Nasceu em 31 de outubro de 2008, para romper com o sistema. No documento que a apresentou ao mundo, cujo autor se desconhece, era descrita como uma moeda que eliminava a necessidade de qualquer instituição financeira. Agora, a rebelde bitcoin senta-se à mesa de fato e gravata com Wall Street. E vai continuar a alimentar-se dele, depois da aprovação de um ETF, pela SEC – regulador do mercado norte-americano, que torna legal a venda deste instrumento por parte de fundos institucionais.
“Parece irónico que os defensores da bitcoin como um ativo disruptor para o sistema financeiro estejam agora a gabar-se desta aprovação”, começa por explicar à EXAME, Robert Johnson, professor e “chairman” da Economic Index Associates, nos EUA. “Na verdade, muitos dos especuladores deste meio querem que esses ativos sejam mais integrados ao sistema financeiro tradicional”, acrescenta.
Na prática, esta aprovação do regulador significa que os fundos de Wall Street podem vender ETF de bitcoin (um tipo de instrumento financeiro que replica a evolução do ativo ou índice subjacente), deixando a venda de estar centrada em empresas com práticas sancionadas nos últimos tempos, como a Binance ou a extinta FTX.
Significa também que a rainha das criptomoedas volta, uma vez mais, a ignorar a sua maior força – e uma das razões por que foi criada: não precisar de uma terceira parte para ser transacionada. E isso, de novo, só a valorizou, uma vez que o acesso ao investimento fica mais fácil. Pedro Borges, CEO do Mercado Bitcoin, diz à EXAME que “muitos institucionais que evitavam comprar bitcoin por causa do problema da custódia, devido aos problemas ao controlo de carteiras”, vão agora estar mais atraídos por esta criptomoeda. “A facilidade com que a bitcoin fica acessível, irá, acredita-se, fazer com que a procura aumente”.
SEC abre a porta a uma nova era?
A aprovação do regulador liderado por Gary Gensler marca uma reviravolta na abordagem da SEC ao mundo das criptomoedas, depois de ter resistido durante quase uma década a este desfecho. Ainda assim, apesar da “luz verde”, o regulador deixa um alerta: “Apesar de aprovarmos a listagem e negociação de certos ETF de bitcoin, não aprovamos ou apoiamos a bitcoin”, alertando para os riscos associados a estes produtos.
A decisão final de Gensler fez com que, a partir desta quinta-feira, ficassem disponíveis 11 diferentes ETF desta criptomoeda no mercado, operados por empresas que vão desde a Fidelity ou a BlackRock até à Grayscale ou a Ark Invest – que este por trás do pedido de aprovação. Na prática, o investidor pode comprar um produto destes que valoriza ou desvaloriza acompanhando o preço da bitcoin, mas sem comprar diretamente a moeda virtual.
“Com a aprovação dos ETF podemos esperar entrada de capital institucional que de outra forma não estaria disponível. Antes dos ETF, devido a incertezas legais e até mesmo de custódia, as instituições financeiras não tocavam neste ativo. Com os ETFs tudo muda”, explica à EXAME, João Lajes, cofundador da Lympid, empresa portuguesa do ramo.
A vantagem destes veículos face ao que estava a ser praticado, é que, para além da segurança regulatória destas empresas, existem benefícios fiscais nos EUA e em alguns países europeus e taxas de intermediação menores. A BlackRock e a Fidelity anunciaram percentagens inferiores a 0,5%, por exemplo.
Os ETF de bitcoin já eram permitidos noutros mercados, como nos Países Baixos, mas tinham pouca expressão. Mesmo nos EUA, já existiam ETF ligados aos futuros da bitcoin, semelhante ao que acontece com os futuros do petróleo, por exemplo. Mas a aprovação norte-americana de um ETF que liga, de forma umbilical, o instrumento ao preço da bitcoin, pode ser um passo muito importante na institucionalização da bitcoin como ativo financeiro.
“Claramente que as instituições que tiveram os ETF aprovados são beneficiários, mas acima de tudo quem mais beneficia é o espaço cripto. Isto é uma espécie de validação depois de tantos anos a incutir a ideia de “bolha” especulativa”, continua João Lajes. Robert Johnson alerta que quem comprar este tipo de ETF “vai acreditar que está a investir quando, na verdade, estão só a especular. Isto é perigoso e provará ser uma atividade destruidora de riqueza para muita gente”.
Até onde pode ir o preço?
Depois de uma travessia do deserto, com o preço desta criptomoeda a afundar à boleia dos sucessivos escândalos de alguns protagonistas deste ecossistema, o preço disparou 150% em 2023 e abriu 2024 com uma subida. Tudo alimentado pelos rumores de que esta aprovação por parte da SEC estaria iminente. Neste momento, um dia depois da aprovação, a cotação da moeda chegou a atingir os 49.000 dólares, um máximo desde maio de 2022. No início de 2023, depois dos escândalos relacionados com a falência da FTX, estava abaixo dos 20.000 dólares.
Os analistas do Bernstein, citados pela Reuters, dizem que o volume de negociação destes ETF vai gradualmente ultrapassar os 10 mil milhões de dólares em 2024 e podem atingir os 80 mil milhões até ao final do próximo ano. “Espera-se que os ETF de bitcoin sejam um jogo de ativos competitivo, com 11 gestoras de ativos a lançarem este instrumento ao mesmo tempo”, diz o banco de investimento, numa nota.
Citado pela Bloomberg, o banco britânico Standard Chartered estimou que o preço da bitcoin possa aumentar quatro vezes mais face ao valor atual, passando a valer 200 mil dólares por unidade até ao final de 2025.
Outro dos pontos que pode ser importante para a variação do preço da bitcoin é que em 2024 teremos um novo “halving”, um fenómeno que acontece a cada quatro anos, em que a quantidade de bitcoins emitidas é menor, fazendo que com o número de criptomoedas a circular nunca ultrapasse os 21 milhões. Este mecanismo chamado “halving” foi estudado para que o preço da bitcoin resistisse ao impacto da inflação, ao longo do tempo e, por norma, é historicamente acompanhado de uma subida de preços.
A entrada das criptomoedas no espaço institucional vinha a ser uma realidade desde que a sua fama disparou, em meados de 2020. A partir daí, empresas que lucravam com ela, como a Coinbase, cotaram-se em bolsa. Outras empresas, como a Tesla, incluíram-na no seu balanço, como se de um outro ativo qualquer se tratasse. E apareceram bancos que só trabalhavam com este tipo de criptomoeda, como é o caso da Anchorage Digital Bank – o primeiro a ser regulado nos EUA, criado pelo português Diogo Mónica. Agora, a vida institucional da bitcoin, ganha nova força.