Aos 22 anos, Luis de Matos negociava com a RTP “orçamentos de 200 mil contos, para 26 horas de televisão com convidados do mundo inteiro”. Hoje, aos 53, até ele se admira de ter merecido tal confiança. Com 28 anos de carreira artística (apesar de ter formação em Engenharia Técnica de Produção Agrícola) ainda não se imagina a fazer outra coisa. “Esta área tirou o melhor de mim. Dá-me tantas alegrias, permite-me viajar pelo mundo, conhecer pessoas incríveis e que cada dia seja sempre diferente”. É no Estúdio 33, em Ansião, Leiria, que dá azo à sua imaginação. “Podemos entrar aqui um dia e estamos todos a colar etiquetas. Noutro estamos a encher mil balões ou estamos todos borrados a pintar, E, noutro, está tudo com vontade de chorar porque temos aqui um problema. Trabalhamos num espetáculo novo que vai precisar de uma porta muito especifica. Começámos a trabalhar nisto em maio! Construímos 4 portas, 4 sistemas de dobradiças. E só agora conseguimos, finalmente, que a porta funcione. E a satisfação de chegar aqui e dizer: Era isto!”.
Está de volta aos palcos nacionais com a quarta edição do espetáculo Impossível ao Vivo. O que se pode esperar?
Vão ver cinco artista diferentes, homens e mulheres a fazerem magia para todas as idades e toda a família. É dos últimos redutos em que as famílias podem ir juntas. Não vão juntas a um concerto de heavy metal ou de ópera, mas podem ir a um espetáculo de magia. Este espetáculo surge como spin-off da série da RTP, o Luís de Matos Impossível. Em 2018, decidimos pegar no conceito do programa de televisão e levá-lo para os teatros. Tem sido incrível a adesão: primeiro ano, 25 mil espectadores; segundo ano, 2019, 30 mil; 2020, não fizemos; 2021, não fizemos. Eh pá, 2022, vamos lá ver como corre, e tivemos 35 mil espetadores. E este ano acho que vamos chegar aos 45 mil.
Mas por que repete a fórmula? E por que já não é só o Luis de Matos e convida outros quatro mágicos?
Fazemos dois tipos de espetáculos em Portugal. O one man show, só com Luis de Matos, modelo que inventamos em 2002, com a crise. Como não íamos fazer grandes salas e não podíamos contratar 12 bailarinos e 100 técnicos, olhamos para dentro e dissemos: que espetáculo (cenários, luz e som) pode ser feito só pelos da casa? Daí nasceu o Luis de Matos Close Up – close up porque era a primeira vez que me iam ver em teatros de pequena e media dimensão. Correu tão bem que a seguir fizemos o Enigma, que esteve seis anos em cena e percorreu 200 teatros do país. Em 2011, fizemos o Caos, mais uma vez foram duas horas de material original e seis anos de digressão. Estamos agora a trabalhar num novo, que há-de estrear para o ano e fazer digressão no seguinte e, mais uma vez, será Luis de Matos sozinho. No Impossível ao Vivo apresento, faço ilusões e tenho convidados. O objetivo é que vejam magia de qualidade e não necessariamente só a mim. Quanto mais magia as pessoas virem, mais facilmente vão ter um critério e perceber o que é bom ou mau, do que gostam ou não. Pelo posicionamento que fomos tendo, é fácil trazer os melhores mágicos do mundo para partilhar o palco durante quatro ou cinco semanas. São meus amigos, conhecidos, relacionamo-nos. Esta é a quarta edição, mas sempre diferente das anteriores. Não só estes quatro artistas são diferentes em cada ano, como coloco ilusões novas todos os anos.
Tornou-se famoso em 1995, com 25 anos, ao adivinhar os números do totoloto. Foi uma grande operação de marketing para projetar a sua carreira?
Não foi pensada como tal. Não tinha a noção do quão grande aquilo ia ser.
Se tinha a televisão envolvida, naturalmente saberia que ia ser amplificado.
Sim, mas não sabia que ia abrir todos os telejornais. Não tinha essa noção. E até é fixe não ter.
É mais intuitivo e espontâneo do que calculista?
É muito a experimentar. Não sabia que o meu último espetáculo virtual por zoom ia ter um auditório de 6 mil pessoas, em que cada uma pagou €30. Não sou tão calculista quanto a fase em que me encontro já devia permitir que fosse. Ainda sou um bocadinho inconsciente e divirto-me com isso. Não perdi a capacidade de me surpreender. Mesmo quando dizem que é um bocado à doida – e até pode ser – ainda arrisco. Ainda consigo atravessar a auto estrada de olhos vendados e ter a sorte de chegar ao outro lado sem ser atropelado.
Já correu algum risco do qual tivesse saído queimado?
Sim. Literal e simbolicamente. Em 1994, durante uma gravação, queimei-me fortemente nas costas com um projetor. Mas ao longo destes 28 anos de carreira, houve uma altura em que se o sonhador dissesse ‘era espetacular fazer uma cena com seis elefantes’, e o meu lado financeiro respondesse ‘não temos dinheiro para seis elefantes”, o artista dizia: ‘não importa, para já vamos arranjar seis elefantes’. Uns anos depois, quero na mesma fazer coisas com elefantes, mas, como já me queimei algumas vezes, vou alugar só meio elefante e, com um espelho, fazer parecer que é um. E, com mais uns espelhos, são seis. É um meio termo. Este equilíbrio é muito importante. E o mapa-mundo, que está em todas as minhas salas, é determinante, porque também lembra a ambição e a humildade.
Como assim?
É também combater a síndrome de filho único: é muito fácil sermos o mais inteligente lá em casa; daí a ser o mais inteligente da rua vai um bocadinho. O elogio pode ser enganador, em função do contexto: onde? comparado com quem? em Ansião, Portugal ou no mundo? Procuramos que tudo aquilo que fazemos não seja mau porque é feito em Portugal. Fazemos tudo com uma bitola internacional. Se a Magic Conference que fizemos a partir daqui e teve dois mil e tal mágicos de todo o mundo a assistir fosse em Nova Iorque ou em Tóquio era melhor? Não. E o truque do totoloto se fosse feito em Londres? Também não. Tem de ser tão bom aqui como seria lá. Essa é a nossa ambição. Por outro lado, olhar para o mapa, também é bom para humildade. Quando me sinto muito importante e vaidoso porque saio numa revista portuguesa, o mapa é o mecanismo de defesa. Digo: “És superfamoso. Mas onde é que essa revista se vende? [levanta-se e aponta o dedo sobre o pontinho que representa Portugal no mundo]. Aqui, neste sítio. Por isso, sossega”.
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Já atuou nas maiores casas do mundo, desde a Sidney Opera House, na Austrália, a Abu Dhabi com bilhetes a 350 dólares. Qual é para si o símbolo do sucesso?
Continuar a poder fazer coisas. A forma como encaro a minha profissão é muito parecida com a dos gladiadores. Estes iam para o Coliseu lutar com o leão. Há os que morrem. E qual o prémio dos grandes vitoriosos? Voltar a lutar. Eternamente. Até ao dia em que o leão ganhe. E é isto.
A forma como encaro a minha profissão é muito parecida com a dos gladiadores. Estes iam para o Coliseu lutar com o leão. Há os que morrem. E qual o prémio dos grandes vitoriosos? Voltar a lutar. Eternamente. Até ao dia em que o leão ganhe
Usa muito as novas tecnologias: quase foi pioneiro a fazer um congresso mundial por streaming, fez o Conectados, em que ligou a plateia física a quem assistia a partir de casa, só para dar alguns exemplos. O uso das novas tecnologias melhorou as capacidades do homem de palco?
Claro. O mais interessante, nesta área, é que estamos permanentemente a fazer o que é impossível hoje, que não é necessariamente o que será impossível amanhã ou o que era impossível há cem anos. Há uma evolução na conceção do espetáculo, porque a medida da impossibilidade vai-se alterando.
O espetáculo de magia é cada vez mais uma grande produção?
Absolutamente. Tenho a obrigação de melhorar a experiência e de dar o melhor aos que acreditam em nós. Quero que cada espetáculo meu seja o melhor que fiz na vida. Tenho de matar o leão. E as pessoas têm de sair dali muito satisfeitas.
A mentira ou ilusão é cada vez maior e mais bem feita?
É mais contemporânea. O que espanta e surpreende as pessoas também vai mudando. Estamos cada vez mais insensíveis. Estimular a nossa capacidade de assombro é cada vez mais difícil. Ela está entorpecida. Ficamos indiferentes a tudo o que é tecnológico. Esta coisa do ‘não me digas, isso é impossível’, já não existe.
Estimular a nossa capacidade de assombro é cada vez mais difícil. Ela está entorpecida
Nota isso como artista?
Noto. Mas também noto que não somos indiferentes ao talento. Hoje, quanto mais humano e menos tecnológico for o talento demonstrado em palco, mais envolvimento há.
Mas para fazer coisas cada vez mais espetaculares não tem de usar cada vez mais tecnologia, efeitos especiais ou até IA?
Não de forma gratuita. Mas para comunicar emoção, contar uma história, criar um percurso de entusiasmo e de sentimentos ao longo do espetáculo.
Tem atraído novos públicos?
Tenho. No final dos espetáculos fico sempre um pouco a tirar fotografias ou a dar autógrafos. Gosto desse feedback, de saber do que gostaram ou não.
Gosta de alimentar o ego?
Não é pelo ego. O que mais alimenta o ego do que acabar com 5 minutos de um aplauso de pé? Não, fico ali e sujeito-me a ouvir coisas como ‘não gostei disto’. Mas é muito surpreendente haver casais que me dizem que já vinham com os pais e agora trazem os filhos. Há um lado transgeracional que não passa de moda. Olho o público e vejo todas as idades e todos os géneros. Esta é a última expressão artística que tem um poder tão transversal e aglutinador.
O que tem a magia de ciência?
Os mágicos e os cientistas têm um percurso semelhante. Porque o que nos move é a concretização de uma impossibilidade. A magia só ganha num aspeto: não tem de concretizar, mas de criar a ilusão de que está a acontecer. Já os cientistas vão ter de continuar a trabalhar até que seja possível. A magia descontextualiza princípios científicos – matemáticos, químicos, ótica, psicológicos -, e coloca-os ao serviço de uma narrativa diferente, de uma história, tipo fazer desaparecer alguém de um sítio e fazê-la aparecer noutro. Já conseguimos fazer coisas primeiro do que os cientistas. O Georges Méliés [mágico e cineasta] fez o filme da viagem à lua antes do homem lá chegar. De alguma forma, o mágico prototípa o futuro. Teletransporto-me do palco para a plateia em dois segundos. Isso hoje é impossível. Mas, se calhar, um dia vai ser. A linha da impossibilidade vai-se deslocando e temos de estar um bocadinho à frente.
O público tem sempre curiosidade em descobrir o truque usado. Mas já disse que gostava que se visse o espetáculo sem essa tentação. Porquê?
Porque se se envolver, deslumbrar ou emocionar com o que vê, sente uma sensação muito mais premiadora e intensa do que saber que aquilo é feito com um íman gigante e pendurado por um ferro que está pintado de preto. O que é mais importante? Ouvirmos uma melodia que nos emociona ou saber a ordem das teclas tocadas no piano? Gostava que aproveitasse o tempo a usufruir e não nesse conflito. Primeiro, porque esse é um conflito que tende ao desastre – é muito provável que nunca consiga descobrir. Depois, também não faz esse exercício, altamente redutor da experiência, quando vai ao cinema. E também sabem que aquilo é mentira.
Leva-nos a acreditar que o que vemos é verdade, não é? É o que faz uma cartomante, um adivinho ou um médium.
É muito diferente. A cartomante é vigarista, está a vender uma coisa que não tem competência para entregar.
E o Luis não está a vender aquilo em que o outro quer acreditar?
Não. Porque assumo que é mentira. A cartomante assume que é verdade. O que faz com que seja surpreendente o que faço é dizer: o que vão assistir a partir de agora é mentira. A beleza reside precisamente nessa ilusão. Como é mentira quando lemos um livro de Harry Potter. A única diferença é que consigo aparentemente fazer acontecer de verdade, perante o escrutínio dos seus sentidos. Uma coisa é vigarice, outra é uma expressão artística e de entretenimento.
Já hipnotizou alguém?
Já. A hipnose é uma área que me fascina, que estudo e já utilizei. Ainda há um mês estive na UK Hypnosis Convention, em Inglaterra.
E já se deixou hipnotizar?
É muito difícil hipnotizar alguém que domina a técnica. Até porque só é hipnotizado quem quer. Há imensos mitos, de que se pode hipnotizar alguém contra a sua vontade, que se pode ter controle sobre essa pessoa.
A hipnose também é uma mentira?
É uma mistura de comunicação e sugestão. Terapeuticamente, pode ser tão eficaz como um placebo, um comprimido de farinha misturado pela pessoa certa na altura certa.
A magia é a arte pobre da cultura?
Fomos conseguindo fazer coisas tão ou mais surpreendentes precisamente por não serem habituais. Ver um espetáculo nosso em cena num teatro nacional duas semanas é uma conquista imensa. Ter recebido a medalha de Comendador da Ordem Infante D. Henrique pela divulgação da cultura portuguesa no mundo também.
Foi uma condecoração do então presidente Cavaco Silva, em 2014. Mas, afinal, o que fez por Portugal no mundo?
Não sei. Sei que toda a minha carreira internacional não foi feita junto das comunidades portuguesas. No entanto, temos uma carreira internacional, de Sidney Opera House ao Auditório Nacional de Abu Dhabi, ao West End de Londres, uma serie no canal 1 da BBC ao sábado à noite, na Antena 3 em Madrid. Alguma coisa estamos a fazer bem.
Esse público internacional sabe que é português?
É a primeira coisa que digo. Sempre. É importante e tenho muito orgulho em ser português. Tenho muito orgulho na história de Portugal, mesmo tendo vindo, aos 4 anos, retornado de Moçambique com os meus pais. Viemos para Ansião porque os pais dos meus pais eram daqui e os da minha mãe de um concelho aqui ao lado.
É importante e tenho muito orgulho em ser português
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Estando o mágico sempre a tentar antecipar o futuro, como prevê que seja realmente o futuro?
Sou um otimista por natureza. Mas relativamente ao futuro do mundo sinto exatamente o contrário. O mundo está tão distraído a ter discussões mesquinhas com uma importância equivalente à leviandade com que toca questões importantes. Estamos todos munidos de megafones, a dar opiniões públicas nas redes sociais. Mas nem toda a gente sabe cantar ou falar. Portanto, calma. Não temos todos de ser comentadores. Pensei que quando saíssemos da Covid íamos respeitar-nos mais. Perdão?! Está tudo mais irrascível, mais intolerante, mais mal-educado, mais egoísta. Não aprendemos nada?
Portugal é um bom país para as empresas?
Gosto de viver e ter a minha atividade em Portugal. Ridículo é que o interior não seja apoiado, que os governantes se refiram a partes do país como ‘a província’. Portugal não é assim tão grande para ter grandes cidades e província. E as áreas metropolitanas do Porto e de Lisboa estão a crescer de tal ordem que fazem um efeito tenaz esmagador ao resto do território. Não me admiro se um dia me disserem que a fronteira entre a área metropolitana do Porto e a de Lisboa é a ponte de Santa Clara em Coimbra.
O que se devia fazer que não está a ser feito?
Devia-se pensar num ordenamento do território que fosse para além da semana que hoje começa. As coisas são sempre pensadas num horizonte dos quatro anos de uma legislatura, ou em 2, para já ser fixe para uma eleição. Isto é válido para o poder autárquico e para o poder central. Faz-se uma gestão com vista a uma reeleição.
Anda por todo o mundo, mas nunca quis sair de Coimbra. A sua costela conimbricense ainda está assim tão enraizada?
Está. É a minha zona de conforto. Precisamente por viajar muito, estou muito exposto pessoal e artisticamente, o que fez com que esta noção de porto seguro tivesse um valor ainda maior. E Coimbra sempre foi para mim um porto seguro. Foi o casulo em que cresci. Deixei de ser filho único quando fui estudar para Coimbra com 15 anos e partilhar apartamento com outros três rapazes. Foi uma revelação, a de que o mundo era mais do que o meu quarto e os meus pais. Isto acontece em interação direta com a cidade. Ao longo do tempo, percebi que era possível manter esta carreira artística sem viver em Lisboa.
Coimbra sempre foi para mim um porto seguro. Foi o casulo em que cresci
Tem aí também uma costela regionalista?
Não. É encarar Portugal como um todo. E não como este é o sitio onde se decide e estão as pessoas importantes e depois fazem-se umas reportagens sobre como é a vida junto ao Alqueva e vamos visitar as gravuras de Foz Côa como quem vai viajar para outro continente.
O que gostava de fazer que ainda não fez?
Tudo, praticamente tudo. Adoro aprender. Todos os dias gosto de aprender coisas. E aprender faz-nos mais fortes. A nossa caixa de ferramentas é diretamente proporcional às coisas que aprendemos. E não tem mal nenhum dizer ‘não percebo nada disso, mas gostava de saber. Explique-me lá’. Porque quando aprendemos qualquer coisa também admiramos mais o trabalho dos outros.
Nota: Esta é parte da entrevista que está publicada na edição de dezembro da EXAME, e que explora mais a fundo a vertente de Luís de Matos enquanto empreendedor e empresário