A Peste Negra foi responsável por uma melhoria do poder negocial dos trabalhadores, que deixou as elites muito nervosas. Escrevemos sobre isto há alguns dias. A Covid-19 não deverá deixar-nos numa situação semelhante. Em primeiro lugar, o óbvio: metade da população europeia não vai morrer com este vírus. Essa é a boa notícia! A má é que as próprias estruturas de organização laboral podem não permitir avanços significativos para os trabalhadores.
As últimas décadas trouxeram uma divergência entre a evolução da produtividade e o salários dos trabalhadores. Uma preocupação recorrente de economistas e instituições internacionais. Se as mesmas horas de trabalho estão a produzir mais, os salários não deveriam acompanhar essa evolução?
Diferentes versões deste gráfico começaram a circular, mostrando que os trabalhadores não estão a levar para casa uma fatia “justa” do novo valor que estão a criar. Este tem dados dos EUA, mas o agregado de países da OCDE – onde está incluído Portugal – vive exatamente a mesma realidade, embora com alguma heterogeneidade entre países, a que se junta uma desigualdade crescente.
No início da pandemia, chegou a discutir-se a possibilidade de ressurgimento da capacidade negocial dos trabalhadores, após décadas de perda, em que a fatia do trabalho foi recuando face a capital. Hoje, não só é mais claro o risco de a pandemia agravar as desigualdades, como é possível que os trabalhadores saiam numa posição ainda mais frágil desta crise.
“Esta pandemia expõe a falta de poder dos trabalhadores nos EUA e em muitos outros países”, diz Anna Stansbury à VISÃO. A economista está a terminar o doutoramento em Harvard e, em maio, publicou com Lawrence Summers, ex-secretário do Tesouro de Bill Clinton e principal conselheiro económico na administração Obama, um estudo sobre os motivos para a diminuição da fatia de riqueza que fica para os trabalhadores norte-americanos e o fraco crescimento dos salários nos últimos anos. Os dois economistas concluíam que a perda de poder negocial era o fator mais importante para essa transformação.
E eles eram explícitos nos motivos: menos influência dos sindicatos, diminuição do salário mínimo real, mais ativismo da parte dos acionistas das empresas (na exigência de lucro imediato) e mais práticas de gestão implacáveis que, entre outras medidas, pressionaram essa capacidade reivindicativa.
Outras hipóteses de explicação para o que está a acontecer ao rendimento do trabalho seria olhar para a globalização, as mudanças tecnológicas ou para a existência de mais situações de monopólio. Todas elas têm sido apontadas como possíveis responsáveis. Stansbury e Summers acham que, embora todos esses fatores se relacionem e alimentem, “a hipótese de diminuição do poder dos trabalhadores é a narrativa central certa para perceber as tendência de distribuição do rendimento, lucro e da NAIRU [taxa de desemprego não aceleradora da inflação]”.
Isso significa que a ideia de algum fatalismo na forma como se olha para estas transformações não faz sentido. Não existe determinismo: os governos podem intervir para reforçar esse poder negocial. “Em conjunto com tributação progressiva e redistribuição, os responsáveis políticos preocupados com equidade e justiça podem considerar mudanças na estrutura das instituições capitalistas para reconstruir o contrapoder dos trabalhadores”, escrevem, sugerindo que os EUA olhem para outras economias industrializadas e tirem algumas lições.
A importância dos sindicatos
Se o cenário já era de perda de poder dos trabalhadores, o que significará uma pandemia para esta realidade? “Numa altura em que, nos EUA e em muitos outros países, o desemprego está muito elevado para trabalhadores de salários baixos – e com poucas probabilidades de regressarmos à normalidade por algum tempo –, a capacidade negocial dos trabalhadores fica ainda mais reduzida”, responde Stansbury.
A economista aponta novamente para os EUA, onde muitos “foram forçados a trabalhar mesmo sem equipamento de proteção suficiente ou práticas de local de trabalho que permitissem manterem-se seguros”, nomeadamente nas cadeias de distribuição alimentares, entregas, logística e limpeza. “Poderíamos ter pensado que, durante uma pandemia e o encerramento da economia, trabalhadores essenciais utilizariam o seu poder para exigirem melhor tratamento, mas as greves e os protestos enfrentaram grande resistência dos empregadores e foram normalmente mal-sucedidas”, acrescenta.
Marta Lopes não está tão certa de que vá ficar tudo na mesma. A professora na Universidade Carlos III de Madrid admite que possam existir efeitos positivos, talvez não nos salários mas, por exemplo, na exigência de horários flexíveis. A concretização desses avanços dependerá muito da produtividade das empresas e dos níveis de sindicalização e de cobertura por contratos coletivos de trabalho.
“É bom apresentar as duas hipóteses: por um lado, setores mais sindicalizados e com mais contratos coletivos de trabalho podem ter mais força para responder à pandemia; por outro, os que têm menos podem ter margem para reforçar a contratação coletiva ou conseguir mais contrapartidas da parte dos empregadores”, admite a economista, especializada em mercado de trabalho.
Os economistas têm prestado cada vez mais atenção ao impacto dos sindicatos. Nas últimas décadas, os níveis de sindicalização dos trabalhadores têm recuado um pouco por todas as economias avançadas e vai havendo mais investigação a relacionar essa transformação com uma o crescimento da desigualdade. Em 2015, um paper do FMI chamava a atenção para isso, argumentando que níveis mais elevados de sindicalização e de salários mínimos estavam correlacionados com menores níveis de desigualdade.
Há poucos meses, outro estudo lembrava que a sindicalização estava também relacionada com maior bem-estar para os trabalhadores. “Encontramos correlações positivas entre a sindicalização e o bem-estar dos trabalhadores numa série de métricas, tanto nos EUA como na Europa desde a viragem do século”, escrevem os autores. Isso significa mais “satisfação com a vida, felicidade, e confiança, bem como satisfação com a democracia, educação e a economia em geral”. Há também uma relação negativa com depressão e tristeza.
Como é que isso se explica? De forma resumida, embora haja muito menos trabalhadores sindicalizados, os sindicatos fazem o que sempre fizeram. O prémio salarial por estar integrado num sindicato praticamente não mudou desde os anos 70. O mundo “não sindicalizado” é que parece ter piorado nos últimos anos.
Para o futuro, alguns economistas veem aqui uma possível área de atuação. Um reforço dos níveis de sindicalização, incentivado pelos poderes públicos, seria um passo na direção certa. “Aumentar a sindicalização é muito importante para gerar um aumento sustentado do poder económico para trabalhadores de baixos e médios salários: tanto na criação de melhores condições salariais, e outros benefícios, como na defesa de melhores condições no local de trabalho, incluindo de segurança e saúde, de autonomia e de dignidade no trabalho”, refere Stansbury.
Como é que isto pode ser feito? Há muitas ideias. Noah Smith acha que a “idade de ouro” da organização laboral dos anos 50/60 não regressará e avança com duas possíveis reformas nos EUA: uma organização mais regional do que empresa a empresa e uma expansão dos “serviços” providenciados por um sindicato. Além da negociação salarial e de condições de trabalho, os sindicatos já providenciam, por exemplo, aconselhamento legal. Poderiam ser mais ambiciosos e servir de ponte para um trabalhador despedido a encontrar outro emprego, mesmo num setor diferente, naquela cidade ou região. Seria uma forma de terem mais poder sem abandonar as suas funções centrais.
Stansbury nota que, se os responsáveis políticos quiserem inverter a tendência de crescimento da desigualdade, “as nossas conclusões sugerem que o podem fazer, pelo menos parcialmente, através da promoção do poder dos trabalhadores”. Na prática, isso significa “apoio aos sindicatos” e “encorajamento de outras expressões de poder e voz dos trabalhadores no local de trabalho”. Uma possibilidade é pressionar as empresas a deixarem os trabalhadores terem mais influência na definição das condições de saúde e segurança, o que “poderia ter grande impacto durante esta pandemia”.
Contudo, a economista aconselha alguma cautela para que quaisquer medidas consideradas não prejudiquem o emprego. “Algumas formas de aumentar o poder dos trabalhadores podem ter efeitos mais sérios no desemprego do que outras.”
E Portugal?
Em Portugal, o número de trabalhadores sindicalizados tem recuado muito nas últimas décadas. Segundo os dados da OCDE, caiu de 60%, no final da década de 70, para perto de 15%, em 2016. Mas quando se olha para a abrangência dos contratos coletivos, Portugal continua a ter um nível elevado, “sobretudo quando comparada com outros países da OCDE”, aponta Marta Lopes. As reformas do período de austeridade não revolucionaram o mercado de trabalho, mas trouxeram algumas diferenças. “As mudanças requeridas pela Troika diminuíram o número de contratos coletivos nos último anos”, acrescenta a economista.
Se as perspetivas acerca do poder negocial dos trabalhadores estiverem ligadas à abrangência da contratação coletiva, as diferenças regionais e setoriais podem dar-nos algumas pistas sobre o futuro das relações laborais. Em Lisboa, pouco mais de 50% dos trabalhadores são abrangidos, o que contrasta com 70% ou mais em todas as outras regiões do País (o valor mais alto vem da Madeira, com 76%), mostram-nos os dados citados por Marta Lopes.
O setor com maior percentagem de trabalhadores abrangidos por acordos coletivos de trabalho é o da indústria extrativa, com mais de 91%, seguindo-se o alojamento/restauração (87%), a indústria transformadora (84%), a construção (82%) e o comércio (81%). Do lado oposto do espectro, está a Administração Pública e a Defesa (3%), a banca e os seguros (9%).
Mas em vez de nos apressarmos a tirar conclusões muito definitivas sobre estes valores, é preciso equilibrá-los com os níveis de precariedade em cada setor. Por exemplo, no caso da restauração/hotelaria, a percentagem elevada de trabalhadores abrangidos pela contratação coletiva convive com o segundo maior peso de contratos a prazo e a recibos verdes (53%) e com os salários mais baixos de toda a economia.
A extensão dos contratos coletivos tem sido alvo de discussão nas últimas semanas, entre o Governo e os partidos à esquerda. Para tentar viabilizar o Orçamento do Estado, o Executivo já se comprometeu com uma moratória de 24 meses à caducidade das convenções coletivas de trabalho, a qual deverá abranger 400 acordos e cerca de três milhões de trabalhadores. Os trabalhadores em outsourcing devem também ficam abrangidos pela contratação coletiva.
Sindicato-Zoom
Mas há mais obstáculos. O ambiente pandémico que vivemos hoje torna a mobilização ainda mais complicada. Com o teletrabalho ou o layoff, os trabalhadores não se encontram fisicamente e existem mais limitações à organização de protestos.
“A pandemia, pela sua natureza, desmobiliza. Os sindicatos têm menos importância, os setores mais precários têm menos capacidade reivindicativa. A própria natureza do fenómeno põe em causa a ação coletiva”, explica Renato do Carmo, diretor do Observatório das Desigualdades. “Na crise anterior, houve uma forte ação coletiva, com grandes manifestações em Portugal, Espanha, Grécia… Movimentos sociais fortes e com presença quase permanente. Os acampamentos, por exemplo, seriam impossíveis neste contexto.”
Stansbury concorda. “A nova organização de sindicatos pode ser mais difícil se o trabalho a partir de casa estiver para ficar para um grande número de pessoas, porque uma componente importante da organização sindical no passado envolvia interações cara a cara no local de trabalho: os organizadores a falarem com as pessoas sobre as suas preocupações e sobre o que a sindicalização pode alcançar, fazer reuniões e partilhar informação”, sublinha à VISÃO.
Com duas crises em pouco mais de uma década, as feridas económicas sofridas pelos trabalhadores podem demorar muitos anos a sarar, principalmente para quem entrou há menos tempo no mercado de trabalho.
Mais: novas formas de trabalho com grande crescimento – nomeadamente naquilo a que chamamos “gig economy”, onde está, por exemplo, a Uber – tornam essa organização muito complicada, uma vez que nem a classificação “trabalhador” é aceite por todos os empregadores. Estas empresas já estavam a crescer antes de sabermos soletrar Covid-19 e isso só deverá intensificar-se. A Organização Internacional do Trabalho alertava que podíamos estar a viver um recuo de mais de 100 anos dos direitos dos trabalhadores. Segundo a OIT, as plataformas de crowdworking “podem recriar práticas laborais do século XIX e gerações futuras de trabalhadores digitais à jorna”.
“Muitos trabalhadores que são legalmente definidos como colaboradores independentes ou que trabalham para agências subcontratadas, têm a capacidade de negociação com o seu empregador final limitada pelo facto de não serem considerados empregados”, acrescenta Stansbury.
Mas a economista não acha que a pandemia seja o principal fator a travar a maior sindicalização nos EUA, mas sim o ambiente legal e político. “As proteções legais para os trabalhadores que se tentem organizar em novos sindicatos nos EUA são muito fracas”, explica. Talvez alguns dos leitores tenham visto o documentário American Factory. Em Portugal, ficámos a conhecer o caso de Cristina Tavares e as retaliações que sofreu quando decidiu recorrer aos tribunais para evitar o despedimento.
Não é difícil imaginar que os trabalhadores encontrem formas inovadoras para se organizarem. Aliás, a história do movimento laboral foi feita de adversidades ultrapassadas. Mas, nesta altura, os obstáculos parecem ser grandes.