“Costumo dizer que a Sanjo é uma velhinha com 89 anos, que foi muito maltratada, que não tinha muita atenção.” A frase do diretor criativo, Vítor Costa, 35 anos, não podia ser mais certeira para resumir a vida desta marca, sinónimo da primeira sapatilha portuguesa.
Nascida em São João da Madeira, irmanada da indústria chapeleira, era a marca que, pelos anos 60 do século XX, calçava o clube desportivo São Joanense, bem como a esmagadora população estudantil com aulas de Educação Física. Mas depressa esta sapatilha com borracha vulcanizada “saltou dos pavilhões para a rua”, emprestando modernidade a uma juventude libertada pela revolução de Abril. Nos anos 80, eram raros os que não calçavam umas icónicas K100 ou K200, um orgulho nacional.
A adesão de Portugal à então CEE e a consequente abertura de fronteiras que enchem o País de múltiplas novas escolhas empurram as velhinhas sapatilhas para o fundo da prateleira. Em 1996, a fábrica (Empresa Industrial de Chapelaria Lda) declara falência. A marca vai a leilão e é comprada por Paulo Fernandes, um empresário de Lisboa, que, em 2010, começa a fabricá-la na China. Não resultou. As sapatilhas desaparecem de novo. Voltam a mudar de dono em fevereiro de 2019. Regressam à rua, curiosamente, durante a pandemia de 2020: rejuvenescidas, joviais, coloridas. Agora fabricadas em Felgueiras e “com produção 100% portuguesa”.
Quando Egipto Magalhães, 58 anos, foi abordado para comprar a Sanjo, tinha acabado de dar uma grande volta na sua vida. Despedira-se do emprego anterior e criara a M2Bewear, em Braga, para vender material de proteção individual, fardas e uniformes. “Oh pá, vou agora lá meter-me nisso”, respondeu, dizendo que “não, uma, duas, três vezes”, até porque de calçado nada percebia. Face à insistência, falou com o seu sócio, Hélder Pinto, 47 anos, que “ficou logo de orelhas levantadas”, pois este já tinha alguma experiência no setor. “Mas vai ser preciso muito dinheiro”, avisou, antecipando a necessidade de investimentos que já rondam os “500 mil euros”.
A M2Bewear lá agarrou a oportunidade e não se arrependeu. O negócio dos uniformes e similares passou para segundo plano. “O foco passou para a Sanjo.” Foi preciso trazer a produção da China para Portugal. Chegar à parceria com quem tinha comprado as máquinas: Luís Oliveira, dono da Aboutoday, a fábrica de Felgueiras onde são agora fabricadas as novas Sanjo, em regime de outsourcing. Foi necessário “partir do zero”: fazer novos moldes, desenvolver novas formas, outros cortes. Abandonou-se a borracha vulcanizada (material em desuso pela energia que gasta com fornos) e optou-se pela sola colada e feita, em Guimarães, a partir de materiais reciclados.
Mas, como sublinhou Egipto Magalhães, “há um antes e um depois” da contratação de Vítor Costa, o criativo que reanimou a imagem das novas Sanjo: a antiga lona preta deu lugar a outros tecidos, como a bombazine com cores de água e terra, ou o burel, para o inverno. Tudo, sem desvirtuar a silhueta, “única e com identidade”. A próxima coleção tricolor, para o Inverno, deu-lhe alegria.
Desde sempre apaixonado por sapatilhas, Vítor Costa anteviu o potencial da marca. Saiu da Nobrand, onde era designer de calçado, e abraçou o novo projeto: “Senti que tinha muita coisa para explorar”, numa marca com “uma entidade tão vincada”. Queria transferir dinamismo, espontaneidade. Se as origens da marca remontam à equipa de basquete, o novo target foram os skaters. Foram eles que as experimentaram. E assim foram aperfeiçoadas. A ideia é dar “espontaneidade e energia” à sapatilha, “um lado concetual que nunca teve”, reforça Vítor Costa. E tais adjetivos encontram-se nas comunidades mais jovens (nada de saudosistas, portanto).
Uma parceria com a Surge, revista de skate, ajudou e a Sanjo passou a financiar até uma equipa. Um grupo de influenciadores fez o resto. O passo seguinte será colaborar com uma série de artistas: plásticos, de música eletrónica ou mesmo grafiters. “É dentro destes nichos, onde a marca nunca esteve, que começa a ser respeitada. Ganhou uma dimensão diferente e uma personalidade grande pela harmonia entre coleção, imagem e maneira de estar”, explica Vítor. Ou seja, ganha o conceito de “comunidade” que também pretende imprimir à marca.
O grande segredo foi a velha frase: só sei que nada sei. Por isso, procurámos pessoas que soubessem
egipto magalhães
A primeira coleção saiu em setembro de 2019. A pandemia atravessou-se, entretanto. As entregas em loja foram canceladas. “OK, vamos morrer à nascença, com os armazéns cheios”, pensou Egipto Magalhães. Surpreendentemente, valeu-lhes a loja online. “Comecei a vender três ou quatro pares e, de repente, vendia 30 ou 40”, conta. Agora, a Sanjo já está colocada em “quase 100 pontos de venda offline” e prepara-se para ter loja pop-up nos El Corte Inglès de Lisboa e do Porto.
Se a primeira coleção foi de cinco mil pares, em 2021 venderam mais de 30 mil. “Fechámos 2021 a vender quase €1,5 M. Este ano, queremos passar os €2M. No ano passado já apresentámos lucro, começámos a equilibrar as coisas”, confessa, satisfeito, Egipto Magalhães. “O grande segredo foi a velha frase: só sei que nada sei. Por isso, procurámos pessoas que soubessem. Fomos buscar o Vítor, para ter aqui alguém que perceba, viva e se embrenhe com a marca. E acertámos.”
Este texto integrou o trabalho “As Fénix Renascem”, publicado originalmente na edição da EXAME de maio de 2022