O défice de 2019 deverá novamente ultrapassar as estimativas do Governo, caindo mais do que o Ministério das Finanças espera. Pelo menos é isso que dizem as previsões de organizações como o Institute of Public Policy e o Conselho das Finanças Públicas, que esperam um excedente de 0,1%, enquanto a UTAO aponta para um saldo equilibrado. O Governo, recorde-se, antecipa um défice de 0,1%. Até os dados finais dão algumas pistas: já sabemos que o défice do ano passado ficou 500 milhões de euros abaixo daquilo que tinha sido estimado pelo Executivo há apenas dois meses. Facto que as Finanças asseguram não terá impacto no défice em contabilidade nacional.
Se tivermos em conta o histórico recente, este resultado não é particularmente surpreendente. Seja por fortuna da conjuntura económica, seja por gestão ativa das expectativas pelo Ministério das Finanças, o défice dos últimos quatro anos tem ficado abaixo daquilo que estava previsto no Orçamento do Estado. O único ano em que isso não aconteceu (2017) foi devido à recapitalização da Caixa Geral de Depósitos.
Isso tem permitido ao governo fazer uma espécie de brilharete: motiva elogios das instituições internacionais, que adotam agora uma postura muito mais despreocupada em relação ao défice; evita reações negativas dos mercados financeiros, onde os investidores cobram cada vez menos para emprestar a Portugal; e passa uma imagem interna de competência que, aparentemente, agrada aos portugueses e, pelo menos para já, parece ter afastado alguma da imagem de irresponsabilidade orçamental do PS.
No entanto, se desconfiarmos que este resultado não é apenas fruto de fatores fora do controlo do governo – como crescimento mais rápido, queda do desemprego e poupanças inesperadas com juros -, será que esta é uma forma saudável de gerir as contas públicas? Será que esta estratégia não dificulta o escrutínio da atividade do governo pelo Parlamento, jornalistas e outras entidades?
Disso mesmo se queixam os partidos da oposição. Na última audição de Mário Centeno, Mariana Mortágua apontava que o executivo executou quase menos 3 mil milhões de euros do que tinha orçamentado. “Isso tem um nome: má gestão. Nem o Governo nem o Ministério das Finanças cumprem aquilo que vieram aqui pedir em autorizações de despesa”, criticou a deputada do BE, dirigindo-se ao ministro das Finanças. “Era bom que assumisse a sua responsabilidade pela péssima execução da despesa pública.”
A EXAME falou com quatro economistas, que se dividem na apreciação desta estratégia do Governo, entre a crítica de falta de transparência e o reconhecimento da necessidade de cautela na gestão das contas e na abordagem às negociações do OE.
“O Estado deveria ser um fator de estabilidade e previsibilidade em geral. As despesas previstas no Orçamento de Estado serão receitas de pessoas individuais, empresas e outras instituições. O cumprimento das despesas previstas ajuda as empresas e outras instituições a organizar-se”, refere João Borges de Assunção, professor da Universidade Católica. “Se a gestão do orçamento é “manual” ou casuística, tende a beneficiar a proximidade do poder, o que é negativo em si mesmo. Há perda de transparência, mas também perda de eficiência.”
Ricardo Cabral é também bastante crítico e tem escrito abundantemente sobre o tema na sua coluna de opinião, no Público. A inscrição de metas consistentemente mais conservadoras do que a realidade “deturpa o processo orçamental e resulta na produção de Orçamentos do Estado que não refletem a realidade, i.e., um exercício fictício e, em consequência, desnecessário”, sublinha à EXAME. “E o produto último desse enviesamento do processo orçamental é uma diminuição da taxa de crescimento potencial da economia”, acrescenta.
O preço da negociação?
No entanto, há quem considere que esse é o preço a pagar por um processo de negociação mais exigente. Paulo Trigo Pereira, professor catedrático do ISEG e ex-deputado do PS, nota que estamos a falar de uma proposta de “um governo PS minoritário que optou por negociar à esquerda”, que faz normalmente “propostas que agravam o saldo orçamental, do lado da despesa, aumentando-a, ou do lado da receita, diminuindo-a”.
Embora considere que Portugal devia ter um saldo em equilíbrio – por oposição a um excedente -, uma vez que isso “é mais favorável ao crescimento económico e à qualidade dos serviços públicos”, Trigo Pereira aceita que, “se entendermos o excedente das administrações públicas resultante da proposta de orçamento como uma base de negociação, um ponto de partida, faz sentido”.
Ricardo Cabral também calcula que o Ministério das Finanças prefira “ser excessivamente prudente e conservador” para ter margem de manobra. “É um facto que essa estratégia facilita a negociação do Orçamento do Estado”, uma vez que Centeno “dispõe sempre de uma margem orçamental que lhe permite exceder os objetivos nominais definidos”.
É também justo reconhecer que a previsão orçamental é um exercício com elevado grau de incerteza. É fácil prever a evolução de rubricas como a despesa com pessoal, mas muito mais complicado antecipar a execução do investimento público.
Estimar qual será exatamente o défice pode ser complicado, devido à “influência de múltiplas variáveis ao longo de um ano, cuja evolução é também complexa de prever”, como o ritmo de crescimento da economia e do emprego e a evolução taxas de juro. “Tendo esta complexidade em conta e dado o nível elevado de dívida pública que Portugal ainda tem, uma previsão conservadora é sempre preferível a uma previsão otimista, que arriscaria desiludir e eventualmente penalizar o prémio de risco”, aponta.
Ou seja, mesmo que o preço a pagar seja maior dificuldade de escrutínio, a situação das contas públicas ainda é frágil o suficiente para justificar essa cautela. “Enquanto os níveis de endividamento forem considerados preocupantes, a postura do Governo ao efetuar estimativas orçamentais deverá manter-se cautelosa”, reforça Paula Carvalho.
Até Borges de Assunção, crítico deste tipo de gestão, reconhece que ela parece ser “eficaz” e “popular”. “Este método de gestão orçamental tem sido eficaz, na medida em que permitiu ao nosso governo continuar a cumprir as metas nominais do saldo orçamental. E também tem sido popular, já que foi premiado pelos votos de muitos portugueses nas eleições legislativas de 2019.”
O que pode justificar esta tolerância dos portugueses? “Em Portugal, tem sido problemático cumprir metas orçamentais”, responde o economista da Católica. “Isso tem levado a uma tolerância por parte da opinião pública e publicada com as práticas administrativas de gestão orçamental que permitem o cumprimento das metas orçamentais, como seja por exemplo as cativações de verbas volumosas.”
Ainda assim, na opinião de Borges de Assunção, um bom resultado não absolve o processo. “O governo devia limitar-se a inscrever no orçamento as despesas que já decidiu fazer e as receitas que espera arrecadar.” Gerir expectativas “para gerar surpresas positivas”, acrescenta, “é uma má prática [e] o nosso governo merece ser criticado por o ter feito ao longo dos últimos quatro anos”.
Valeria a pena debater se Portugal deveria sequer perseguir excedentes orçamentais. À esquerda, muitos dirão “não”, mas haverá argumentos de peso do lado do “sim”, que muitos utilizariam também para defender a estratégia conservadora de Mário Centeno. Contudo, a diferença é que não é possível discutir se um excedente é bom ou mau com alguém que nos garante que teremos um défice. Para um ministro que se tem dado bem com comparações futebolísticas, é como tentar defender um livre do Ronaldo de olhos vendados.