“É uma abordagem radicalmente nova”, classifica a Organização Mundial de Saúde no texto genérico sobre vacinas de DNA. No entanto, como descreve a investigadora do Instituto de Tecnologia Química e Biológica (ITQB), em Oeiras, Cecília Arraiano, a vacina de DNA aprovada pelas autoridades indianas, para o combate à Covid-19, não é mais do que uma evolução, previsível, do que tem vindo a acontecer na área. As vacinas tradicionais, de vírus inativado, são as mais antigas, as tradicionais. Apesar de terem caído em desuso, continua a haver uma ou outra com base neste princípio, como acontece com a vacina chinesa contra o vírus SARS-CoV-2, Sinovac. “Neste tipo de vacinas, o risco é ocorrer alguma falha no processo e o vírus não ser devidamente inativado”, nota a investigadora do laboratório de controle da expressão de genes. Uma versão melhorada desta é, por exemplo, a Novavax, em que se administra apenas uma parte do vírus. Depois vieram a da AstraZeneca e da Johnson, em que se usa um tipo de vírus, no caso um adenovírus modificado, que transporta um bocadinho de DNA, responsável pela produção da proteína spike, o que desencadeia o processo de imunização. As vacinas da Moderna e da Pfizer surgiram como a grande inovação na área, sendo as primeiras vacinas de RNA. Nestes casos, são injetadas as instruções para o fabrico da spike, o que vai gerar a resposta imunitária e preparar o corpo para combater o vírus.
Já há vários anos que se trabalhava neste sentido, até na área do cancro, sendo a grande vantagem deste método a rapidez do processo de produção. A emergência da Covid só veio acelerar o aparecimento de uma solução há muito anunciada. São exemplos deste tipo de vacinas a da Moderna e a da Pfizer. “Injeta-se RNA mensageiro que produz, logo no citoplasma das células, um bocadinho do vírus. O seu desenvolvimento demorou muitos anos e a Covid foi uma ótima oportunidade de as pôr em jogo”, descreve a investigadora.
Continuando nesta linha, surge agora a primeira vacina de DNA, aprovada em agosto e que deverá começar a ser ministrada até ao final de setembro. Com o nome de ZyCoV-D, é descrita num artigo da Nature como contendo “fitas circulares de DNA, conhecidas como plasmídeos, que codificam a proteína spike do SARS-CoV-2, junto com uma sequência promotora para ativar o gene.”
DNA versus RNA
Estes plasmídeos têm de atravessar o citoplasma da célula, para entrar no núcleo onde o DNA é convertido em RNA mensageiro que regressa ao citoplasma onde é ‘traduzido’ na própria proteína spike. “Os plasmídeos geralmente degradam-se em semanas a meses”, deixando o corpo imune ao vírus. Nos testes feitos até agora, registou-se uma eficácia de 67%, bastante inferior à generalidade das restantes vacinas já aprovadas e para um mínimo de três doses. Mas é uma vacina “muito mais fácil de produzir”, sublinha Cecília Arraiano. Não precisa de circuito de frio, como a de RNA, e dispensa cultura de células, o que acaba por ser um fator limitador da capacidade de produção das vacinas tradicionais.
Tal como as vacinas de RNA, também as de DNA têm vindo a ser desenvolvidas desde a década de 90 do século passado. “O desafio das vacinas de DNA é que precisam de chegar ao núcleo da célula, ao contrário das vacinas de RNAm, que só precisam chegar ao citoplasma”, diz Shahid Jameel, virologista da Ashoka University em Sonipat, Índia, no artigo da Nature. “Assim, durante muito tempo lutou-se para que as vacinas de DNA induzissem uma resposta imunológica potente nos ensaios clínicos. Razão pela qual haviam sido aprovadas para uso como vacinas apenas em animais, como cavalos, até agora”, explica.
Neste momento há cerca de uma dúzia de vacinas de DNA em teste e Cecília Arraiano não tem dúvidas de que estas também virão a fazer parte da estratégia de combate, não só ao coronavírus como a novos vírus. “Produzir milhares de litros de RNAm é um esforço enorme. Fazer um plasmídeo de DNA é muito mais fácil.” Ou seja, além dos custos de produção mais baixos, têm a grande vantagem de dispensar as temperaturas negativas para a conservação.
Aplicação sob a pele
A ZyCoV-D foi desenvolvida pela empresa farmacêutica indiana Zydus Cadila, com sede em Ahmedabad. A 20 de agosto, o regulador do medicamento da Índia autorizou-a para idades a partir dos 12 anos ou mais, depois de estudos que envolveram mais de 28.000 voluntários, registando-se 21 casos sintomáticos de COVID-19 no grupo vacinado e 60 entre pessoas que receberam um placebo. Outra novidade nesta vacina é também o método de aplicação, que é feita imediatamente por baixo da pele, em vez de no músculo. “A área sob a pele é rica em células imunológicas que engolem objetos estranhos, como partículas de vacina, e os processam. Isso ajuda a capturar o DNA de forma muito mais eficiente do que no músculo,” explica-se na Nature.
O facto de a vacina ter sido aprovada sem que tivessem sido concluídos os ensaios clínicos de fase III tem dado espaço a críticas. A baixa eficácia também – embora os cientistas envolvidos na investigação tenham justificado esta diferença relativamente às outras vacinas com a variante Delta, mais contagiosa e virulenta, que já estava circulação quando a ZyCoV-D foi testada. “Muitos aspetos da resposta imune gerada por vacinas de DNA não são compreendidos. No entanto, isso não impediu um progresso significativo para o uso desse tipo de vacina em humanos”, diz a OMS. Cecília Arraiano não tem dúvidas também. “Várias companhias estão a tentar. Vai acontecer”.