Quanto vale aquele pão caseiro que fez no outro dia no forno? E as horas passadas a aspirar o pó que parece estar em máximos históricos em todos os cantos da casa? Ou o tempo passado a tomar conta dos filhos que deviam estar na creche? Todos estes gestos contribuem para o bem-estar das famílias e, mais do que isso, todos têm um valor económico. Mas quando chega a hora de o estimar, são excluídos. O trabalho doméstico não conta para o produto interno bruto (PIB). Essa limitação fica mais exposta quando o tempo que passamos dentro de casa dispara para conter o avanço de um vírus.
Quando começámos a usar medidas como o PIB (e os seus antecessores mais primitivos), elas pretendiam dar-nos uma ideia do andamento da economia. Em vez de confiar em índices setoriais, servia como um velocímetro. Uma forma rápida e sintética de avaliar a solidez económica de um país. Nunca foi o seu objetivo ser uma medida universal de bem-estar da população. Hoje, ele é visto como o indicador dos indicadores. Se está a crescer a bom ritmo aquele país está no bom caminho. Se estiver a avançar lentamente ou, o pesadelo dos economistas, a cair, então é altura de fazer soar os alarmes.
No entanto, são cada vez mais óbvias as limitações do PIB como “número omnisciente”. Uma fábrica que despeje resíduos tóxicos para um rio não prejudica em nada o PIB (se isso fizer com que seja mais produtiva, até pode ajudar). O PIB também não inclui trabalho voluntário – que em Portugal representa 4% das horas totais trabalhadas -, tem muitas dificuldades em captar o valor de serviços de Internet gratuitos (email, skype) e, aquilo que nos interessa neste caso, não conta com o trabalho doméstico não pago, seja passar a ferro, cozinhar, limpar a casa ou cuidador de crianças e idosos. Sem elas, poderia perder o emprego na banca de investimento, ficar subnutrido ou ser expulso pelo seu senhorio. Em causa não está, portanto, a sua importância. Porque é que não contam?
O Instituto Nacional de Estatística (INE) explica-nos que “a não inclusão destas atividades na fronteira de produção das contas nacionais está em grande medida associada à complexidade na elaboração de estimativas robustas”. Isso é especialmente problemático quando se pensa que estes indicadores têm de ser comparáveis entre países, especialmente no espaço da União Europeia.
Existem dois problemas centrais: como se deve medir; e que valor se deve atribuir? As contas nacionais normalmente assumem como princípio uma valorização a preços de mercado e estas atividades estão fora do mercado. “Neste caso do trabalho doméstico não pago, não existe propriamente uma oposição de interesses entre oferta e procura que gere um preço de mercado. Assim, qual o preço a utilizar nessa valorização?”, questiona o INE, em resposta à EXAME.
Será que uma refeição caseira feita pela nossa mãe deve custar o mesmo que uma ida ao McDonald’s? Ou deve ter o preço de um restaurante com estrela Michelin? Mesmo que fosse possível responder a esta pergunta num caso específico, como se aplicaria essa avaliação a todas as casas e a todas as mães da Europa?
Em causa está aquilo a que se chama a “fronteira da produção”. Isto é, a linha (mais ou menos arbitrária) a partir da qual não se considera que determinada atividade seja incluída nas contas nacionais (e no PIB). A fronteira geral determina que a produção económica diga respeito a uma atividade que utilize “trabalho, capital e bens e serviços para produzir outros bens e serviços”. Processos “puramente naturais” estão excluídos. Isto é, o crescimento do número de peixes no mar não conta, mas a sua produção em viveiros, sim.
E qual é o problema do trabalho doméstico não pago? O System of National Accounts (SNA) 2008 admite que, tanto nesse caso como no do voluntariado, “essa contribuição de tempo aumenta o bem-estar de outros indivíduos na comunidade” e explica que a sua exclusão “não é uma negação das propriedades de bem-estar”, mas sim “o reconhecimento de que a sua inclusão iria retirar, em vez de acrescentar, utilidade ao SNA para fazer aquilo para que está desenhado, que é análise económica, tomada de decisões e definição de políticas”.
O economista Paul Samuelson costumava brincar que, se quiser ajudar o PIB, nunca deve casar com a sua empregada doméstica. Se ela continuar a limpar a casa ou se passarem a partilhar essa tarefa, não haverá um salário a ser pago e isso penalizará o PIB. Ignore o estereótipo de género ultrapassado. O que Samuelson queria exemplificar era as limitações do PIB e porque devemos ser cautelosos a analisá-lo. Outras opções metodológicas poderiam dar-nos um retrato diferente.
E essas opções podem estar a esconder-nos uma grande fatia de atividade económica. Quanto? Temos apenas estimativas não oficiais. Nos anos 90, a OCDE calculava que o trabalho doméstico não pago representava 35% do PIB alemão e 50% do australiano. Contas mais recentes, de um outro estudo de 2010, sugeriam que em Portugal ele vale 15% a 19% do PIB, com vários países europeus a superarem os 30%.
Os valores podem variar muito consoante o método. Existem essencialmente duas hipóteses: ou se assume que o tempo que gastou a passar a ferro seria usado no seu trabalho (neste caso, a escrever um texto para a EXAME) e pago da mesma forma; ou que aquela tarefa seria feita por alguém pago para isso e, portanto, teria o preço praticado por essas atividades.
Dados ainda mais recentes sugerem que, entre os países analisados, os valores variam entre 11,5% no Canadá e 23,7% do PIB em Itália se for assumido que aquelas tarefas seriam pagas a valores de mercado. Com a primeira metodologia, eles são mais elevados: entre 41,1% do PIB no Canadá e 66,4% na Alemanha.
Tendo em conta as dificuldades de quantificação e harmonização entre países referidas anteriormente, não se espera uma revolução nesta área nos próximos tempos. Mas talvez haja algumas novidades. O INE lembra que o tema está a ser discutido para futuras revisões das regras das contas nacionais, assim como a valorização de serviços de Internet não pagos (que substituíram serviços pelos quais pagávamos ou que nos tomavam mais tempo). “Embora se reconheça a relevância destes fenómenos, a sua inclusão na fronteira de produção das contas nacionais (no PIB) dependerá sempre de se encontrarem soluções de registo robustas, fiáveis e que assegurem um nível suficiente de comparabilidade”, conclui o INE.
Cuidar dos filhos, fazer jardinagem, jogar à bola. Como está fora do mercado, uma grande fatia da nossa vida não é apanhada pelo PIB. Alguns diriam que é a melhor fatia. Talvez seja possível reconhecer-lhes a importância económica que têm, mas que as estatísticas ignoram. Afinal, a forma como escolhemos medir as coisas acaba também por se refletir nas nossas prioridades.
Mulheres mais penalizadas
Esta limitação do PIB em relação ao trabalho doméstico torna-se ainda mais problemática quando se pensa no papel das mulheres, que ainda são responsáveis pela maior parte dessas tarefas. Segundo o FMI, as mulheres de todo o mundo gastam, em média, 4,4 horas em tarefas domésticas não pagas, o que compara com apenas 1,7 horas para os homens.
Claro que estes números escondem uma grande heterogeneidade entre países. Na Noruega, por exemplo, existe uma diferença, mas muito menos expressiva (3,7h vs. 3h/dia), enquanto no Egipto o fosso é enorme: 5,4 horas vs 0,5 horas.
Isto significa uma participação mais limitada das mulheres no mercado de trabalho, com consequências negativas para a produtividade e o crescimento da economia. O FMI sublinha que, além de injusto, este fosso “é claramente ineficiente”.
Num documento publicado em 2014, a OCDE usava argumentos semelhantes. As suas estimativas divergem um pouco do FMI, mas a diferença entre homens e mulheres continua a ser enorme. Enquanto as mulheres passam três a seis horas com essas tarefas, para os homens é apenas uma a duas horas. Há diferenças entre regiões, mas o fosso está presente em todas.
Os economistas da OCDE notam que esta dimensão do trabalho doméstico é o “missing link” que ajuda a explicar a desigualdade salarial entre sexos, assim como as diferenças de participação no mercado de trabalho e qualidade do emprego. “Cada minuto a mais que uma mulher gasta com trabalho doméstico não pago é um minuto a menos que ela pode potencialmente gastar em atividades direcionadas ao mercado ou a investir na sua educação e formação”.
Uma situação que se tem agravado com a pandemia. Um estudo recente, publicado este mês, concluía aquilo que muito se tem repetido: a recessão provocada pela Covid-19 é especialmente dura para as mulheres, ao afectar mais setores onde elas constituem a maioria da mão de obra, como restaurantes, hotéis ou comércio. Em Portugal, estes são também setores com níveis elevados de precariedade, o que deixa os trabalhadores mais expostos ao risco de desemprego.
Esta diferença não se sente apenas no nível de emprego. O encerramento de escolas e creches deixou os pais com os filhos 24h por dia e, como já sublinhámos, foi necessário gastar mais tempo com outras tarefas. Como já são responsáveis pela maior parte das tarefas, estes meses terão deixado as mulheres ainda mais sobrecarregadas em casa.
Esse efeito arrisca ser tão relevante, que poderá levar à inversão de tendência de redução do fosso salarial entre homens e mulheres. Nos EUA, as mulheres ganham em média 81 cêntimos por cada dólar recebido por um homem. Se esta recessão tivesse as mesmas características das anteriores, isso deveria fazer com que esta diferença caísse para 83 cêntimos por cada dólar. Na realidade, com as atuais características da crise, os autores deste estudo calculam que as mulheres percam ainda mais terreno e essa remuneração caia para 76 cêntimos. Uma transformação que poderá ser estrutural. “Estimamos que demore mais de dez anos para a diferença salarial reduzir-se até ao ponto onde estava antes da pandemia”, diz um dos autores à NPR.
Na Inconsistência Problemática, escrevíamos há algumas semanas sobre o problema específico da área económica:
Num momento em que muitos economistas estão em contra-relógio para apresentar novos estudos e em que as maiores revistas académicas estão a ser inundadas por propostas de publicação sobre esta crise inédita, as mulheres não estão a apanhar esta onda, mostra outro estudo recente. Os motivos, segundo as autoras de um estudo publicado no VoxEU, são uma maior cautela na hora de apresentar conclusões e o facto de a divisão de trabalho doméstico recair mais sobre as mulheres, o que, num contexto de isolamento com a família, lhes roubou ainda mais tempo para fazer investigação.
Além de as colocar numa posição de desvantagem económica, todo este trabalho extra que as mulheres fazem nem sequer é reconhecido como um contributo para a riqueza do país pelos indicadores oficiais que usamos para avaliar o progresso
Estamos numa pandemia: não seja produtivo!
Este debate ganha maior relevância no contexto actual de pandemia, que começou por deixar-nos presos em casa para travar a progressão do vírus, mas que mantém muitas pessoas em teletrabalho, transformando salas e quartos em escritórios improvisados.
Com essa transformação veio uma pressão – muitas vezes auto-induzida – de “aproveitar” o facto de se estar em casa para fazer coisas que nunca tinham feito antes, seja arrumar finalmente aquele quarto que está uma confusão, cozinhar todo o pão que caiba no forno, aprender ponto cruz ou uma nova língua. Será que finalmente passará a meditar todos os dias? Ou começará aquele webinar sobre História de Arte? Shakespeare (alegadamente) escreveu o King Lear enquanto estava confinado devido à peste, e nós o que vamos ter para mostrar? Platinar jogos da PlayStation e varrer a biblioteca do Netflix?
Como resumia o NYT, “a Internet quer fazê-lo acreditar que não está a fazer o suficiente com esse “tempo extra” que tem agora”. Este ambiente criou a ideia de que é necessário maximizar o nosso tempo e aproveitar para fazer coisas que andamos a adiar. Isso é mais saliente nos EUA. Basta visitar um site de notícias norte-americano para perceber a atenção que é dada ao “aproveitamento” deste momento. “Esta mentalidade é o culminar da cultura de esforço da América – a ideia que cada nano-segundo das nossas vidas tem de ser mercantilizado e colocado ao serviço do lucro ou auto-aperfeiçoamento”, escrevia Nick Martin, na “New Republic”.
No Outline, Drew Millard defendia uma tese semelhante. “E nós não adoramos apenas o trabalho, mas experiências, como viajar até à Islândia, ver a tour de My Chemical Romance, ou esperar três horas para comer num restaurante novo, mas agora as nossas únicas experiências são uma variação de caminhar até ao final da rua, fazer uma viagem paranóica até à mercearia; sentar-nos no sofá a consumir media; comer e/ou fazer comida e por aí fora. Temos esta energia inutilizada por causa das condições atuais, portanto precisamos de algo para a canalizar, preferencialmente numa direção que faça alguém ganhar dinheiro (potencialmente até tu!).”
Mas será que, durante uma crise tão profunda, ficar em casa, trabalhar o possível, não morrer à fome, manter a casa minimamente limpa e conservar alguma saúde física e mental não é suficiente? Se algumas desta atividades tivessem tradução no andamento da economia, talvez não fôssemos tão duros connosco próprios para encontrar coisas mais “produtivas” para fazer.