Petyr Baelish: “Já devemos ao Lorde Tywin 3 milhões em ouro. O que são mais 80 mil?” Ned Stark: “Está a dizer-me que a coroa tem uma dívida de 3 milhões?!” Baelish: “Estou a dizer-lhe que a coroa tem uma dívida de 6 milhões.” Ned Stark: “Como pode ter deixado isto acontecer?” Baelish: “O Mestre da Moeda encontra o dinheiro, o Rei e a Mão [do Rei] gastam-no.”
Podia ser uma conversa entre José Sócrates e Teixeira dos Santos em 2010, mas faz parte de um dos primeiros episódios de A Guerra dos Tronos. As dificuldades financeiras detetadas por Ned Stark – e, mais tarde, agravadas por Cersei Lannister – estão no centro da série da HBO, que regressa no dia 14 de abril para uma oitava e última temporada. Em Portugal, na ressaca de uma violenta crise financeira, e perante o desequilíbrio das suas contas externas, os juros exigidos para emprestar dinheiro ao país dispararam e essa pressão acabaria por levar José Sócrates a pedir um programa de resgate e a convocar eleições antecipadas. Em Westeros, o continente fictício onde decorre a ação, o equilíbrio financeiro é um dos fatores mais importantes para assegurar a sobrevivência de cada família.
“O Senhor dos Anéis tinha uma filosofia muito medieval: se o rei for um bom homem, o reino irá prosperar. Olhamos para a História real e não é bem assim. Tolkien pode dizer que Aragorn se tornou rei e reinou por 100 anos, que foi sensato e bom. Mas Tolkien não faz a pergunta: qual era a política fiscal de Aragorn? Manteve um exército permanente? O que fez ele em tempos de cheias e fome?” Estas dúvidas pertencem a George R.R. Martin, a mente de onde saíram As Crónicas de Gelo e Fogo, os livros que servem de base a Tronos. Enquanto Tolkien pode passar páginas a descrever um tipo de tabaco, Martin prefere discutir a aplicação de um imposto ou a situação orçamental do reino.
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A Guerra dos Tronos é uma história sobre poder, num ambiente de violência e intriga palaciana. Talvez a veja por causa das batalhas épicas, do elevadíssimo rácio de pessoas nuas, dos dragões gigantes ou dos mortos-vivos feitos de gelo – esperemos que não pelo abundante incesto. No entanto, uma fatia importante da série é composta por pessoas a conversar em salas luxuosas, enquanto bebem vinho. Essas conversas são frequentemente sobre economia, política e diplomacia.
“Factores económicos – e a incapacidade de algumas personagens em compreendê-los – desempenham um papel importante no equilíbrio de poder em Westeros”, explica à VISÃO Matt McCaffrey, professor na Universidade de Manchester. O assunto provavelmente mais explorado são as finanças públicas. Logo na primeira temporada, Ned Stark descobre que o rei Robert Baratheon esbanjou o dinheiro da coroa e acumulou uma dívida enorme. Um pouco como a Grécia, quando os seus responsáveis estatísticos revelaram o verdadeiro valor do défice de Atenas e os investidores aumentaram a pressão sobre a sua dívida.
Ao longo da série, já com os Lannisters no poder, esse problema de endividamento foi sendo agravado pelo esforço de guerra. “O Trono de Ferro atravessa problemas financeiros graves. Os Lannisters têm-se endividado por muitos anos e têm escondido os problemas financeiros da coroa através de empréstimos cuidadosos e de desvalorização da moeda. Isto é importante, porque é muito difícil conservar o Trono de Ferro sem, pelo menos, algum poder económico”, nota McCaffrey.
É isso que leva Cersei, numa opção arriscada, a invadir Jardim de Cima, da Casa Tyrell, permitindo-lhe satisfazer os credores e contratar um grupo de mercenários para tentar trair as restantes famílias de Westeros. O principal credor a quem ela tenta agradar é o Banco de Ferro de Braavos, um cruzamento entre o FMI e o Goldman Sachs, que atua na sombra, mas é descrito como estando acima de qualquer reino, família ou exército. No nosso mundo real, quantas vezes já ouviu o debate sobre o poder excessivo destes gigantes financeiros? O aumento do peso dos bancos na economia tornou-os, nalguns casos, mais poderosos do que países do G20, o que significa que os governos tentam impedir a sua queda, mesmo que à custa dos contribuintes, como temos observado desde a crise de 2008. Em Tronos não há dúvidas sobre o seu poder.
“A coroa deve ao Banco de Ferro de Braavos uma enorme quantia de dinheiro […]. É isso que o Banco de Ferro é: um templo. Todos vivemos na sua sombra e quase nenhum de nós o conhece. Não podes fugir dele, não podes enganá-lo, não podes convencê-lo com desculpas. Se lhes deves dinheiro e não queres cair, pagas-lhes de volta”, explica Tywin, na altura, o homem mais poderoso de Westeros.
Devemos pagar as dívidas?
Safaa Dib foi, entre 2008 e 2017, editora na Saída de Emergência, a responsável pela publicação de As Crónicas de Gelo e Fogo em Portugal. Reconhece em Martin “a preocupação de criar um cenário credível”, o que implica saber que “um rei precisa de dinheiro para financiar guerras, pelo que irá precisar de recorrer a bancos” e que esse crédito “tem custos elevados”.
À semelhança da postura adotada por muitos na Europa no pico da crise da dívida, Tronos também parece seguir uma visão moralista sobre o endividamento. O lema de uma das famílias é “um Lannister paga sempre as suas dívidas”, e o Banco de Ferro é conhecido por “receber sempre aquilo que lhe é devido”. Quem se endivida em excesso é castigado, financeira ou militarmente. Num diálogo entre Tyrion e Bronn sobre como as contas do reino estão a ser geridas por Petyr Baelish, o segundo pergunta: “Ele está a roubar?” Tyrion responde: “Pior. Está a pedir emprestado.”
McCaffrey concorda que “a série dá a entender que é moral pagar as dívidas”, mas acrescenta que “isso não significa que as pessoas serão tratadas de forma justa: como temos visto em personagens como os Starks, ser moral, em Westeros, pode matar-te”.
Cumprir as obrigações financeiras talvez não seja sempre a melhor opção para um governante. Por vezes, nem sequer é o melhor para o credor, se estiver em risco de não receber nada. Durante a crise da dívida europeia, a Grécia teve mais do que um perdão de dívida. E até Portugal conseguiu renegociar os seus empréstimos, tanto nos juros como nos prazos de amortização.
Quando há um desequilíbrio de contas públicas, uma subida de impostos é uma das estratégias mais utilizadas. Tal como os portugueses enfrentaram o “enorme aumento de impostos” apresentado por Vítor Gaspar em 2013, a população de Westeros também sentiu o agravamento da carga fiscal, primeiro com novos impostos sobre a prostituição, depois sobre os refugiados que fugiam da guerra.
Se o problema está na balança comercial – quando compramos mais do que vendemos ao exterior –, uma ferramenta útil é a desvalorização da moeda, o que torna as exportações mais baratas e as importações mais caras. Durante a mais recente crise, Portugal não pôde recorrer a esse instrumento, porque está integrado na Zona Euro. Porém, em Tronos há quem use soluções criativas: Petyr Baelish, durante anos uma espécie de ministro das Finanças, foi reduzindo o ouro presente nas moedas, o que diluiu o seu valor e facilitou o pagamento das contas da coroa. Uma forma menos sofisticada do quantitative easing que os bancos centrais têm seguido.
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“Nós não semeamos”
A Guerra dos Tronos passa-se em Westeros, um continente do Mundo Conhecido imaginado por Martin. Esse território é dominado por várias famílias, com diferentes perfis e fontes de rendimento. A Casa Lannister (minas de ouro) e a Casa Tyrell (agricultura) são, normalmente, citadas como as mais ricas, contrastando com as dificuldades sentidas por Stannis Baratheon e Robb Stark, que tiveram de depender de fé religiosa ou de promessas de independência para garantir apoios que se revelaram efémeros.
Stephen Dyson, professor de Ciência Política na Universidade do Connecticut, vê na série várias perspetivas sobre cooperação e resolução de conflitos. “Podemos encontrar todas as variações de diplomacia no mundo que Martin criou”, explica. “Pensemos nos Lannisters e na sua preocupação com a política de poder, e nos Starks e na sua preocupação com a honra e propriedade. Esse conflito – devemos ser cínicos e egoístas quando lidamos com outros países, ou chegamos mais longe se nos comportarmos de forma aberta e honrada – é, possivelmente, a maior divisão na forma moderna de conceber a governação.”
Os lemas das casas são boas pistas sobre os seus princípios. Portanto, enquanto um Lannister paga sempre as dívidas, os Greyjoys orgulham-se de dizer “nós não semeamos”. Uma frase que resume um modelo de desenvolvimento que rejeita a cooperação com outras famílias e as trocas comerciais, aceitando apenas riqueza conquistada pela violência. Um isolacionismo que faz da sua região uma das menos desenvolvidas. Deste prisma, Tronos é a história do nascimento do conceito moderno de Estado.
A economia de Westeros é uma boa janela para nos ajudar a perceber as dificuldades de crescimento na época medieval. Segundo estimam os historiadores, a economia mundial cresceu a um ritmo de 0,05% ao ano (PIB per capita) entre 1 000 e 1 500, enquanto a Europa Ocidental chegava a uns, não menos modestos, 0,13%. Era como estar parada durante décadas e décadas.
A guerra absorve recursos, provoca quedas da população ativa e destrói recursos. Quando não há guerra, os reis parecem mais interessados em manter o statu quo do que em promover tecnologias revolucionárias. O investimento em tecnologia é baixo e aquele que existe é direcionado para a vertente militar. E nem aí houve grandes avanços: ainda não existe pólvora em Tronos. Para que o desenvolvimento chegue, primeiro terá de haver mudança política. É, aliás, isso que Daenerys Targaryen promete fazer com a ajuda dos seus dragões: trazer democracia – ou, pelo menos, mudanças profundas – a Westeros, o tal “partir a roda”.
Compensa ser bonzinho?
A série tem a reputação de ser implacável para as personagens que tentam colocar os seus princípios à frente da solução mais eficaz. Neste jogo “ou se vence ou se morre”, como tornou famoso Cersei. Todos os descuidos são punidos. No entanto, há quem argumente que essa pode ser uma interpretação precipitada da narrativa.
“Martin parecia estar a contar-nos uma história sobre a inabilidade dos honráveis Starks e o sucesso dos implacáveis Lannisters”, nota Stephen Dyson. “Ned e Robb Stark provocaram as suas próprias quedas. E os Lannisters ficaram com a capital do reino. Mas a história parece dirigir-se para uma conclusão diferente, com os Starks em ascensão e Cersei a parecer cada vez mais isolada. Acho que ninguém espera um final feliz para ela. Talvez Martin nos esteja a dizer que, no longo prazo, agir de forma idealista é não só a coisa certa a fazer, como o mais inteligente.”
Na última temporada de Tronos, veremos se a crueldade e o pragmatismo de Cersei vai compensar ou se o comportamento honrado e os planos de revolução social de Jon Snow e Daenerys chegarão ao Trono de Ferro. Ou talvez nada disso interesse. Afinal, quando se enfrenta 100 mil mortos-vivos que derrubam muralhas de 200 metros, até as sociedades mais sólidas colapsam. “Se os caminhantes brancos são uma metáfora para as mudanças climáticas, a nossa espécie também ainda não é capaz de trabalhar em conjunto perante essa ameaça”, aponta Dyson. “Dito isto, quando a ameaça se torna muito óbvia, os nossos instintos de sobrevivência são acionados. Esperemos que seja esse o caso em A Guerra dos Tronos e no nosso mundo.”