Navios gigantes, imprevisibilidade de horários e rotas, velocidade limitada, explosão da procura durante a pandemia e também algum azar. O “Ever Given” parece ter ficado bloqueado há anos no Canal Suez, mas foi há pouco mais de mês. Além de ter dado um abanão no fornecimento de mercadorias por todo o mundo – impacto que ainda se está a sentir hoje – o incidente foi revelador dos efeitos perversos de algumas tendências centrais no transporte marítimo nas últimas décadas. .
Ainda antes do bloqueio, a pandemia já tinha começado a expor algumas dessas fragilidades.
Tenho dois contentores de matéria- -prima encomendados que me disseram que teriam embarcado num determinado navio. Quando fui rastrear, afinal vieram em navios diferentes. Um, deverá chegar a 1 de março, o outro só no final do mês”, conta à EXAME. “O fornecedor já nos diz: ‘A mercadoria custa x aqui, mas não inclui o preço do transporte, como antigamente.’ Agora, o preço do transporte acrescenta-se depois”, continua o administrador da empresa da Gandra, Esposende. E o preço parece andar ao sabor “da especulação”, “pode custar três, quatro, cinco, seis ou sete vezes mais, dependendo do dia.” Ou seja, “um contentor que há um ano custava dois mil dólares, tem custado agora entre seis e dez mil dólares”.
A citação é de Jorge Pereira, administrador da Lipaco – Linhas para Confeções, em declarações à EXAME, na revista de março. Ele descreve problemas vividos por muitos industriais dependentes de importações chinesas, tanto na Europa como nos Estados Unidos.
O cenário de barcos meio vazios que existia no pré-pandemia foi substituído por uma guerra pelo direito a cada metro quadrado do convés destes mega-cargueiros e por esperas esperas cada vez mais longas para descarregar nos portos europeus e americanos.
“Segunda-feira de manhã, 24 cargueiros – com uma capacidade de armazenagem 10 vezes superior ao navio desbloqueado [no Canal de Suez] – estavam ancorados perto da costa, à espera de espaço nos portos de Los Angeles e Long Beach”, escrevia o “Wall Street Journal” há alguns dias.
Carregam essencialmente mobília, pequenos eletrodomésticos, equipamentos médicos e eletrónicos e produtos de higiene pessoal. Um destes navios esperava há 12 dias por vaga no porto. E 1/4 das embarcações que chega aquela zona da Califórnia tem aguardado mais de 5 dias para ser descarregada, enquanto no verão do ano passado apenas 2% demorava esse tempo.
Quando estes navios conseguem finalmente deixar as mercadorias que carregam, estão tão pressionados para regressar o mais rápido possível – normalmente à China – que nem têm tempo, por vezes, para voltar a carregar com novos contentores cheios, o que penaliza as exportações dos Estados Unidos.
A pandemia teve um impacto nas cadeias de abastecimento e não é preciso olhar para mais longe do que para a “crise de contentores” e a fila de navios à espera de descarregar no porto de Los Angeles
“A pandemia teve um impacto nas cadeias de abastecimento e não é preciso olhar para mais longe do que para a “crise de contentores” e a fila de navios à espera de descarregar no porto de Los Angeles. Isso foi exacerbado pela procura dos consumidores ocidentais por bens chineses”, refere a International Chamber of Shipping (ICS), a maior representante de empresas de transporte marítimo, em resposta por email à EXAME. “Como com qualquer mercado, ele flutua naturalmente, como vimos com a subida de preços e escassez de contentores, e assim continuaremos a ver.”
O organismo explica que o sistema de transporte tem-se tornado cada vez mais sofisticado, com cadeias de abastecimento que dependem de rotas marítimas percorridas em horários relativamente estáveis e rígidos. A Covid-19 foi um enorme teste de stress para o setor: mais dificuldade em substituir equipas, restrições de entradas e saídas, além dos obstáculos normais que todos enfrentamos nas empresas onde trabalhamos.
“You’re Gonna Need a Bigger Boat”
No entanto, há quem argumente que as condições extraordinárias vividas nos últimos meses pelo setor não explicam todos os problemas do transporte marítimo, notando que a forma como a indústria se tem organizado nas últimas décadas criou obstáculos estruturais. No centro das críticas está uma observação fácil de perceber para todos: o raio dos barcos são demasiado grandes.
“A primeira viagem de um cargueiro foi em 1956 e levava 58 contentores. Hoje, transportam 12 mil”, aponta Marc Levinson, autor do livro “The Box: How the Shipping Container Made the World Smaller and the World Economy Bigger”. No podcast Odd Lots, o economista sublinha a diferença dramática na capacidade de transporte destes mega-navios na última década e meia. Depois de uma evolução relativamente estável, uma empresa mudou o jogo.
“Em 2003, a Maersk, da Dinamarca, achava que estava perto de atingir o limite de capacidade e precisava de navios maiores. Então encomendou 7 navios 60% maiores do que os que circulavam nos oceanos”, acrescenta Levinson. Hoje, estes navios têm capacidades que podem chegar a 24 mil TEUs (twenty-foot equivalent unit, unidade equivalente a 20 pés, em português), uma unidade utilizada para medir a capacidade de carga destes navios, tendo por base as dimensões dos contentores standard. Os maiores têm 400 metros de comprimento e 60 de largura.

Na altura, com o comércio internacional em expansão, a lógica parecia à prova de bala: se as viagens são longas, previsíveis e com poucas paragens, faz sentido que cada embarcação leve o máximo de mercadoria possível, maximizando os lucros da empresa. A partir de 2006, esses novos gigantes começaram a circular nos oceanos e a concorrência percebeu que corria o risco de ficar em desvantagem.
Pouparam dinheiro? “Na vertente marítima, sim”, diz Levinson. Mas a crise de 2008 mudaria o comércio internacional. Após décadas de crescimento mais rápido do que a própria atividade económica, as trocas de mercadorias nunca regressaram ao ritmo pré-choque financeiro. As empresas de transporte tinham aumentado a capacidade de transporte dos seus navios, antecipando um aumento da procura que nunca chegou.
“Passaram a ter o problema de não terem carga suficiente para encher esses mega-navios e houve muitas falências”. “Depois da crise financeira [de 2008], o comércio não recuperou [totalmente]. Havia muitos navios meio-vazios”, acrescenta o economista. Na verdade, ao trazer uma nova explosão de encomendas, “a pandemia salvou a indústria de transporte marítimo”.
A pandemia salvou a indústria de transporte marítimo
marc Levinson
Levinson explica que o tamanho dos navios se tornou num desafio logístico. As empresas de transporte preocuparam-se em maximizar as suas receitas sem se preocuparem muito com as adaptações que seriam necessárias ao resto da infraestrutura de transporte para acomodar essa maior dimensão. O problema principal está nos portos.
Estes mega-navios não são muito mais longos do que as versões anteriores, mas são mais largos. Como as gruas que retiram e colocam os contentores estão posicionadas ao lado do navio, isso significa que o mesmo número de gruas é responsável por mover mais contentores. Demora mais tempo a descarregar, o que atrasa a saída do porto. Além disso, estes navios foram feitos para andar devagar, o que permite poupar dinheiro e reduzir as emissões de gases com efeito de estufa. Mas também “significa que, quando se atrasam, não podem compensar esse atraso” acelerando.

Ainda está a decorrer um inquérito sobre as causas do acidente que bloqueou o Canal de Suez, mas ele, pelo menos, colocou os holofotes sobre o problema: teria acontecido com uma embarcação mais pequena? Os navios parados teriam mais alternativas se não tivessem aquela dimensão? Embora existam barcos maiores do que o Ever Given, o bloqueio expôs a falta de agilidade destas embarcações carregadas de esteróides.
A ICS reconhece que “se caminhou no sentido de cargueiros super-grandes”, mas prefere sublinhar o lado positivo dessa mudança: “mega-cargueiros contribuem para o progresso dos países em desenvolvimento e significam que mais contentores podem ser transportados com menos navios, o que se traduz num menor impacto ambiental”, dizem à EXAME.
Ainda assim, admitem que isso significa mais tempo passado nos portos e a necessidade de que estas e zonas de passagem mais sensíveis – cof cof Suez – se adaptem à dimensão destes navios.
Mais acidentes
A lotação dos cargueiros tem tido outro efeito secundário: cada vez mais contentores caem ao mar. Navios cheios e equipas pressionadas estão a criar um ambiente mais suscetível a acidentes. No ano passado, perderam-se 3 mil contentores.
“Existem várias razões para esta súbita subida do número de acidentes. As condições meteorológicas estão a tornar-se mais imprevisíveis, enquanto os navios são maiores, permitindo que os contentores sejam empilhados mais alto do que antes. Mas a agravar muito mais a situação está um crescimento do comércio eletrónico, depois da procura ter explodido durante a pandemia, aumentando a urgência para que o transporte entregue os produtos o mais rápido possível.”
O excerto anterior é da Bloomberg. O mesmo artigo refere que, perante uma tempestade, os capitães são agora pressionados a atravessá-la em vez de a tentarem contornar. Os acidentes só estão à espera de acontecer.
Problema invisível
O transporte marítimo é um processo invisível para a generalidade das pessoas, o que torna fácil ignorar a sua centralidade para o comércio mundial. O bloqueio do Canal de Suez lembrou-nos de que ele é responsável por 90% do comércio de bens. O seu plasma e frigorífico provavelmente viajaram num destes navios.
Todos os dias passam 52 navios pelo Canal de Suez. Ao longo de 2020 foram quase 19 mil, com quase 1,2 mil milhões de toneladas nos seus contentores. Pode algo tão importante ficar dependente de uma rajada de vento mais forte ou um capitão negligente? E há ainda considerações geopolíticas a ter em conta.
“Os poucos “pontos de estrangulamento” marítimos estão sob cada vez maior pressão”, escreve Filip Medunic. “O principal perigo no horizonte é subestimar a dimensão destas interdependências globais e as vulnerabilidades destes pontos. Com as tensões geopolíticas a aumentar, torna-se mais provável que os Estados militarizem esses pontos para forçar outros a certos tipos de comportamento.”
Com as tensões geopolíticas a aumentar, torna-se mais provável que os Estados militarizem esses pontos para forçar outros a certos tipos de comportamento
Filip medunic
O acidente com o Ever Given parece ter-nos acordado um pouco para o tema. O preço do transporte marítimo aumentou mais de 10% desde o bloqueio, o que tem levado algumas empresas a recorrer a alternativas aéreas (mais caras) ou ferroviárias (mais lentas). Além disso, foi mais um argumento a favor da diversificação das cadeias de valor depois de, no início da pandemia, ter sido um dos assuntos mais debatidos.
“As empresas que criaram estas grandes cadeias de abastecimento subestimaram os riscos. Não contaram com o custo de os bens não chegarem a tempo, o que pode ser significativo”, diz Levinson, notando que parece haver mais interesse em “redundância” e “resiliência”. Por exemplo, empresas americanas têm tentado reforçar os stocks, para ficarem menos dependentes do “just-in-time”. Veremos quanto tempo dura a recém-encontrada preocupação.