.
E porque é da Exame Informática que ainda posso falar com propriedade, aqui vai a menção final: o Pedro Oliveira, um senhor que, durante 18 anos, pôs este realejo a dar um tom único no panorama nacional e com quem quase nunca estive de acordo nas coisas que distinguem os gostos pessoais, mas que sempre me providenciou os dois ingredientes mais importantes do jornalismo: liberdade e credibilidade.
Aproveito ainda para endereçar o meu reconhecimento à Trust in News, que sempre me tratou como um jornalista deve ser tratado – e o mesmo poderei dizer da Impresa, que deteve a EI até 2018.
A todos os meus leitores, o meu agradecimento por terem aceitado ler-me em vez de fazerem qualquer outra coisa. Mesmo que não tenham ido além de um título de notícia, para mim foi uma honra – até porque, nalguns casos, como já admiti aqui, os texros tiham grealhas.