O sofrimento económico provocado pela Covid-19 será transversal, mas nem todos o sentirão da mesma forma. Os mais novos deverão ser especialmente afetados. Embora tenham mais tempo para recuperar, as feridas financeiras que irão suportar podem demorar décadas a sarar. Para alguns, será a segunda grande crise que terão de enfrentar num momento crucial das suas vidas e das suas carreiras.
Pode parecer contra-intuitivo. Afinal, estão sempre a dizer-nos que os mais velhos são os mais vulneráveis durante esta pandemia. Isso é absolutamente verdade do lado da saúde pública. Na economia, verifica-se quase o contrário. Os jovens tendem a ser mais afetados em recessões. São mais fáceis de despedir e têm menos poupanças. No caso do choque Covid-19, têm ainda a jogar contra si o facto de os setores mais afetados serem também aqueles onde os jovens representam uma fatia maior dos trabalhadores.
“As crises atingem de forma mais forte os mais vulneráveis. Os jovens fazem parte desse grupo, especialmente quando se fala do impacto económico e social da pandemia”, escreve a Organização Internacional do Trabalho (OIT). De que forma? Há 5 efeitos fundamentais, citados pela OIT:
1- Os jovens tendem a ser mais afectados por recessões. No passado foi assim e, nesta crise, deve observar-se um efeito semelhante. Com pouca experiência, os mais novos começam normalmente as carreiras em situações de precariedade (contratos a prazo, falsos recibos verdes). Isso faz com que eles sejam os primeiros alvos de despedimentos ou redução do volume de trabalho. Se em vez de trabalhadores por conta de outrem, estivermos a falar de independentes, eles partilham essa vulnerabilidade: menos tempo no mercado de trabalho significa normalmente tesouraria mais frágil e menor capacidade para lidar com adversidade.
Em Portugal, essas contas são fáceis de fazer. Entre todos os trabalhadores por conta de outrem, 7% têm menos de 25 anos. Contudo, se olharmos apenas para os contratos a prazo e contratos de prestação de serviço, essa percentagem triplica: 21% dos trabalhadores com esses vínculos são jovens. Entre os que estão integrados nos quadros das empresas, os sub-25 não chegam sequer a 4%.
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Um estudo deste ano mostra que as taxas de desemprego jovem avançam, por todo o mundo, a um ritmo duas vezes mais rápido do que entre aqueles que têm mais de 25 anos. Em Portugal, a taxa de desemprego global disparou até aos 16,2% em 2013. Nesse mesmo ano, a taxa de desemprego jovem superava os 38%.
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E essa exclusão não desaparece totalmente quando a economia retoma. Estudos que se dedicaram a analisar a crise anterior concluíram que o desemprego de longo prazo também cresceu muito mais rápido entre os jovens do que os adultos, o que os coloca em risco de uma alienação mais permanente do mercado de trabalho.
2 – Muitos jovens integram as fileiras da economia informal, da atividade agrícola a pequenos cafés. A OIT calcula que 3/4 dos jovens por todo o mundo estejam nessa situação (com destaque para países mais pobres). Para estes, não haverá acesso a subsídio de desemprego ou a outros apoios que estão a ser desenvolvidos pelos governos nacionais. Cada semana sem trabalhar é um desafio enorme.
3 – A gig economy ou economia de plataforma também depende muito da mão-de-obra de jovem. Falamos de aplicações como a Uber, mas também de empresas como a Amazon (na área da entrega). E essa é apenas a face mais visível do fenómeno. Outras empresas desconhecidas para a generalidade das pessoas têm milhões de trabalhadores a desempenhar micro-tarefas online, como classificação de imagens, ler críticas de utilizadores ou preencher questionários. Essas novas formas de trabalho estão a fazer recuar os direitos dos trabalhadores, como já escrevemos por aqui. “Esses empregos têm salários baixos, horários irregulares, fraga segurança laboral e pouca ou nenhuma proteção social”, escreve a OIT. Este grupo partilha muitas das dificuldades daqueles que estão integrados na economia informal, ficando muitas vezes excluídos de apoios públicos.
Ninguém sabe exatamente qual a percentagem de jovens nestas empresas, mas um inquérito da OIT mostra que eles podem estar sobre-representados nas plataformas de micro-tarefas. Um inquérito recente concluía que a média de idades era 33,2 anos.
Esses empregos [na gig economy] têm salários baixos, horários irregulares, fraca segurança laboral e pouca ou nenhuma proteção social
Organização Internacional do Trabalho
4 – Os jovens trabalham também em setores especialmente atingidos pela atual crise, com destaque para os serviços. Se considerarmos toda a União Europeia, 1/3 dos trabalhadores com menos de 25 anos está no comércio, hotelaria e restauração, alguns dos ramos de atividade mais afetados pela pandemia. As mulheres podem estar numa situação especialmente vulnerável. A OIT nota que, no Reino Unido, 65% da mão-de-obra desses setores é feminina. Na Suíça é 57%.
Este efeito também é observável em Portugal. Entre toda a população empregada, cerca de 6% têm menos de 25 anos. Mas quando olhamos para o setor de hotelaria e restauração – provavelmente aquele que mais está a sofrer e que mais poderá ter de despedir – essa percentagem aproxima-se dos 14% É o valor mais elevado entre todos os ramos de atividade. No comércio é 10%.
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5 – Um estudo recente da OIT conclui também que o tipo de empregos que os jovens ocupam estão mais vulneráveis à automatização. Num cenário em que todos tentaremos durante meses diminuir o contacto social, substituir um humano por uma máquina pode ser ainda mais tentador para as empresas que tenham capital para investir.
Jovens em PME poderão ser mais atingidos
Em Portugal, os poucos dados que temos já refletem essa fragilidade dos mais novos. O estudo “Trabalho e Desigualdades no Grande Confinamento”, pelo CoLabor – Laboratório Colaborativo para o Trabalho, aponta no mesmo sentido. Com uma amostra de 11.500 pessoas, o inquérito feito no final de março permite comparar diferentes grupos, concluindo que “são os mais jovens e os adultos ainda numa fase inicial da sua vida ativa quem se apresenta mais destituídos materialmente”. A partir dos 45 anos, a penalização começa a atenuar-se
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Outros académicos vão deixando avisos acerca da fragilidade dos grupos etários mais baixos, tendo em conta o historial recente. Um estudo, publicado em abril no VoxEU, olha para crises anteriores no Reino Unido (entre 1976 e 2016) e mostra que, nos últimos 40 anos, o perfil mais vulnerável a choques é: jovem, homem e trabalhador numa pequena empresa (“jovem”, neste caso, corresponde ao intervalo entre os 25 e os 34 anos). Esse grupo pode esperar uma perda de rendimento entre 8% a 9%. Por outro lado, mulheres mais velhas em grandes empresas tendem a ser mais poupadas.
“Os rendimentos dos trabalhadores com menos de 35 anos são aqueles que respondem mais [às crises]”, escrevem os autores. “Trabalhadores jovens normalmente têm maior crescimento dos salários do que os mais velhos, mas vemos aqui que isso está muito dependente das condições económicas.”
A análise das crises anteriores também sugere que os homens tendem a ser mais afetados do que as mulheres. Contudo, como já referimos, isso pode não acontecer desta vez, uma vez que os setores mais afetados têm uma mão-de-obra tendencialmente feminina. “Podemos esperar uma diferença entre antigos padrões e aqueles que estão a ser gerados pela crise atual […] Muitas das indústrias mais afetadas no curto prazo pelo choque Covid-19, como a hotelaria e as viagens, têm uma proporção elevada de mulheres a trabalhar. Isto contrasta com anteriores contrações, onde sectores dominados por homens, como o financeiro, construção e indústria, sofriam as principais quebras de produção”, lê-se no artigo.
Muitas das indústrias mais afetadas no curto prazo pelo choque Covid-19, como a hotelaria e as viagens, têm uma proporção elevada de mulheres a trabalhar
Brian Bell, Nicholas Bloom, Jack Blundell, Luigi Pistaferri
De qualquer forma, o histórico da diferença de género no rendimento é este:
Os autores avisam também que estes cálculos não levam em conta políticas públicas que possam atenuar os efeitos nalguns setores ou grupos, favorecendo esses face a outros.
Cicatrizes para o futuro
Para muitos dos que estão na casa dos 20 anos, esta será a sua primeira crise. Para os que estão nos 30, pode ser a segunda. Depois da troika, o coronavírus. Para ambas as gerações, elas significarão menos rendimentos e bem-estar ao longo das suas vidas. O mesmo estudo nota que este tipo de feridas demora muitos anos a cicatrizar. “Ainda mais preocupante para os jovens, existe muita literatura que mostra que a penalização por entrar no mercado de trabalho durante uma recessão demora uma vida a desaparecer.”
A OIT também se mostra preocupada com os efeitos estruturais de uma crise desta dimensão. Acabar os estudos em plena crise é um azar que pode marcar o trabalhador durante décadas.
“Não são apenas os indivíduos que são prejudicados pelo agravamento da taxa de desemprego jovem. Ele também exerce danos grandes e de longo prazo nas nossas sociedades. Entrar no mercado de trabalho durante uma recessão pode levar a perdas de rendimento significativas e persistentes para os jovens, que podem durar uma carreira inteira”, refere a OIT.
Entrar no mercado de trabalho durante uma recessão pode levar a perdas de rendimento significativas e persistentes para os jovens, que podem durar durante uma carreira inteira
Organização Internacional do Trabalho
Esse aviso é suportado é vários estudos. Um dos mais citados foi realizado por Lisa B. Kahn e “encontra efeitos negativos de grande dimensão nos rendimentos de se licenciar durante um período com piores condições económicas”. Efeitos esses que “persistem durante todo o período estudado” (dados entre 1979 e 1989). Tudo somado, “os resultados sugerem que as consequências laborais de concluir a faculdade num mau momento económico são grandes, negativas e persistentes”.
Quem entrou no mercado de trabalho americano nas recessões dos anos 80 apresenta níveis mais elevados de mortalidade, que se começam a manifestar antes ainda de chegarem aos 40, devido a doenças cardiovasculares, cancro do pulmão e overdoses. É menor provável que casem e, quando o fazem, mais provável divorciarem-se. Pode a Geração Covid-19 enfrentar o mesmo?
Na sua mais recente publicação sobre as tendências do emprego jovem, a OIT escreve que formas de subutilização de mão-de-obra, como desemprego ou subemprego, quando ocorridas na juventude, “podem deixar cicatrizes, incluindo perspetivas de emprego e salários mais baixos décadas mais tarde”. Embora o desemprego jovem tenha disparado muito rápido, a descida não o fez regressar à realidade pré-crise. Em Portugal, a taxa de desemprego jovem estava em 2019 nos 18,3%, ainda acima dos 16,7% de 2008 (embora haja uma quebra de série pelo meio, que dificulta a comparação direta).
Outro artigo muito citado sobre este tema, de 2005, mostrava que o desemprego jovem continuava a penalizar os rendimentos dos mais novos 20 anos depois, mesmo controlando por variáveis como educação, região, riqueza da família e outras características individuais. Aos 42 anos a penalização por esse jovem ter sido desempregado flutua entre 13% e 21%. Se conseguir evitar novas entradas e saídas do desemprego, ela cai para 9-11%.
Num post no blog da London School of Economics, Ronald McQuaid explica que “o desemprego jovem leva a vários resultados negativos em termos de bem-estar material e mental”. O especialista em trabalho e emprego pedia aos responsáveis políticos para serem mais agressivos nos seus esforços para reduzir o impacto de um fenómeno que pode durar muito tempo.
A Geração Z será diferente?
Será interessante também perceber de que forma é que esta crise mudará as opiniões dos mais novos sobre a economia e a sociedade. Em poucas semanas, muito do que acreditávamos ser sagrado foi virado de cabeça para baixo. Será que a Geração Covid-19 vai valorizar mais a segurança nas suas várias dimensões, do trabalho aos apoios sociais? “A geração Z será capaz de dizer “eu lembro-me onde estava” quando começaram a enviar cheques a toda a gente ou quando os cuidados de saúde se tornaram gratuitos para permitir que toda a gente fosse testada”, diz ao Axios Jason Dorsey, presidente do Center for Generational Kinetics (CGK), referindo-se à realidade americana.
A geração Z será capaz de dizer ‘eu lembro-me onde estava’ quando começaram a enviar cheques a toda a gente ou quando os cuidados de saúde se tornaram gratuitos para permitir que toda a gente fosse testada
Jason Dorsey
Por cá, ao ver o SNS em perigo de colapso, exigirão o seu reforço? Ao ver os seus pais sem rendimentos ou eles próprios sem trabalho, como olharão para os vínculos precários – Portugal tem um dos níveis mais altos da Europa – e para as condições de trabalho na gig economy? Apoios sociais abrangentes aumentarão a pressão por programas mais generosos? E se o Estado falhar na resposta à pandemia, haverá mais desconfiança do setor público?
Os dados dos EUA mostram que a Geração Z, nascida a partir de meados dos anos 90, é mais progressista do que a anterior, os millennials. Esses, por sua vez, já tinham uma visão menos conservadora do que os seus pais e avós. 70% dos Z’s americanos acham que o Governo deve fazer mais para solucionar os problemas do País, em vez de deixar a sua resolução para empresas e indivíduos. Uma percentagem que é apenas 49% entre os baby boomers (nascidos no pós-II GM).
Ainda é cedo para antecipar em que direção vão as transformações. Mas não é arriscado dizer que, perante uma crise desta violência, não ficará tudo na mesma.