Da liga de John Chambers já não restam muitos. Há Steve Ballmer e Bill Gates, Steve Wozniak e Tim Berners-Lee, ou Vint Cerf – mas todos eles estão mais ou menos retirados. Ontem juntou-se um novo membro a este clube das reformas douradas de Silicon Valley e arredores. É verdade que Chambers nunca teve a mesma aura de estrelato que os outro membros do seleto clube conseguiram fora dos EUA, mas na Terra do Tio Sam, soma e segue na popularidade e arregala os olhos dos ouvintes, com os discursos decorados, quando todos os colegas de direção já não dispensam o teleponto.
Em San Diego, a Cisco “só” juntou 25 mil convidados de todo o mundo, mais uns vários milhares de trabalhadores e parceiros que vivem do ecossistema da tal empresa que, um dia, alguém disse ter o poder único de ligar e desligar a Internet. A Internet das Coisas, Digitização, Fast-IT, a rede como sensor de segurança – são as buzzwords que têm inundado os ouvidos dos visitantes da Cisco Live, mas o momento alto foi alcançado com o adeus do homem de cabelo meio arruivado que aceitou, numa produção com laivos de Broadway que só poderia ser feita nos EUA, pôr um ponto final aos 20 anos que passou à frente da maior marca de redes mundial e passar o testemunho a Chuck Robbins.
Chambers é um estratega. Já usou a verve, mais que uma vez, na defesa do Partido Republicano, mas é na estratégia que se distingue. E não raras vezes os objetivos dessa estratégia realizam-se como profecias que nada têm de bíblico – apenas tecnológico. Um exemplo: «as comunicações de voz vão ser gratuitas». Foi dito em 1998. E hoje é verdade para boa parte dos cidadãos dos denominados países desenvolvidos. Outro exemplo: num slide de powerpoint mostrado há 20 anos vislumbra um dia em que tudo estará conectado à Internet. Esta última previsão ainda está a meio caminho de se cumprir – mas se for mesmo verdade que em 2020 haverá 50 mil milhões de objetos e dispositivos conectados no mundo, não restarão muitas dúvidas de que Chambers tinha razão e de que a Cisco vai fazer muito dinheiro. Provavelmente bem mais que o rácio que hoje indica que para alcançar 5,4 mil milhões de dólares de receitas a gigante californiana apenas investe 400 milhões de dólares.
A assistência pode ter suspirado com o tilintar imaginário do dinheiro, mas se as previsões de Chambers estiverem certas… bom, já não será Chambers a confrontar a assistência com o que disse no dia 8 de junho de 2015. Aqui vão mais dois exemplos: «dentro de 10 anos, 40% das empresas que se encontram nesta sala já não existirão»; em 2020, 75% das empresas serão digitais, mas só 30% serão bem sucedidas. «Haverá grandes empresas apenas com duas pessoas: o CIO (chief information officer) e o CEO (chief executive officer). E é bom que o CEO esteja mesmo na empresa», avança tirando a piada da algibeira.
No último discurso público enquanto CEO da Cisco, John Chambers fez por encaixar no epíteto de homem que aponta o futuro da Cisco ao mesmo tempo que muda o mundo. A classificação de «homem que muda o mundo» é notoriamente exagerada pelo momento da despedida – o que não invalida o seguinte: a Cisco tem um poder enorme nas redes e lidera em todos os segmentos em que está presente (exceto nos servidores blade x86, onde é segunda). Só mesmo o facto de trabalhar num métier pouco sexy e difícil de explicar a quem não é informático impede o comum dos mortais de perceber o alcance da marca.
Obviamente que a Cisco não tem poder para mudar sozinha o mundo – mas tem a vontade de ser disruptora e não se deixar vencer pela disrupção (algo que todos os cisquianos sabem que têm de evitar a todo o custo). E mais uma vez são as previsões de Chambers que dão a conhecer o que será a Cisco nos tempos mais próximos: a digitização, um palavrão que representa a migração de múltiplas ações e trocas de informação para o espaço virtual, «vai valer mais de cinco ou 10 vezes mais que aquilo que valeu a Internet até aos dias de hoje»; nas empresas, o orçamento das TI vai cair 5% a 10% nos próximos cinco anos; e o conceito de Fast IT prevê a implementação de soluções e tecnologias em prazos inferiores a um ano. John Chambers diz mesmo: «vamos passar a fazer em seis meses aquilo que hoje fazemos em dois ou três anos».
Pelo meio do discurso, também houve tempo para um ato de contrição: o momento aziago de há três e meio, quando o mercado e os efeitos da crise financeira se voltaram contra a tal visão estratégica do CEO, e gigantes asiáticas como a ZTE e a Huawei começaram a perfilar-se no horizonte, dando a conhecer um duelo que tarde ou cedo vai ter de se realizar. Será que a Cisco aguenta o embate dos negócios da China?
No plano internacional, John Chambers prefere apontar para a França e para o plano de migração para o ambiente digital que o governo gaulês está aplicar a quase todos os ministérios. Antes do elogio ao executivo de Paris, deixa cair um elogio à administração Clinton que percebeu, nos anos 1990, a importância da Internet para a economia dos EUA e para geração de emprego. «Os democratas também têm as suas virtudes», ri-se.
Ao contrário do mercado das TI, o seu futuro não merece tiradas certeiras: diz que vai ficar no background, no papel de um conselheiro comparável ao de «um avô, que trata das crianças, dá-lhes banho, dá conselhos e no final diz aos pais das crianças: mas a decisão é tua».
A partir de 26 de julho, com o fim do ano fiscal da empresa, Chuck Robbins torna-se o pai da criança. É um homem das vendas, com 18 anos de Cisco, formado em matemáticas, mas que começou a carreira a programar e, por isso, confessa ter um «coração de geek». Pela frente terá a difícil missão de substituir John Chambers e de fazer esquecer as célebres previsões que obrigavam os decisores a parar para pensar.
A primeira aparição pública enquanto futuro CEO não foi além das circunstâncias e de um discurso redondo. É provável que Robbins o saiba, ou que alguém lho tenha dito: na Cisco, o tempo é medido em extremos: às mudanças rápidas preconizadas pelas tecnologias contrapõem-se as estratégias de 10 anos e as equipas de 20 ou mais anos. Robbins não foi escolhido para ser um CEO de passagem. Tem de saber isto tudo e muito mais. Ou não fosse o “sobrevivente” de um processo de seleção com mais de 3,5 anos de duração e com 16 meses de entrevistas.