Quase tudo em Andrew Pelling é fora da norma. Começou por estudar artes, para depois se tornar num cientista, converteu uma das divisões de casa num laboratório biológico (o que durante a Covid lhe permitiu ficar a tomar conta de linhas celulares), é uma estrela das conferências TED e tempos houve em que organizava visitas pagas ao seu laboratório para financiar a investigação. Para resolver um dos mais complexos problemas da Medicina, as lesões na medula, está a usar espargos. E antes disso conseguiu fazer crescer uma orelha humana em fatias de maçã. Mas esta é apenas a parte de cientista Frankenstein. Aos 42 anos, Pelling tem artigos publicados nas revistas mais reputadas, como a Cell, a Nature e o Proceedings of the National Academy of Sciences, é professor na Universidade de Otava, no Canadá, onde dirige o laboratório de Biologia Aumentada, mantém uma forte atividade de mentoria e orientação de estudantes e criou uma empresa para explorar a técnica de regeneração da medula a partir de um material análogo aos espargos. Neste trabalho, que demorou cinco anos, o cientista implantou um fragmento de espargos em ratinhos com uma lesão completa na coluna e os animais recuperaram boa parte do movimento. É um dos oradores da conferência AIMS Meeting 2021, organizada pelos alunos da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, que arranca hoje, em modo remoto.
Continua a conseguir comer espargos?
(Risos) Sim, claro! Eu estava a cozinhar quando olhei para os espargos e pensei em usá-los na regeneração da medula. E também como maçãs quase todos os dias.
Como chega a estes projetos de investigação tão fora do comum?
Estou constantemente à procura da mudança. Nunca quis ser aquele tipo de cientistas que está a escrever o mesmo tipo de artigos até ao final da carreira. Publico em muitos jornais, diferentes. Eu gosto de ideias e de as seguir.
E é fácil conseguir financiamento para trabalhos tão fora da norma?
Bem, não é fácil e há sempre um fator sorte. Hoje em dia já não é tão difícil. Mas também é verdade que temos conseguido encontrar formas alternativas de obter financiamento. Muitas vezes ouço académicos queixarem-se de que não conseguiram as bolsas e o que eu digo é que há sempre uma maneira. Fazemos visitas guiadas ao laboratório e cobramos por isso; muitas vezes sou convidado para dar conferências e estes honorários vão diretos para o laboratório, faço consultadoria. Há muitas formas de se financiar um laboratório. Gostava que os académicos pensassem mais neste sentido. Uma das razões por que aceitei dar a conferência TED foi porque eu sabia que isto nos traria mais possibilidades de conseguir estabelecer parcerias, formas alternativas de financiar a investigação.
Como é que a instituição e os seus colegas viram isso?
A princípio não foi lá muito bem recebido. Mas depois quando os meus colegas começaram a ver os fundos a aparecer, dadores a surgirem, a atenção dos media, aí a atitude começou a mudar e até já me perguntavam como é que também poderiam dar uma conferência TED. Há uma nova geração de cientistas ciente do poder destas ferramentas, que aprecia as redes sociais.
É por isso que o motiva a participar em conferências como esta, dos estudantes de medicina?
Sim, tento aceitar estes convites. São jovens, cheios de entusiasmo. Ficaram tão felizes quando eu disse que sim.
Que tipo de educação teve?
Eu estudei arte. Era muito novo quando me encaminharam para uma escola especializada num currículo artístico. E esta experiência foi muito importante porque me preparou para aceitar a crítica. Estávamos sempre a expor-nos. Aprendemos a aceitar a crítica e a usá-la para melhorar. E também a continuar o nosso caminho, independentemente desta.

Mas a dada altura começou a interessar-se por ciência.
Sim, comecei a ter uma paixão pela Matemática e depois pela Biologia, natureza.
Qual é a grande vantagem da sua técnica de recuperação de lesões medulares à base de espargos relativamente a tantas estratégias, complexas, tentadas há décadas?
Há uma diferença essencial naquilo que fazemos: em todos os testes que fizemos – e fizemos muitos – o material manteve-se sempre intacto. O comentário que recebemos de uma das neurocirurgiãs mais reconhecidas do Canadá foi: “Finalmente! Tenho estado a pedir aos engenheiros de biomateriais que me façam uma matriz num material que não se degrade e até agora ainda não tinham conseguido.” O nosso estudo foi todo sobre a forma como as células reagem à estrutura. Já houve várias experiências que puseram ratos a andar novamente. Isto já não é novidade. Mas normalmente estes estudos são feitos durante umas semanas. E acabam aí porque é quando o material se degrada. O nosso estudo seguiu os ratinhos durante seis meses! Fizemos isso de propósito para mostrar que o material não se degradava. No nosso caso, os ratinhos foram melhorando até estabilizarem, permanecendo neste ponto.
E porque é que isso acontece?
Pensamos que estes resultados estão relacionados, em grande medida, com a natureza permanente do material que implantamos, que é completamente inerte. Nós não temos enzimas para degradar a celulose. As células reúnem-se à sua volta e crescem, regenerando a medula.
Quando planeiam aplicar a técnica a pacientes?
Penso que talvez seja possível daqui a dois anos começar a recrutar doentes. As nossas experiências foram em situações de corte completo – há muito poucos pacientes com este tipo de lesão, na realidade. Fizemos as experiências para o modelo mais severo e a ideia foi que se conseguíssemos bons resultados com estes, teríamos mais hipóteses de sucesso com os doentes menos graves. E implantamos os espargos logo a seguir à lesão. Não há um tratamento estabelecido para pacientes com lesões já antigas.
Normalmente pensa-se que estamos a falar em ‘levanta-te e anda’ quando estamos a tentar tratar pessoas com lesões na medula. Mas para estes pacientes, e eu passo muito tempo a falar com eles, pequenas melhorias já têm um enorme impacto. Eles querem sentir frio, ter controle da bexiga…