
A poesia não necessita de humanos. Nem sequer de alma, humor ou emoção. Bits, bytes e um pouco de inteligência artificial chegam para as primeiras estrofes. E mesmo quando estes bits e bytes não têm propósitos de arte, como é o caso de um do projeto levado a cabo pela Google e as universidades de Stanford e Massachusetts, há uma lírica que prevalece. Quem duvida que tente ler o seguinte texto em inglês:
«there is no one else in the world.
there is no one else in sight.
they were the only ones who mattered.
they were the only ones left.
he had to be with me. she had to be with him.
I had to do this. i wanted to kill him.
I started to cry.
I turned to him.»
(Tradução possível:
«Não há ninguém neste mundo.
Não há ninguém à vista.
Eles eram as únicas pessoas que realmente importavam.
Eles foram os únicos que restaram.
Ele tinha de estar comigo. Ela tinha de estar com ele.
Eu tinha de fazer isto. Eu queria matá-lo.
Comecei a chorar.
Virei-me para ele.»)
O texto foi escrito por uma plataforma de inteligência artificial, que dificilmente terá sofrido alguma vez com um triângulo amoroso ou tentado vingar-se de um opositor, mas pode ser facilmente classificado como um poema – pelo menos, é o que a Google e o próprio The Guardian, ambas empresas insuspeitas quanto ao domínio do inglês, admitem como possibilidade de interpretação literária para estes textos.
De acordo com o diário britânico, os investigadores da Google das universidades norte-americanas até nem tinham como propósito inicial criar um poeta eletrónico – mas foi isso que acabaram por produzir ao testarem a capacidade de geração de textos da plataforma, dando apenas a conhecer uma frase inicial e uma frase final (no poema acima publicado, são as frases que estão a negrito), que o software tinha de ligar, criando um sentido lógico.
A produção dos textos teve por base uma técnica computacional conhecida por Modelo de Linguagem de Rede Neuronal Recorrente (MLRNR), mas o efeito dramático dos versos terá advindo da “leitura” de centenas de romances.
A qualidade dos poemas poderá não ser homogénea – mas os investigadores garantem, num artigo científico, terem alcançado pelo menos uma das metas deste trabalho: a produção de textos que fazem sentido, e que estão gramaticalmente corretos. O que poderá ser especialmente útil para o desenvolvimento de aplicações capazes de manter diálogos com humanos.
A Google admitiu que criou um poeta acidental, mas em Portugal há quem já tenha criado software propositadamente para a escrita de poemas: PoeTryMe, um projeto de Hugo Gonçalo Oliveira, do Departamento de Engenharia Informática da Universidade de Coimbra, tem vindo a evoluir na escrita de poesia automática desde 2014 – e não só escreve em português, como em castelhano e também em inglês – e nesta última variante não parece ficar atrás dos poemas escritos pelo software da Google no que toca ao impacto dramático.
Do ponto de vista tecnológico, o investigador português também parece ter conseguido ser bem mais ousado que os congéneres dos EUA: PoeTryMe permite que qualquer pessoa defina temas, métricas e estilos para a geração de poemas – o que, eventualmente, até poderá revelar-se útil (apesar do elevado grau de incerteza) para quem precisa de pedir emprestada uma estrofe de última hora.
Os poemas escritos em português pelo PoeTryMe , apesar dos gostos pessoais nem sempre serem consensuais, podem ser encarados como pertencentes a um estilo apócrifo, que é difícil de classificar:
«há sempre uma inventriz autora
e tratada mais tisiologia
suinicultora de grande criadora
de entendimento à categoria
tão genesíacos tão criadores
de que máquinas de que geradores
a fazer modos e actividades
motricidades ruas e faculdades
os artísticos gostos que inflama
afectada e tocada sou eu
as peças dos dous rios cuja mola
por mais capacidade que bitola
livros carrinhos nobiliarquias
pasmei na arte das ortopedias»
Em inglês, é possível usar a ferramenta criada na Universidade de Coimbra para obter resultados curiosos através de um exercício que leva os algoritmos a gerar um poema seguindo a estrutura musical que foi extraída da cantilena infantil “Papagaio Louro”
«this classical diamond was extra Hellenic
you’re the Polynesia in my Oceania
and the inspiration followed respiration
fall asleep against the mercy ministration»
(Uma das traduções possíveis:
«Este diamante clássico era extra-helénico
Tu és a Polinésia na minha Oceânia
E a inspiração que se segue à respiração
Cai no sono contra o serviço de um perdão»)