O meu primeiro emprego foi na Lisnave, Estaleiros Navais de Lisboa, em janeiro de 1971. Eu sou de 1953, é fácil fazer as contas. A Lisnave era então o maior estaleiro de reparação naval do mundo, tinha acabado de inaugurar a chamada Doca 13, que docava navios enormes, de até um milhão de toneladas, os maiores petroleiros do mundo. A Lisnave admitia todos os jovens saídos das escolas industriais, e eu sou filho da Escola Machado de Castro. Acabada essa escola, a Lisnave estava a absorver tudo, estava a crescer muito e precisava dessa mão de obra já algo especializada, que saía dessas escolas. Eu, contra a vontade dos meus pais – que alimentavam o sonho de que eu continuasse a estudar e fosse Doutor ou Engenheiro –, fui inscrever-me na Lisnave e fiquei. Tinha começado a namorar a minha mulher muito cedo, eu tinha 15 anos e ela 20; eu era atrevido. E comecei a pensar que, se não fosse para a guerra, gostaria de casar e constituir família. E tinha de ganhar dinheiro para esse objetivo, mais tarde.
Portanto, tornei-me operário de manutenção, andei dois anos a bordo, e devo dizer que ir para o fundo dum tanque vedar válvulas de fundo – que foi o meu primeiro trabalho – era muito violento. Ganhava 2 600 escudos por mês, mas era duro. Um tanque tem muitos metros de fundo, desce-se por umas escadinhas de bombeiros e, por mais limpo que fosse o tanque, tinha sempre restos de nafta e outros resíduos e um odor permanente a gás. Tanto assim era que tínhamos ordens para estar meia hora a trabalhar lá em baixo e a meia hora seguinte cá em cima, para limpar e respirar. Andei nisto dois anos, quer a bordo quer nas oficinas.
Aí, amarguei a decisão de ir trabalhar, até porque a mala de ferramentas que andava sempre comigo para cima e para baixo tinha uns 25 quilos. Depois, quando fui para a oficina de mecânica, o trabalho já era um pouco mais leve, tinha outras condições. Portanto, a minha primeira experiência no mundo do trabalho foi esta. E foi uma aprendizagem que ainda hoje me acompanha. Explico porquê.
Todos os dias tínhamos a distribuição de trabalho e, um dia, o Senhor Branco diz-me que vai abrir uma secção nova, no Palácio de Cristal, o edifício da administração, assim chamado porque era todo envidraçado. Estava a ser formada a secção de planeamento, precisavam de um aprendiz e perguntaram-me se queria ir para lá. Depois do que sofri, é claro que queria. E assim foi, aos 19 anos. Saí da oficina para o edifício da administração. Nós brincávamos que, na Lisnave, só havia dois tipos de pessoas: os de fato-macaco e os macacos de fato, e eu passei de um para outro.
Esse trabalho foi riquíssimo e aprendi muita coisa. A função do planeamento era ver, com uns meses de antecedência, qual o trabalho que íamos ter e como íamos distribuir os funcionários, se tínhamos toda a força a trabalhar ou se era preciso buscar mais clientes ou, pelo contrário, faltaria gente e tínhamos de ir buscar mão de obra. Esta foi a minha primeira experiência com um pensamento de organização, de gestão, de busca de eficiência, que me foi muito útil toda a vida. Estive 26 anos no grupo de empresas da Lisnave; por isso, costumo dizer que só tive um patrão em toda a vida: o Grupo José de Mello. Porque, nos anos 80, era administrador da Luso-Italiana, das torneiras Zenite, e comprei a empresa ao Grupo Mello. Tornei-me assim patrão, até de mim próprio.
De facto, o meu primeiro emprego foi como operário, mas, para mim, o primeiro emprego é todo esse tempo na Lisnave, onde fui mudando de funções e aprendi muito. Até quando estive à frente da comissão de trabalhadores depois de derrotar uma lista da CGTP, que ganhava sempre, e fechámos um acordo de empresa que, na minha opinião, foi muito importante para salvar a Lisnave da falência. Foi onde me fiz, em inúmeros sentidos, e ainda tenho sensações fortes, por exemplo, quando sinto o cheiro da maresia. Ficaram-me muitas lições, desde a resiliência, o não desistir – dos tempos de trabalhar nos tanques – até à capacidade de diálogo e negociação e o entender o que é a organização de uma empresa daquele tamanho.
Artigo originalmente publicado na Exame de maio de 2024