Austeridade
“Uma situação económica difícil provocada pela diminuição do dinheiro que o governo gasta” – Cambridge Dictionary
Numa altura em que se sucedem as declarações políticas e os artigos de opinião sobre a chegada ou não da austeridade, talvez seja importante tentar clarificar aquilo que o conceito significa e que papel poderia desempenhar na crise actual. Dois economistas explicam o que teria de acontecer para voltarmos a viver uma situação como a do choque anterior.
Em primeiro lugar, convém sabermos do que estamos a falar. Embora austeridade também signifique “atravessar dificuldades” e “viver com pouco”, não é disso que se fala no debate económico, principalmente após a crise anterior. Neste contexto, austeridade não é ver o desemprego aumentar ou as empresas a vender menos. Austeridade é uma política pública. Corresponde, de uma forma simplificada, à definição que está no arranque do texto, acrescentando-lhe, como possibilidade, a subida de impostos.
Os economistas com quem a EXAME falou concordam. Joaquim Miranda Sarmento, professor do ISEG, define austeridade como ”medidas de redução do rendimento disponível”, como “corte salários/pensões e aumento impostos”, responde por email.
Ricardo Paes Mamede, do ISCTE, tem uma definição semelhante, mas mais longa:
“Estamos perante uma estratégia de austeridade quando, no contexto de uma queda acentuada da actividade económica e do emprego, os governos respondem com a redução da despesa pública estrutural (eventualmente acompanhada de aumento temporário dos impostos) e com medidas de flexibilização das relações laborais, tendo em vista acelerar o processos de desinflação interna e, dessa forma, recuperar a competitividade e a confiança dos investidores. O resultado imediato expectável é a deterioração ainda maior da situação económica, mas a estratégia assume que a recuperação será mais rápida e sustentada.”
Por isso, quando António Costa promete que não haverá austeridade em Portugal, o primeiro-ministro não se está a comprometer com não vivermos uma crise, com falências de empresas, despedimentos e perdas de rendimento. Esse comboio já passou. Está, isso sim, a garantir que não adotará medidas que possam penalizar mais a atividade económica. Perante uma recessão que se adivinha profunda, o Governo assegura que não irá retirar rendimento às famílias e empresas para ajustar mais rapidamente as contas públicas.
Normalmente, os economistas utilizam o conceito de saldo estrutural para identificar se um Governo está a fazer austeridade. Esse indicador olha para o défice, mas exclui fatores temporários (por exemplo a ajuda a um banco) e expurga-o dos efeitos de flutuação do ciclo económico (é calculado em percentagem do PIB potencial). O gráfico em baixo mostra como ele evoluiu desde 2010. Fica claro que o ajustamento rápido durou até 2014, ano da saída da troika de Portugal. Daí para a frente, ele foi muito mais lento. Aliás, se deste indicador ainda tirássemos os juros – que têm descido nos últimos anos – verificaríamos que o esforço de consolidação está parado desde 2014, o penúltimo ano do governo de Pedro Passos Coelho. A melhoria do saldo global, aquele que normalmente aparece nas notícias, tem sido impulsionada por outros fatores, como os ventos favoráveis do crescimento.
Durante a crise anterior, as medidas de austeridade começaram logo com a aprovação dos PEC (programas de estabilidade e crescimento), mas foi a chegada da troika que as tornou mais abrangentes e duras. A assinatura do Memorando de Entendimento foi a moeda de troca do Estado português para obter financiamento junto do FMI e da União Europeia. Sem acesso aos mercados – onde normalmente os países se endividam – Portugal (antes dele, Grécia e Irlanda) teve de se virar para essas instituições. Em troca, comprometeu-se com um conjunto de reformas económicas e com políticas duras que deveriam levar a uma descida rápida do défice. Algumas dessas medidas ainda estão hoje no terreno.
A estratégia tinha como base teórica aquilo que ficou conhecido como “austeridade expansionista”, termo popularizado pelo economista Alberto Alesina e abraçado por responsáveis europeus, entre os quais Jean-Claude Trichet, na altura presidente do BCE. A ideia é que um ajustamento rápido das contas públicas – de preferência pelo lado da despesa – dá confiança aos investidores privados, o que permite uma recuperação rápida da economia.
Atualmente, essa abordagem é vista como contraproducente. O próprio FMI tem refletido sobre os erros que cometeu nos programas de ajustamento e assumiu que eles tinham previsões excessivamente otimistas, subestimaram o impacto da austeridade no crescimento e acabaram por não ajudar ao crescimento futuro dos países. No ano passado, em nome da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker também fez um mea culpa: “Não fomos suficientemente solidários com a Grécia. Nós insultámos a Grécia.”
Como poderá regressar?
Então, o que nos poderá levar a tentar outra vez a mesma receita? Ou será que não estamos a falar de um repetição da crise anterior?
Para Miranda Sarmento, o Governo pode ter de voltar a aprovar medidas duras, ainda que elas possam não ter a mesma violência que no passado. O presidente do Conselho Estratégico Nacional do PSD aponta, em primeiro lugar, para o carácter inédito da crise. “Uma quebra de 10% entra no domínio do desconhecido da ciência económica”, diz à EXAME. Isso significa que o impacto nas contas públicas também poderá não ter precedentes.
Miranda Sarmento não está especialmente preocupado com o défice, notando que, mesmo que ele chegue aos 10% do PIB este ano, esse resultado será essencialmente “one-off”. Isto é, desaparecerá quase todo, assim que os gastos extraordinários deste ano não ocorrerem em 2021. Isso mesmo parece esperar o FMI, a instituição mais recente a publicar as suas previsões. Os economistas do Fundo estimam que o défice português dispare para 7,1% do PIB este ano e que desça para 1,9% em 2021. Isso é uma diferença importante face à crise anterior, quando o desequilíbrio entre receitas e despesas tinha uma natureza mais estrutural.
Ainda assim, uma fatia desse agravamento do défice não deverá ser pontual. O professor do ISEG espera que, numa cenário de défice de 10%, 2 ou 3 pontos percentuais sejam “estruturais”. “Isso obrigará a algum ajustamento”, avisa. Mas, mesmo nesse cenário, não espera a mesma violência da crise anterior, “porque aí o défice estrutural estava nos 8%”. Porém, “com esta crise, o défice estrutural, que estava próximo de zero, poderá subir para 2% ou 3%”.
A dívida pública é a principal preocupação de Miranda Sarmento. O FMI prevê que ela atinja os 135% do PIB (um máximo histórico), mas muitos economistas consideram essa estimativa otimista e apontam para valores superiores a 140% ou até perto de 150% do PIB, especialmente se o Estado tiver de absorver empresas em dificuldades. “Vejo, logo à partida, riscos elevados de problemas no acesso aos mercados após esta fase de pandemia, quando os mercados deixarem de estar tão “adormecidos”. E tenho dúvidas que o PEPP [novo programa de compra de ativos do BCE para responder à emergência pandémica] seja suficiente para controlar esse efeito”, sublinha.
Ou seja, embora o BCE esteja a aguentar os juros de países vulneráveis com uma bazuca de 750 mil milhões de euros, Miranda Sarmento não espera que o banco central o consiga fazer durante muito tempo, principalmente a partir do momento em que as contas públicas comecem a entrar em roda-viva e as dúvidas sobre a capacidade dos Estados para pagar a dívida aumentem. “Os investidores vão exigir um programa credível e ambicioso de redução da dívida pública”, lembra na sua última crónica. Já estamos familiarizados com esta história: o receio dos investidores é acompanhado por descidas de rating que, por sua vez, alimentam ainda mais o nervosismo dos mercados, o que pode fazer com que o Estado tenha dificuldades em financiar-se.
A pressão vai chegar?
Ricardo Paes Mamede antecipa o mesmo destino para as políticas públicas, mas com um caminho diferente. O professor do ISCTE está convencido que, conhecendo a postura da UE e seus Estados-membros e do Governo de António Costa, a austeridade acabará por chegar, por incapacidade de resistir à pressão política.
E também começa por sublinhar a expectável depressão económica que aí vem. “Vejo a previsão do FMI [de défice de 7,1%] como optimista. Partem do princípio que haverá uma recuperação no final do ano, mas assim que se começar a perceber o grau de devastação e aparecerem as tensões políticas, vai-se criar um clima de medo, com impacto no consumo e investimento”, diz à EXAME.
Neste contexto, seria fundamental que o Estado fosse capaz de dar resposta à crise, alocando todos os recursos disponíveis a tentar proteger os rendimentos das famílias e a capacidade produtiva da economia (apoios sociais, linhas de crédito, etc). Para o fazer de forma sustentável, precisa de se endividar com taxas de juro baixas e prazos alargados. De momento, como referimos, está ainda a fazê-lo pelos canais habituais, beneficiando da rede de segurança do BCE. Mas ela pode não durar para sempre.
Por isso é tão importante aquilo que está a ser negociado na União Europeia. Para já, o que está decidido é o acesso dos países aos empréstimos (pequenos) do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE), a um mecanismo europeu de seguros de emprego e às garantias do Banco Europeu de Investimento. Além disso, está ainda a ser negociada a criação de um fundo de recuperação, que poderá chegar a 1,5 biliões de euros. Os seus moldes ainda não estão definidos, mas envolverá emissão de dívida pela Comissão Europeia e deverá passar por um mix de empréstimos e subvenções (quanto mais do segundo, melhor para Portugal). Qualquer que seja a solução, o objetivo será incentivar os países a gastar mais para estimular a economia.
Se Portugal mantiver a capacidade de se financiar em condições sustentáveis, terá ultrapassado o primeiro obstáculo orçamental desta crise. O segundo será o cumprimento das regras europeias. Neste momento, elas estão suspensas, mas não é claro durante quanto tempo e tudo aponta para que a crise tenha como consequência um grande agravamento da dívida pública. Não havendo nada de estrutural no desequilíbrio das contas – Portugal tinha atingido o seu primeiro excedente da democracia no ano passado -, em teoria, as autoridades europeias poderiam dar tempo para os Estados se recomporem, sem forçar um ajustamento rápido. Neste futuro hipotético, o défice e a dívida cairiam à medida que a economia sarasse as feridas.
“Bastava sinalizar que o acesso a financiamento barato se iria estender até as economias se normalizarem e que os aumentos de dívida pública associados ao combate à pandemia não seriam contabilizados nos rácios de dívida”, sugere Paes Mamede.
Mas é aí que entra o seu ceticismo. “Há uma política clara de dar uma resposta no curto prazo e de dizer que os défices não interessam. Mas os países têm receio do dia seguinte. O Governo português não vai dar um passo que as autoridades europeias não queiram”, refere o professor do ISCTE. Há dez anos, as autoridades europeias também começaram por incentivar o estímulo à economia, mas, perante a subida dos défices e a pressão dos mercados, deram uma volta de 180º e passaram a exigir aos países que controlassem o défice. “Talvez as instituições europeias não façam pressão em 2020 ou 2021, mas ela existirá quando as coisas regressarem à normalidade.”
O economista antecipa que, dentro de dois ou três anos, a memória da pandemia vai estar mais apagada, mas a dívida continuará muito alta. O crescimento da economia ajudará a diminuir a dívida, mas poderão regressar pressões para que essa descida seja mais veloz. E Paes Mamede não acredita que o Governo seja capaz de resistir. “Não vejo motivo nenhum para que, passado a crise, a Europa diminua a pressão sobre as dívidas, quando elas vão estar mais altas. Seria preciso um grande jogo de anca”, aponta. “Não havendo garantias, acho que os governos vão-se conter. Em termos práticos, acho que vai haver austeridade.”
Isso leva-nos a um campo mais cinzento deste debate. Um corte de 10% das pensões é fácil de classificar como austeridade. Mas o que dizer de um alívio de IRS que fica na gaveta? Ou um mega-programa de investimento em infraestruturas que é adiado? São formas de condicionar a trajetória das contas públicas e representam poupanças em relação ao caminho previsto. Caso Portugal evite cortes de despesa e agravamentos de impostos, este caminho de contenção deverá gerar um debate de palavras sobre se está a ser aplicada austeridade.
A dor é inevitável e já está a ser sentida pelas famílias e pelas empresas. Que não haja dúvidas: quando esta pandemia acabar, vamos estar mais pobres. Falta saber que papel terão os governos nisso.