Que a liderança se alterou profundamente nos últimos anos não é novidade – tal como não é nova a discussão sobre os desafios que o mundo atual nos traz neste quesito. Mas a pandemia acelerou ainda mais estas necessidades de mudança, numa altura em que os colaboradores procuram, nas empresas e em quem os lidera, características muito diferentes daquelas que faziam parte da sua lista de há uma década, se tanto.
Foi neste contexto que a CEO da Nestlé Portugal, Anna Lenz, a dean da AESE, Fátima Carioca e a Diretora do Human Age Group, Margarita Álvarez, estiveram a refletir sobre os desafios da nova liderança no fórum ‘Futuro do Trabalho’, que aconteceu esta quinta-feira na AESE Business School, em Lisboa. A moderação ficou a cargo do diretor da EXAME, Tiago Freire.
Para Anna Lenz, as maiores diferenças dos últimos anos foram sentidas na estrutura hierárquica e também nas formas de avaliação. “Hoje, as hierarquias são mais horizontais, mais próximas”, apesar de se manter a necessidade de estarem bem definidas até porque em cenários de incerteza, ter líderes a quem sabemos poder recorrer é absolutamente fundamental. No entanto, lembra, nos processos de avaliação é possível sentir essas diferenças. “Eu hoje quero que as pessoas venham ter comigo não para avaliar o que elas fazem ou fizeram – é suposto elas estarem confiantes sobre isso – mas para discutirem comigo como podemos continuar a avançar”, considera. “E mais, as competências mudaram de uma forma muito rápida e eu tenho de ter a noção de qua há pessoas que sabem mais do que eu”.
Esta última afirmação foi imediatamente secundada por Margarita Álvarez, que partilhou: “Os meus melhores chefes, os meus melhores líderes até hoje foram pessoas que me fizeram chegar a lugares onde nunca pensei chegar”. E, salientou, é preciso ter em conta que aquilo que se procura hoje no mercado de trabalho é muito diferente daquilo que se procurava há alguns anos. “Antes procurávamos estabilidade – trabalhar num grande banco, numa grande multinacional como a Nestlé (risos). Hoje procuramos coisas que nos façam mais felizes…”, salientou.
O que levou à questão seguinte: é mais difícil ensinar estas chamadas ‘soft skills’, do que as questões técnicas, aos líderes? Fátima Carioca atira rapidamente que “para a AESE não” envolto numa gargalhada. “Não é difícil porque faz parte nos valores fundacionais da AESE um pensamento sobre a pessoa humana, que está na génese da liderança. Inclusivamente formar para a questão de ‘ser líder’ antes de liderar outros”, salienta. É por essa razão, recorda, que “a especialidade em humanidade é transversal a todas as gerações dos grandes líderes. Os grandes líderes foram sempre magnânimos”, lembra.
Adeus, chefes! Olá, líderes
A verdade é que sempre houve chefes, aqueles que até podiam levar um negócio para a frente. Mas esses não eram obrigatoriamente líderes. Esses, repete, tinham como característica serem especialistas nessa humanidade. “E acho que hoje isso não é apenas uma exigência dos colaboradores de uma empresa, mas de toda a sociedade. Portanto é importante que estejamos na ‘crista da onda’, não apenas para ensinar as competências técnicas, mas principalmente para desenvolver num líder a sensibilidade, por exemplo, às novas tecnologias”.
E isto porque é preciso ter consciência de que muitos dos funcionários que agora entram numa organização têm, apesar de serem muito mais novos, um conhecimento consideravelmente maior sobre uma série de temas, como o caso das tecnologias. O que um líder tem de saber fazer muito bem é, portanto, comunicar com quem mais sabe e garantir que esses ensinamentos contribuem para a criação de valor dentro de uma organização.
E isto, salienta ainda Fátima Carioca, tem a ver com a necessidade de qualquer líder desenvolver uma série de competências transversais como empatia, capacidade de análise, pensamento crítico, capacidade de encontrar soluções onde outros só veem problemas…”porque se tiver estas características, vai ser um bom líder em qualquer setor”, realçou.
Questionadas sobre se a ideia de que um líder tem de saber a pessoa que mais sabe numa empresa já se alterou, as três especialistas são unânimes: sim. Ma s é importante que os próprios líderes tenham consciência disso, o que nem sempre acontece.
Anna Lenz recordou os “quatro níveis de hierarquia” que todas as empresas têm para falar dos riscos dessa falta de consciência de muitas lideranças. “Todos nós entramos numa empresa e somos especialistas em algo, é o nível um. Depois, passamos para o nível dois, que é o de supervisor, ao qual quase todos nós chegamos pela nossa competência técnica. É o nível em que supervisionamos outros porque, tecnicamente, sabemos mais do que eles. O nível três é o que comporta mais risco. É aquele no qual eu passo a liderar pessoas que sabem mais do que eu. E é também aquele em que a maior parte das pessoas falha, porque tenta usar o que aprendeu no segundo nível, e isso não é possível, porque não vai funcionar. Eu não vou conseguir saber mais do que todos os outros que estão na minha equipa…”, avisa. “Depois temos o quarto nível, que é quando somos diretores-gerais ou CEO, que exige um trabalho muito mais político, mais de comunicação para fora também… mas o maior risco está mesmo ali no nível três”.
É aqui, recordam, que a humildade toma um papel central. E que tem, na opinião de Fátima Carioca, “duas dimensões. “Temos, por um lado, de aceitar que temos limites e isso parte muito do auto-conhecimento. Depois, é preciso não perder esta grandiosidade de saber que se pode aprender com outros, enquanto os guiamos e que juntos podemos chegar mais longe”, nota.
Humildade precisa-se
Numa altura em que humildade ou vulnerabilidade deixou de estar associado a debilidade, estas são duas características sem as quais não é possível liderar com sucesso, acreditam todas as participantes deste painel que precedeu o anúncio das Melhores Empresas para Trabalhar 2023.
“Vulnerabilidade ou humildade tem que ver com verdade”, sublinhou Margarita Álvarez. “Antes confundiamo-las com fragilidade porque “achávamos que a parte emocional ficava fora das empresas. ‘As pessoas estão aqui para trabalhar’, dizia-se. Mas um líder também se divorcia, também tem problemas com a sua própria chefia, também tem problemas do dia-a-dia que o obrigam a gerir as suas emoções. E essa é uma parte importante da vida para se partilhar com os outros com quem se trabalha. Por exemplo, quando chegamos a casa dizemos, muitas vezes, aos nossos filhos: “preciso de 10 minutos de pausa antes de me dedicar a vós porque tive um dia difícil no trabalho”. Não tem mal dizer isso à nossa equipa, que precisamos de 10 minutos de pausa. Às vezes isso ajuda a não escalar conflitos. No fundo, precisamos de gerir as nossas emoções e ser honestos em relação a elas para poder continuar a liderar”, considera.
Anna Lenz pede apenas que não seja esquecido o equilíbrio que é preciso nessa partilha de emoções, para evitar que os colaboradores se sintam ‘perdidos’ no caso de verem os seus líderes demasiado vulneráveis. E considera que conseguir essa harmonia é outro dos principais desafios das lideranças, atualmente.
O que é certo é que todas estas alterações trouxeram também para cima da mesa dois assuntos absolutamente fundamentais atualmente, e que há menos de 10 anos não eram sequer considerados: a saúde mental e emocional dos trabalhadores.
“Hoje em dia há empresas com planos de saúde emocional, com planos de saúde mental, os meus alunos, na Universidade, perguntam-me se eu sei que empresas os têm…isto há menos de 10 anos não era, sequer um tema”, nota Margarita. E isto acontece porque “as pessoas querem ser tratadas, não como empregadas, mas como pessoas em toda a sua complexidade”.
Tudo isto, acredita Fátima Carioca, é possível ser aprendido pelos líderes, se tiverem a abertura de espírito para tal – o que pode ser outro grande desafio. “Se eu entro com muitas certezas [num programa de liderança], saio tal como estou. Se entro com esta abertura, provavelmente sairei transformado e serei um bom líder. Certamente não saem todos líderes iguais, mas todos podem ser bons”, remata.
A conferência O Futuro do Trabalho é uma iniciativa da revista EXAME, que conta com o apoio da AESE Business School e da Manpower Group, e onde, anualmente, são distinguidas as 50 Melhores Empresas para Trabalhar em Portugal.