Inflação da zona euro nos 2,4%, nos Estados Unidos em 3,2%. Ambas a cair mais rápido do que se antecipava, depois de um forte aperto monetário. O Banco Central Europeu (BCE) e a Reserva Federal norte-americana (Fed) ainda não querem ouvir falar de cortes, mas a ideia de taxas de juro elevadas durante muito tempo começará a ser desafiada. Os mercados já assumem descidas no arranque do segundo trimestre de 2024. O choque de inflação já passou?
A desaceleração dos preços em novembro surpreendeu os analistas. Esperava-se uma recuo de 2,9% para 2,7% nos países da moeda única, mas a inflação acabou por cair para 2,4%. É o valor mais baixo em mais de dois anos, desde julho de 2021, e fica muito perto do limiar de 2% definido pelo BCE e outros bancos centrais. A tendência de descida é transversal e vários países já estão abaixo dessa referência. Em Portugal, os valores são banais. Se utilizarmos o IHPC, indicador europeu que inclui os gastos de turistas, está nos 2,3%, enquanto o IPC aponta para 1,6%.
Esta queda “não se deveu à inflação energética, que pouco mudou dos -11,5%, ou à inflação nos alimentos, que caiu de 7,4% para 6,9%”, escreve o Capital Economics. Na verdade, “o fator mais importante foi a inflação subjacente – que exclui energia, alimentos, bebidas alcoólicas e tabaco – que recuou de 4,2% para 3,6%”, acrescenta. Isso verifica-se no preço de bens, mas também de serviços, onde está, por exemplo, a atividade turística.
Os analistas reagiram imediatamente, sublinhando não só a descida do valor total de inflação, mas especialmente o arrefecimento da inflação subjacente ou “core”, que exclui os elementos mais voláteis da mesma. Os gráficos falam por si acerca do caminho já percorrido.
Nos Estados Unidos, a descida também tem sido mais pronunciada do que se antecipava. Os 3,2% registados em outubro encaminham-se para o valor de referência sem que o desemprego esteja a agravar-se e numa altura em que os efeitos do aperto monetário ainda se devem fazer sentir de forma mais intensa. Até outros indicadores que a Fed prefere estão a desacelerar.
“O que o consenso [económico] percebeu mal foi que os choques de oferta da Covid eram enormes e levariam algum tempo a desaparecer. É isso que está a motivar publicação após publicação de dados benignos de inflação. O choque de inflação nos EUA acabou”, conclui, no tweet acima, Robin Brooks, economista-chefe do Institute of International Finance.
Estas são boas notícias para as famílias, que agradecem uma evolução mais lenta dos preços. Quem esteja a ler este texto pode achar esta frase uma loucura. Afinal, os preços continuam elevados e, nalguns casos – como no corretamente apelidado “ouro líquido” – até estão a subir. Mas essa interpretação deve-se à forma pouco intuitiva como a inflação funciona e como se fala dela. Uma queda da inflação não significa que os preços vão descer (ainda que, em alguns produtos mais voláteis, isso aconteça), mas sim que eles subirão a um ritmo mais lento. E devemos estar satisfeitos com isso. Uma queda generalizada dos preços, aquilo que designamos por deflação, não é algo desejável numa economia. Portanto, é verdade que, em grande parte dos produtos, os preços permanecerão no nível em que estão agora.
Contudo, este é um desenvolvimento positivo também pelo que pode significar para os juros e aquilo que as famílias pagam todos os meses de prestação ao banco. Os dados observados em ambas as regiões sugerem que, em breve, teremos inflação abaixo dos 2%. Um cenário que parece plausível mesmo sem que todo o efeito da subida de juros se tenha materializado. Isto é, os preços estão a arrefecer mais do que se esperava e o aperto ainda se irá sentir por alguns meses.
Da descida rápida da inflação depende o timing de alívio dos juros por parte dos bancos centrais. A Reserva Federal dos Estados Unidos e o Banco Central Europeu rejeitam qualquer tentativa de os fazer falar no tema, mas essa determinação pode deixar de fazer sentido se os dados seguirem a trajetória dos últimos meses.
“A economia está numa contração ligeira, o mercado de trabalho está a perder força, a confiança e a procura externa estão fracas. Não é um ambiente dominado pelo risco ascendente de inflação. Cortes de juros do BCE estão próximos”, prevê Daniel Kral, economista da Oxford Economics. “A inflação recuperará nos próximos meses, mas o mais difícil está feito e o risco é estar a apertar demasiado. O BCE não deve cantar vitória, mas deve preparar-se para uma recalibração dos juros na primeira metade de 2024”, diz Frederik Ducrozet, do Pictet Wealth Management.
Os banqueiros centrais sabem que os investidores reagem com voracidade a qualquer pista de um alívio de juros, o que os leva a serem extra-conservadoras naquilo que dizem. Christine Lagarde tem sublinhado que é demasiado cedo para “gritar vitória” na luta contra a inflação, avisando que ela pode subir nos próximos meses e garantiu que não irá descer juros nos próximos dois trimestres, mantendo-se fiel ao seu mantra “higher for longer” ([juros] altos por mais tempo).
No entanto, os mercados parecem olhar menos para as palavras e mais para os números que vão sendo publicados. Os investidores estão a apostar numa primeira descida de juros em abril e num corte de 1,15 pontos ao longo de 2024. Aliás, acham que um corte já em março é uma questão de 50/50. Nos EUA, a expectativa é de que a primeira descida ocorra em maio.
Em reação aos dados conhecidos esta quinta-feira, 30 de novembro, Ducrozet aponta para a homogeneidade da descida da inflação subjacente, apanhando a periferia e o centro da zona euro. Oliver Rakau, também da Oxford Economics, nota que “há zero razões para ainda falar de subida de juros e todas as razões para, pelo menos, discutir condições e timing para cortes”,
Andrew Kenningham, economista-chefe para a Europa do Capital Economics, espera que o BCE reitere na reunião de dezembro que é demasiado cedo para descer juros. Contudo, “com a inflação e a inflação subjacente a provavelmente recuarem no próximo ano, será difícil ao BCE ignorar a força da mudança da maré inflacionária”. “Com condições próximas da recessão a prolongarem-se e a inflação a ficar próximo de 2% em meados de 2024, achamos que os argumentos para aliviar a sua política monetária serão demasiado fortes para o BCE resistir.”
Poderemos assistir a um braço-de-ferro no horizonte. E se é verdade que não se deve apostar contra bancos centrais, estes também não podem ignorar mudanças na realidade. A este ritmo, pode ser menos uma questão de descer juros para aliviar a economia, mas para a salvar da recessão e impedir que os preços regressem a valores perto do zero. Recentemente, o CEO do Walmart já avisou que poderemos ter meses de deflação nos bens alimentares nos EUA. Na zona euro, a Bélgica está há dois meses com quebra de preços.
O BCE tem recomendado cautela, argumentando que o caminho até agora pode ter sido rápido, mas que o último quilómetro de uma maratona é sempre o mais difícil. Na Fed, aponta-se para o facto de que estes meses são uma espécie de simulação de corpo da inflação, que pode voltar a surpreender em dezembro e janeiro. Em ambos os blocos a expectativa é de que a inflação volte a subir antes da descida definitiva.
“Dado que o impacto total do aperto [monetário] feito até agora ainda se manifestará nos próximos meses, o risco de que o BCE já tenha apertado demasiado é até alto”, escrevia ontem Carsten Brzeski, do ING. “Por agora, e definitivamente na reunião de dezembro, o BCE tentará evitar sequer mencionar o até, para usar as palavras de Christine Lagarde, “proferir” cortes de juros. Em vez disso, o BCE tentará influenciar as expectativas de mercado, avisando para o “difícil último quilómetro”. Porém, o BCE ainda não disse onde esse último quilómetro nos leva, quais são taxas de inflação consistentemente abaixo de 2% ou expectativas e previsões de inflação a rondar os 2%. Embora concordemos que a primeira não será fácil, a segunda pode ser um passeio no parque.”
Os mesmos erros
Os números dos últimos meses voltaram a animar um debate que parecia estar morto: esta inflação era transitória ou estrutural? A aceleração dos preços e a reação agressiva dos bancos centrais parecia ter dado a resposta. A inflação não era passageira e exigia uma atuação decisiva de política monetária. Contudo, agora que olhamos para a sua evolução, talvez a “equipa transitória” não estivesse *assim* tão errada.
“Quanto muito a descida da inflação aconteceu apesar da atuação dos bancos centrais, não por causa dela”, afirmou recentemente o Nobel da Economia Joseph Stiglitz, notando que o ciclo de subidas não contrariou uma inflação empurrada pela oferta e por mudanças na procura, sendo até responsável por colocar um travão à construção e por subidas das prestações da casa.
O debate na zona euro parece ser ainda mais complicado. É que, enquanto a inflação nos EUA tinha, de facto, uma componente relevante de procura, na Europa era relativamente consensual que a pressão estava mais do lado da oferta (choque no mercado de energia, problemas nas cadeias de abastecimento, etc), o que levava muitos a argumentar que subir juros teria um efeito marginal nos preços. Podemos a assistir precisamente a isso.
“Temos defendido há muito que o BCE apertou [subiu] demasiado”, diz Robin Brooks. “Há claramente riscos descendentes cada vez maiores para estas previsões. A severidade das subidas do BCE parece cada vez mais um erro de política.”
Na verdade, essa tendência parece estar a observar-se um pouco por todo o mundo. Uma análise da Goldman Sachs destacada pela Bloomberg concluía que foi o fim do choque Covid que levou à explosão da inflação e, agora, à sua normalização. O banco de investimento mostrava que em vários países de várias regiões, com diferentes respostas de política orçamental e monetária, se observa a mesma tendência: aceleração dos preços e, agora, arrefecimento. O que tiveram todos em comum? A mais devastadora pandemia em 100 anos e uma reabertura repentina da economia.
Este debate não é feito a preto e branco. Poucas pessoas acham que a Fed e o BCE deviam ter ficado parados enquanto a inflação superava os dois dígitos. Mas a dose a aplicar é igualmente importante. No final deste processo, será necessário avaliar o comportamento dos bancos centrais, onde acertaram e onde falharam.
Em resposta à EXAME, Erik Nielsen, consultor do UniCredit, dizia que uma coisa era certa: se a natureza da inflação era diferente nos EUA e na zona euro, Fed e BCE não podem estar ambos certos na sua atuação. “Na minha opinião, parece cada vez mais claro que foi o BCE que apertou demasiado. Mas para aqueles que defendem a sua atuação, eu pergunto: isso significa que a Fed tem ainda de fazer mais, certo?”, questionava por email. “O BCE esteve certo em tirar os juros de território negativo e acabar com o QE [Quantitative Easing]. Mas deviam ter parado – ou tentado parar – entre os 2% e os 3%, utilizando as suas capacidades de comunicação para persuadir os parceiros sociais de que isto foi um doloroso choque da oferta e não algo que merecesse uma enorme travagem da economia.”
É possível até que o BCE tenha conseguido errar duas vezes. “Quando a inflação subiu, o BCE subestimou a velocidade desse aumento; agora que a inflação desce, subestima a velocidade da sua diminuição”, escrevia no Twitter Paul De Grauwe, professor de economia da London School of Economics e vice-presidente do Conselho das Finanças Públicas.
A possibilidade de que tantos economistas se tenham enganado na leitura dos dados tem levado alguns a pedirem uma avaliação mais profunda da forma como este campo olha para o mundo. “A questão que deveríamos estar a colocar, então, é se há algo de errado com a economia mainstream. Os economistas mainstream deveriam reexaminar as suas convicções ou talvez precisemos de um mainstream totalmente novo”, defendeu James Galbraith, no Project Syndicate.
No entanto, se a pandemia nos ensinou alguma coisa é que essas reflexões demoram a ser feitas e nem sempre as lições são assimiladas.