Num dia normal, quem está a ler este texto levantou-se cedo e, possivelmente, a primeira coisa que fez foi pegar no telemóvel, provavelmente para ler e-mails de trabalho. Se calhar ainda “fugiu” durante uns minutos para as redes sociais. É bem possível que tenha visto os e-mails da empresa sem ter acabado de se arranjar e, durante um pequeno-almoço tomado a “100 à hora”, começou a receber as primeiras mensagens do dia, umas com pedidos, outras com ordens, desculpas e tarefas inesperadas.
Imaginemos que esse dia é segunda-feira. A sua manhã foi passada a fazer chamadas para resolver problemas ou em sucessivas reuniões até à hora de almoço, que comeu sentado à secretária enquanto tentava adiantar aquele projeto extra para o qual se voluntariou. Ser o colaborador mais produtivo é a sua meta.
À tarde perdeu a paciência com um colega que lhe parece mais lento e, acumulando funções, concluiu as suas tarefas e as dele, saindo de seguida para ir buscar as crianças à escola, porque a vida é complicada e já não há marido ou mulher que aguente tanto stress. Se calhar é a sua semana sem crianças, pelo que corre para o ginásio para se sentir menos mal pelo estado lastimável que anos de sedentarismo fizeram à sua saúde.
Em casa, talvez mande vir qualquer coisa “plástica” para comer, porque a ideia de cozinhar e arrumar a cozinha é insuportável. Adormece no sofá e acorda de madrugada com dores de pescoço, arrastando-se para a cama, mas talvez ainda se agarre ao telemóvel durante uns minutos para se embalar com stories e reels até voltar a adormecer.
Amanhã é outro dia para ser exemplar.
Esta obsessão pelo cumprimento de metas ou pretensões irrealistas, aliada à produtividade, aspeto físico e ideal de felicidade levam diretamente à destruição da saúde física e mental. Chama-se a isto “produtividade tóxica” e se estivermos atentos à comunicação social, as redes sociais, a literatura de autoajuda e as comunicações internas e externas das empresas estão inundadas de mensagens que promovem este imaginário povoado de super-homens e mulheres-maravilha.
Entrevistas a CEO, líderes empresariais, governantes políticos e empreendedores são um repositório de vitórias e objetivos alcançados, aliados a uma ética de trabalho infalível e níveis de produtividade sobre-humanos. Ninguém falhou, ninguém precisa de descansar e não vamos sequer abordar os inúmeros podcasts de coach que enxameiam as redes sociais.
É irrealista definir como objetivo mensal ser hiper produtivo, ter sucesso profissional, pessoal, romântico e financeiro, um corpo saudável, um sorriso permanente e, sobretudo, reconhecimento público de tudo isto… mais um milhão de euros.
Creio podermos falar de uma verdadeira epidemia, ampliada pelas redes sociais e pelos media, que nos mostram “vidas” que existem num universo sem qualquer aderência à realidade. Um mundo de fantasia para onde fugimos todas as manhãs porque, francamente, é-nos difícil viver com a nossa imagem e os nossos fracassos.
Pare, parem todos. Eu também. Isto não é aceitável, não é normal e está a matar-nos. Tem de haver algo mais do que este mergulho para o vazio.
Existem pessoas assim, excecionais, raras, e gostava de ser como elas, mas não sou. Afinal, se fossemos todos excecionais, ninguém o seria realmente.
O que somos, então? Pessoas normais, que precisam de um mundo real, onde podem sentir-se cansadas, deixar tarefas para mais tarde, ajustar metas, ter quilos a mais e falhar o ginásio. Se assumirmos a imperfeição, talvez sejamos capazes de nos sentir um bocadinho mais reais que os deuses e deusas que povoam este mundo. E menos culpados.