Rosângela veio para Portugal em 2018 e, durante um ano e meio, nunca teve dificuldades em encontrar emprego. Fazia limpezas em alojamento local, numa altura em que o turismo continuava a bater recordes. O vírus virou-lhe a vida de pernas para o ar. A empresa que a contratava a recibos-verdes viu todas as reservas serem canceladas. De um dia para o outro, deixou de ter rendimentos. Zero. Já se candidatou a apoios públicos, mas, mesmo que os receba, podem não ser suficientes para cobrir as despesas. Com o turismo a entrar num período de depressão, está à procura de trabalho noutras áreas. Apesar das dificuldades, não considera regressar ao Brasil.
Casos como o de Rosângela estão a multiplicar-se. À medida que a atividade económica é colocada no congelador para responder à emergência de saúde pública, o mercado de trabalho começa a revelar os primeiros sinais daquilo que deverá ser um choque histórico. Embora se diga frequentemente que estamos numa economia de guerra, esta crise tem uma natureza muito diferente: em vez de mobilizar a sociedade, ela ficará conhecida pelo hashtag #FicaEmCasa. Para combater a Covid-19, governos de todo o mundo estão a deixar as suas economias cair em recessões violentas, que podem trazer de volta o desemprego massificado.
22 milhões de pessoas. Em apenas quatro semanas, 22 milhões de norte-americanos fizeram pedidos de subsídio de desemprego. Não há memória de uma destruição tão rápida de postos de trabalho nos Estados Unidos. Números que vieram acompanhados de filas intermináveis de carros para bancos alimentares por todo o país, de Pittsburgh a San Antonio. Ainda faltam indicadores em muitos países, mas há muitos sinais de deterioração dos mercados de trabalho um pouco por todo o mundo. O FMI prevê que a taxa de desemprego da zona euro dispare de 7,6% para 10,4% este ano. Os casos mais dramáticos deverão ser Espanha (21%) e Grécia (22%).
As últimas estimativas da OIT sugerem que 81% da força de trabalho mundial enfrenta algum tipo de limitação de movimento. No segundo trimestre, a quantidade de horas trabalhadas deverá afundar 6,7%, o que é equivalente a ter menos 195 milhões de pessoas empregadas a tempo inteiro. É como se toda a população de Espanha, França e Alemanha deixasse de ter trabalho ao mesmo tempo. “É, sem dúvida, a crise mais grave sobre o emprego de qualquer um de nós já viu. A questão é quanto tempo irá durar?”, questionou o diretor geral da OIT, Guy Ryder.
Em Portugal, os últimos dados do Governo mostram que há mais 38 mil pessoas registadas nos centros de emprego desde o final de fevereiro, o que coloca o desemprego registado nos 353 mil. Ainda não são números dramáticos, o que se pode explicar pela utilização da válvula de escape do lay-off simplificado, que já abrange 930 mil trabalhadores. Além disso, é importante lembrar que este indicador deixa de fora muitos desempregados que, por diversos motivos, não se inscrevem. Só conheceremos as primeiras estimativas de taxa de desemprego no final deste mês.
“Há a possibilidade de um aumento exponencial de desemprego, principalmente de pessoas que estejam em empregos pouco protegidos, em situações de precariedade ou trabalho informal”, refere Renato Miguel do Carmo, professor do ISCTE e diretor do Observatório das Desigualdades. Nos últimos anos, “Portugal teve uma redução do desemprego, mas à custa de um aumento de precariedade”, acrescenta. “Muitas pessoas que trabalham em turismo, condutores de tuk tuks e plataformas como a Uber estão em situação precária e, por vezes, sem contrato.”
Recorde-se que Portugal tem umas das percentagens de contratos temporários mais elevadas da Europa, apenas ultrapassado por Espanha e Polónia. Um em cada cinco trabalhadores por conta de outrem não estão integrados nos quadros das empresas, o que os torna muito mais vulneráveis a despedimentos. Nos últimos anos, a descida do desemprego não foi acompanhada por uma diminuição do peso dos precários no mercado de trabalho (a exceção terá sido 2019). Isso compreende-se tendo em conta o dinamismo de setores como o turismo, com níveis elevados de contratações temporárias.
João Cerejeira concorda que os primeiros a sentir os efeitos da crise serão os precários. O professor na Universidade do Minho considera que, numa primeira fase, “o impacto da crise vai incidir nos trabalhadores cujos custos de recrutamento ou despedimento são baixos”, explica à EXAME. Cerejeira está a referir-se em específico a duas situações: “trabalhadores em ocupações pouco exigentes do ponto de vista de formação profissional ou onde exista mão-de obra disponível e facilmente substituível”; e “trabalhadores com contratos de trabalho precários (a termo ou a recibos verdes)”. “Vamos observar uma subida do desemprego em atividades cujos custos de saída ou de entrada das empresas no mercado são baixos. Falamos de PME nos setores do serviços pessoais, restauração, por exemplo”, conclui.
As mais recentes estimativas do FMI apontam para uma taxa de desemprego a bater quase nos 14% este ano, mais do dobro dos 6,5% de 2019. Isso faria o mercado de trabalho nacional regressar à era da troika, com a possível destruição de 380 mil postos de trabalho. Será o salto mais agressivo desde que há registo deste indicador. Em março, o Banco de Portugal apontava para 11,7% no seu cenário mais adverso. O BdP justificava essa estimativa com um tecido empresarial preenchido por microempresas e, claro, com a exposição da economia nacional ao setor do turismo, talvez a área mais afetada por esta crise.
João Cerejeira avisa que o setor sofrerá devido ao “impacto das medidas administrativas, associadas ao fecho dos estabelecimentos (lado da oferta) e às limitações em termos de viagens e à quebra de rendimentos (lado da procura)”.
Há alguns paralelos entre a atual situação do turismo e as dificuldades que o setor da construção enfrentou durante a crise anterior, identifica Renato do Carmo. Com uma mão-de-obra também pouco qualificada, a construção crescia a um ritmo forte até esbarrar num muro de cimento em 2008. “Parte dessas pessoas, muitas com idade avançada, tiveram uma grande dificuldade em regressar ao mercado de trabalho”, lembra. O turismo tem uma mão-de-obra mais jovem, também composta por muitos imigrantes. “É uma realidade de que se fala pouco. Trabalhavam em restauração, hotelaria, Ubers… Muitos talvez tenham de regressar ao país de origem, onde provavelmente têm uma rede próxima que os pode apoiar.”
Renato do Carmo é co-autor de um relatório publicado há alguns dias pelo Laboratório Colaborativo para o Trabalho, Emprego e Proteção Social (CoLABOR) sobre a possibilidade de “um regresso do desemprego massivo” a Portugal. “Depois de ter sido um “não problema” nos últimos anos, o desemprego massivo corre o risco de se tornar novamente um problema”, pode ler-se no documento.
Como a VISÃO escreve esta semana, os setores com maior percentagem de contratos a prazo ou recibos verdes são também alguns dos mais afetados por esta crise: hotelaria e restauração, construção, atividades artísticas e atividades administrativas estão no topo. Isso significa que esses trabalhadores estarão mais vulneráveis a despedimentos. Além disso, estarão também financeiramente mais frágeis, uma vez que os setores mais atingidos são também aqueles que pagam pior: Em hotelaria e restauração, por exemplo, ganha-se, em média, 812 euros brutos, com mais de 1/3 dos trabalhadores a levar para casa o salário mínimo ou menos do que isso. É o valor mais baixo entre todos os ramos de atividade.
Um pouco à imagem da precariedade, os salários em Portugal não acompanharam exatamente o dinamismo do mercado de trabalho e, pelo menos numa fase inicial da recuperação, as atualizações de salário mínimo foram importantes, com cada vez mais trabalhadores abrangidos por ele. Em 2017, mais de 2/3 do emprego criado em Portugal era com remuneração mínima. Esse peso recuou em 2018 para 1/4 e, em abril de 2019, estava em 7%.
Desemprego invisível
Normalmente, explosões de desemprego como aquela que muitos preveem para esta crise são visíveis nas ruas, simbolizadas pelas habituais filas à porta dos centros de emprego. Foi assim na última crise. É lá que as televisões fazem diretos e onde os jornais escrevem reportagens. Esses testemunhos são importantes para dar uma cara aos problemas económicos. No entanto, numa crise em que a ordem é o confinamento,os dramas do mercado de trabalho podem ficar mais escondidos. Por um lado, para evitar deslocações presenciais, os processos estão a ser digitalizados, o que é um desenvolvimento positivo. Por outro, “esses processos também invisibilizam”, nota Renato do Carmo. “Pessoas mais velhas ou com menos literacia digital podem ter dificuldades. Lembro-me sempre do filme “Eu, Daniel Blake”, em que [a personagem principal] olha para um rato [de computador] sem saber como se usa. Deve haver muita angústia a esse nível.”
Essa desigualdade reflete-se noutras dimensões e começa logo em quem é atingido pela crise. Imigrantes e trabalhadores na economia informal estão na linha da frente. Profissionais de saúde estão especialmente expostos ao vírus, e em cargos ocupados, na sua maioria, por mulheres.
Essa é uma das conclusões de um artigo da OIT escrito por Patrick Belser. Em resposta às perguntas da EXAME, o economista explica que devemos prestar atenção aos efeitos nos segmentos da população com rendimentos mais baixos, mas também “a todos os grupos que normalmente não estão abrangidos por mecanismos de proteção social ou que trabalhem de forma informal”. “Não devemos esquecer os dois mil milhões de trabalhadores em todo o mundo que estão integrados na economia informal e que não podem aceder a subsídio de desemprego. Trabalhadores na gig economy são especialmente indefesos, porque não têm contratos normais. Quando não trabalham, não têm rendimento. Estão particularmente vulneráveis a cair na pobreza.”
É esse o caso de Pedro (nome fictício), de 22 anos. Era condutor de tuk tuk em Lisboa e não tinha contrato, nem sequer passava recibos verdes. Hoje, está arrependido por ter aceitado trabalhar sem vínculo. Sempre podia candidatar-se a apoios públicos. Quando deixou de poder trabalhar, tinha 100 euros poupados. Ainda assim, tem a sorte de poder viver com os pais. Tem colegas em situações mais dramáticas – casais com filhos que deixaram de ter trabalho ao mesmo tempo.
“A Covid-19 expõe cruelmente essas desigualdade – desde apanhar o vírus, a ficar vivo, até lidar com as suas consequências económicas dramáticas”, refere Belser, nesse artigo da OIT.
O facto de a crise afetar especialmente os precários significa que combater os seus efeitos também será um desafio. Por mais ambiciosos que sejam, os apoios têm dificuldade em chegar-lhes aos bolsos. “É como se essas pessoas não existissem. É como se desaparecessem. São difíceis de identificar”, diz Renato do Carmo. Por isso é que se ouve falar cada vez mais de medidas universais – como um rendimento mínimo alargado -, que permita atingir toda a população. Também chegaria a quem não precisa dele, mas seria o preço a pagar por essa universalidade.
O drama americano
Um país onde o drama do desemprego não está a ser invisível é nos Estados Unidos, onde o mercado de trabalho é altamente flexível e, por isso mesmo, dado a movimentos violentos. Os dados iniciais mostram que nunca foram destruídos tantos postos-de-trabalho em tão pouco tempo: 22 milhões em quatro semanas. Ninguém sabe qual será a dimensão final do choque, mas vão surgindo várias estimativas. Uma das projeções que recebeu mais atenção foi feita pelo economista português Miguel Faria e Castro, que integra o departamento de investigação da Reserva Federal de St. Louis. Embora ele próprio relativize a projeção – é um “pior cenário” e os cálculos são preliminares – o número era devastador: 47 milhões de americanos podem ficar sem trabalho, o que atiraria a taxa de desemprego para os 32%. Durante a Grande Depressão, nenhum ano ultrapassou os 25%.
“Um problema importante é que durante a “paragem” da economia, muitas famílias e trabalhadores poderão estar sem rendimentos (devido a layoff ou despedimento). É aqui que a segurança social e a política orçamental podem desempenhar um papel muito importante para aliviar a dor causada pela paragem”, diz à EXAME.
E será que a rede de proteção social dos EUA está preparada para lidar com uma vaga tão devastadora de desempregados? O economista acha que há o risco de o sistema não ter solidez suficiente para o suportar. As últimas semanas parecem sugerir precisamente isso, com as medidas de apoio ao rendimento a demorarem a chegar às famílias e bancos alimentares incapazes de lidar com os fluxos de pessoas.
“Temos um número sem precedentes de pessoas que pediram subsídio de desemprego. O nível de recursos que é alocado a estes sistemas varia imenso de estado para estado, logo os subsídios são mais generosos nuns e menos noutros (entre $200 a $700 semanais). Mas praticamente nenhum estado tinha os sistemas preparados para tanta a gente”, explica por email. Os mecanismos de subsídio de desemprego exigiam também a procura de emprego como condição para os receber – impossível quando está tudo fechado -, mas os Estados têm eliminado essa condição, o que também ajuda a explicar o número elevado de pedidos.
E depois é preciso ainda considerar o desafio que representa o próprio sistema de saúde norte-americano. Os seguros que lhe servem de base estão normalmente ligados ao posto de trabalho que se ocupa. Um desempregado também pode ter seguro, “mas são incrivelmente caros”, nota Faria e Castro. “Isto é uma grande fragilidade do sistema, principalmente numa situação em que o principal problema é de saúde pública.”
Ainda assim, devemos ter alguma cautela na interpretação dos números americanos. Comparações diretas com a Europa podem fazer pouco sentido. Habituados à nossa realidade, podemos subestimar a capacidade de recuperação dos EUA. O mercado de trabalho norte-americano reage com mais violência a situações de crise, devido à menor proteção dos vínculos laborais, mas também recupera potencialmente com maior rapidez.
“Em circunstâncias normais, os EUA tendem a ter menos desemprego, mas muito mais fluxos brutos de emprego para desemprego e vice-versa. Apesar de haver um declínio secular neste aspecto, é também uma economia onde há muito maior criação e destruição de empresas e postos de trabalho”, nota Faria e Castro.
São filosofias diferentes, que explicam também porque é que as respostas políticas também não são iguais: nos EUA a preocupação é fazer chegar dinheiro às famílias; na Europa, tentam impedir-se despedimentos. Mas devemos ter cuidado para não cair em simplificações. Além da perda de rendimento, um despedimento pode deixar cicatrizes mais profundas para o trabalhador e a sociedade. “Existe muito capital humano que é criado numa relação entre a empresa e o trabalhador, e esse capital desaparece quando o trabalhador é despedido permanentemente ou a empresa vai à falência. O desaparecimento desse capital tem consequências de longo-prazo para os trabalhadores e para a economia”, realça o investigador da Fed.
Feridas abertas
Por esta altura, estamos concentrados na dor imediata que esta crise trará às famílias. Pode acabar por ser o maior choque económico das nossas vidas. E mesmo quando ele tiver desaparecido, as suas consequências deverão estender-se por muitos anos. Crises desta dimensão provocam feridas difíceis de sarar.
“Os impactos a médio e longo prazo vão depender da duração da “quarentena”. Tal como aconteceu após a crise de 2008/2009, numa primeira fase vão ser afetados aqueles que têm contratos de trabalho mais precário, mas cuja reentrada no mercado de trabalho pode acontecer no início da recuperação”, aponta João Cerejeira. “Caso a crise se aprofunde e leve ao fecho de empresas de média ou grande dimensão, podemos observar um aumento do desemprego mesmo entre aqueles que estão em postos de trabalho de melhor qualidade, quer em termos de remuneração quer em termos contratuais. Esta fase poderá traduzir-se numa crise semelhante à que vivemos entre 2011-2013, com a diferença de que, sendo à escala global, a emigração não será uma solução para aqueles que ficarão no desemprego.”
Renato do Carmo reconhece que se trata de “uma crise muito singular”. Para lá do choque e recuperação do emprego, terá “efeitos profundos, até do ponto de vista relacional”, acrescenta. “Como se reatam as rotinas? Tenho dúvidas que se regresse a uma normalidade. Vai ser um regresso a outra coisa, não sabemos é bem o quê.”
Há muito poucas certezas sobre o que aí vem, mas deverá ficar connosco tempo suficiente para o estudarmos. O desemprego de massas vai voltar a fazer parte das nossas vidas.