Gerd Leonhard, ex-estudante de filosofia, ex-guitarrista de Jazz, ex-empreendedor quase falido pelos desvarios das dot.com, regressa a Portugal no final de janeiro como um dos nomes de cartaz das conferências Building the Future: Ativar Portugal (29 e 30 de janeiro, em Lisboa). Ao telefone, num pequeno momento vago entre as viagens que hoje lhe preenchem a agenda, lembrou que o futuro não se faz só de matemática e engenharias e cada vez mais a filosofia e a arte são necessárias para recentrar as tecnologias enquanto meros meios criados para chegar a um objetivo maior. «Não é apenas privacidade e a proteção de dados – é a própria humanidade que está em risco! O facto de as máquinas já fazerem quase tudo leva-nos a crer que as máquinas sabem de tudo melhor que nós», alerta.
Começou por estudar teologia, depois música e agora é empreendedor e futurólogo… Foi apenas uma questão de sucesso profissional que o levou a mudar de vida?
Fui estudante de filosofia e teologia, quando era ainda muito jovem, e estive a par do que se passava na música. E estudei na (escola de Jazz de) Berklee, em Boston, quando tinha cerca de 26 anos. Tornei-me guitarrista e fui músico durante 15 anos… até que em meados dos anos 1990, com um amigo meu que era empreendedor na área da Internet, enveredei pela distribuição de música digital, numa coisa do género do Spotify, mas era cedo de mais para esse tipo de projeto. Tornei-me empreendedor na área dos média digital na Internet e depois disso… quase toda a gente foi à falência em 2001 (com a crise bolsista das dot.com). E aí escrevi o meu primeiro livro sobre o futuro da música, que se tornou um campeão de vendas, foi traduzido para 14 línguas e estava à venda em todo o lado. Assim me tornei um futurista. As pessoas diziam que era um futurista e pediam-me para lhes contar o que é o futuro. Basicamente, foi isso que aconteceu… e depois criei a Futures Agency com mais 47 futuristas!
Tendo em conta o estudo da filosofia, há que perguntar: será que a humanidade está a criar um novo tipo de Deus ou, pelo menos, uma entidade omnipresente, com todas as tecnologias de cloud computing e Inteligência Artificial (IA) que vemos por aí a proliferar?
A tecnologia é uma nova religião – mas as empresas de tecnologias são mais poderosas que a Igreja… e também podem ser mais poderosas que as produtoras de petróleo. As empresas de Internet, os motores de pesquisa e as redes sociais têm o poder! Toda a gente os ouve, como acontecia no passado com a religião. Na verdade, as empresas de tecnologias são aquelas que nos estão a contar histórias que vão fazer parte do futuro. Não são os políticos ou os governos – mas sim as empresas de tecnologias que nos estão a mostrar o futuro.
Mas eventualmente, essas empresas não terão as mesmas preocupações, objetivos ou até princípios que distinguem as religiões!
Não sou religioso – sou mesmo um ateu. Não vejo qualquer valor acrescentado nas grandes religiões que hoje têm estatuto oficial; é algo que hoje, eventualmente, até poderemos já nem precisar. Por outro lado, a tecnologia não pode ser encarada como uma religião. As pessoas são mais importantes que as ferramentas; mas a tecnologia tornou-se tão poderosa que as pessoas pensam que o uso das tecnologias é um objetivo de vida. Temos de garantir que as pessoas percebem que o uso das tecnologias tem por objetivo alcançar outras coisas. A tecnologia não é aquilo que procuramos, mas a forma como procuramos as coisas. O que as pessoas procuram é mais ou menos o mesmo de sempre…
… Amor, saúde e dinheiro?
Sim, coisas típicas dos humanos. Felicidade, concretização pessoal, satisfação, amor, relações, amor – basicamente, são essas coisas todas que as pessoas procuram. Não temos como objetivo usar cloud computing, ou ter robôs. Estas coisas existem para chegar a outras coisas. Em contrapartida, se olharmos para o Facebook, reparamos que costumava ser usado como uma ferramenta, mas agora é como se fosse um deus, é o objetivo. Acontece o mesmo com os miúdos de 12 anos que estão viciados no Instagram. A tecnologia também encontra formas de se tornar ela própria um objetivo.
Este novo paradigma também transforma o modo como os humanos se veem a si próprios!
Sim, mas não me parece que as empresas tecnologias estão apostadas em criar um novo objetivo de vida. Apenas acontece que encaixa bem nas respetivas agendas… e por isso não oferecem grande resistência. Até porque há muito dinheiro envolvido. Por vezes, digo a brincar que o negócio relacionado com a substituição da humanidade é a maior oportunidade de negócio de sempre. A consultora McKinsey estima que a Inteligência Artificial e a Internet das Coisas podem representar uma oportunidade de negócio de 100 biliões (de dólares). Se colocarmos em cima disto, (as soluções relacionadas com a) longevidade, o aumento da esperança de vida, a edição do genoma humano, então estaremos a falar de qualquer coisa como 500 biliões de dólares. Penso que não podemos culpar essas empresas de tecnologias por quererem ser importantes; penso que não há razão para culpar essas empresas por fazerem coisas sem ética ou por não terem feito o suficiente para impedir essas coisas.
As tecnologias não contribuem para constituição de uma nova moralidade para as pessoas que as usam em permanência?
As tecnologias são neutrais até serem postas em prática. A Microsoft tem a tecnologia Hololens; e se a Hololens for bem-sucedida, então várias pessoas estarão a usar esta tecnologia para trabalhar. Mas se for uma tecnologia mesmo muito boa, então a Hololens poderá tornar-se viciante… mas neste momento é uma boa tecnologia, ainda tem um custo elevado, mas se se tornar uma tecnologia comum, talvez tenhamos centenas de milhões de pessoas a usá-la. Neste cenário de sucesso, a Microsoft já será obrigada a pensar como é que se evita o vício, o isolamento… uma vez que se trata de uma aplicação que, basicamente, nos leva a abdicar do nosso poder de decisão. Todas estas coisas têm efeitos secundários; todas as empresas de tecnologias têm de pensar nos efeitos secundários e nas externalidades das coisas que estão a criar… porque aquilo que estão a criar está, de facto, a mudar os humanos. Não é como construir um carro; na verdade (a tecnologia) está a mudar o nosso cérebro.
Voltemos à música: ainda continua a acreditar que já não são precisos humanos para compor temas musicais?
Não é bem isso. Continuamos a precisar de músicos; e temos mais músicos do que nunca, especialmente com a proliferação de novos instrumentos. Não me parece é que precisemos de uma indústria musical como tínhamos no passado. Porque a indústria discográfica convencional é essencialmente um negócio de distribuição.
Mas, aparentemente, esse negócio de distribuição não parou de fazer dinheiro.
Não é bem assim. O que acontece é que marcas como o Spotify, Apple ou o YouTube estão a fazer montes de dinheiro, mesmo tendo de pagar às editoras discográficas. Mas em termos gerais, a Sony Music e a Warner Music estão a tornar-se cada vez menos importantes, porque têm como função a distribuição que agora está totalmente automatizada, algures na cloud.
Para um melómano, a sensação que fica é que nunca houve tanta música disponível como agora!
Mas a indústria musical chegou a valer mil milhões de dólares há uns 15 anos, e agora vale cerca de 15 mil milhões de dólares… se bem que agora está a voltar a valorizar-se por causa do Spotify. Basicamente, isto quer dizer que não precisamos da indústria musical, como foi no passado, porque era em grande parte apenas distribuição. Mas é necessário ter marketing, repertório, produção…
… e será que ainda é preciso ter humanos ou não?
Claro! Já há robôs e outras máquinas a produzirem música… mas é música sem grande valor. Ou melhor, tem valor como um apoio, tal como o assistente Siri (do iPhone ou dos Macs), mas não é a mesma coisa (que a música produzida por humanos). Acho que os músicos vão ter muito trabalho no futuro. Sempre foi muito difícil, do ponto de vista financeiro, ser músico. E isso não mudou. Na verdade, até acho que esse aspeto vai melhorar no futuro!
Será que a ameaça que a Internet e as tecnologias em geral lançaram sobre a indústria discográfica também pode vir a ser replicada sobre os estados democráticos? Como encara a pressão que tem vindo a ser gerada sobre a privacidade dos cidadãos?
Não é apenas privacidade e a proteção de dados – é a própria humanidade que está em risco! O facto de as máquinas já fazerem quase tudo leva-nos a crer que as máquinas sabem de tudo melhor que nós… e por isso temos sites de encontros automatizados, um sistema justiça automatizada, política automatizada, ou até companhia de robôs. É esse o maior risco: há uma desumanização da nossa sociedade.
Essa é uma das previsões que já constam nos sete princípios do futuro?
Sim. É algo que podemos evitar. Temos investir na humanização. Por exemplo, temos de levar o sistema de ensino a regressar à filosofia, à música e à arte, ao design… e não apenas programação e matemática. Temos de investir na humanidade. Até agora, temos investido 98% (do esforço) em tecnologias em ciências e muito pouco na humanidade.
Investir na humanidade também pode passar pela integração de chips no corpo de um humano? Mesmo sendo um paradoxo, a tecnologia pode ou não ajudar-nos a ser mais humanos ou, pelo menos, a viver melhor?
Não há uma resposta de sim ou não para essa questão. Algumas tecnologias podem ter esse efeito – especialmente quando alguém está doente. Se se usar uma tecnologia como a edição do genoma e se se conseguir evitar o cancro, isso será algo fantástico. Mas se se usar a mesma tecnologia para criar um supersoldado, já não será tão bom…
É algo que, possivelmente, acabará por acontecer…
Criar um novo tipo de de humanos é um pouco mais complexo do que alterar um gene. A humanidade é criada com biliões de combinações de genes. Não é assim tão simples criar um supersoldado. Vai demorar 30 a 40 anos até que isso se torne uma opção.
Portanto, teremos mesmo de investir em filosofofia e ética, antes de sabermos se vale a pena criar uma nova “superraça” de humanos.
Chamo a isso sabedoria. Temos de investir em sabedoria. Dentro de cerca de 10 anos, vamos ter tecnologia que, potencialmente, ilimitada. Vamos poder fazer tudo o que quisermos com a tecnologia; vamos poder mudar os nossos genes dentro de 20 anos, vamos poder ter máquinas com inteligência artificial, e máquinas que agem como humanos. Vamos passar a pensar naquilo que queremos e não naquilo que podemos fazer. Neste momento, pensamos mais naquilo que podemos ou conseguimos fazer, porque as coisas são caras, e é necessário ganhar dinheiro… mas em 10 anos, todas as coisas vão acabar por funcionar sem problema…
De qualquer modo, terá de ser um movimento homogéneo… caso contrário, haverá os tais países onde tudo funciona muito bem e outros onde continuam a escassear as necessidades mais básicas!
Sim, sem dúvida. Mas isso é importante para todas as coisas realmente importantes, como as armas nucleares. Há uma decisão que vai ter de ser tomada e toda a gente tem de participar nela. Empresas e países que não participarem nesse tipo de decisão terão de sofrer consequências como o isolamento (internacional) ou outro tipo de punições… mas parece-me que não será tão fácil de o fazer neste tipo de temas.