Fellow da Royal Society of Arts, nomeado pela revista Creativity como “uma das 50 mentes mais criativas e influentes de 2009”, é designer, investigador, professor e conferencista. Pisou o palco do TED e de Harvard, foi destaque no New York Times e na revista Science. Manuel Lima é uma das vozes mais influentes na área emergente da gramática visual: a visualização de dados. Encontrámo-lo junto ao rio, num dia de calor. O cenário parece assentar-lhe. Farto do rebuliço das grandes cidades, trocou Nova Iorque por Lisboa há cerca de um ano. Diz que a cidade está diferente, mais cosmopolita. Gosta do bacalhau e da bica, mas entusiasma-se com um bom restaurante vietnamita. As raízes e influências são visíveis no discurso, cujo português é interpolado por anglicismos com uma ponta de sotaque açoriano. A amplitude de espaços e experiências dão-lhe o despretensiosismo que fica patente no tom informal da entrevista. À EXAME, falou de metáforas visuais e de como é preciso ousar para tornar visíveis os sistemas complexos e interconectados dos quais dependemos hoje, sejam cadeias de abastecimento mundiais ou ecossistemas ecológicos. Mas também da importância da ética no design e de como empresas como a Google, para a qual trabalhou até 2021, manipulam a mente humana. O seu próximo livro, a ser editado pelo MIT Press em 2023, reflete precisamente sobre isso.
Tiraste o curso de Design Industrial em Lisboa, no final da década de 1990, e mais tarde foste para Nova Iorque tirar um mestrado em Design e Tecnologia na Parsons School of Design. Foi aí que começou esta relação com a visualização de informação? O que te despertou para esta área?
É daqueles momentos da vida que recordas com total nitidez. Eu estava numa aula, de Arquitetura de Informação, e o professor, Christopher Curran, supercarismático, mostrou-nos o diagrama do espectro do conhecimento, em que dados dão origem a informação, informação dá origem a conhecimento e, por sua vez, conhecimento dá origem a sabedoria. E eu vi esse diagrama e pensei: “Esta é a minha calling.” Quero fazer parte deste percurso e, em particular, da ponte entre informação e conhecimento, que é um dos maiores desafios que temos neste século. Há uma enorme abundância de dados, mas transformá-los em conhecimento é a parte mais complicada.
Estávamos em 2004. Suponho que o estado da arte fosse muito incipiente?
Sim. Era uma disciplina altamente académica. O pouco que havia ainda existia dentro dos portais académicos. Era uma área muito restrita.
Nos últimos 20 anos, houve uma grande evolução, também muito alavancada por avanços tecnológicos…
Foi uma confluência de vários fatores: os avanços tecnológicos, o crescente volume de dados, novas ferramentas que permitiam tratar esses dados, mas também uma perceção e um interesse mais generalizado, em que os média tiveram um papel importante. Hoje, grande parte dos maiores grupos de média tem equipas dedicadas à visualização de dados. O New York Times, por exemplo, teve uma preponderância enorme na explosão da disciplina. Acho que os média se aperceberam de que o público em geral recebe bem esse tipo de infografias mais avançadas, que exploram metáforas visuais um pouco diferentes do convencional.

Diagrama que exibe os números de anos restantes até que vários recursos naturais se esgotem. Cada recurso é representado por uma barra que se estende no sentido dos ponteiros do relógio em torno do período de 100 anos da matriz. Os anos restantes para cada recurso são indicados dentro do círculo no final da barra. Crédito: IIB Studio.
Apesar de a disciplina ter “explodido” nos últimos anos, ela não é propriamente nova.
O design de informação sempre existiu. Na versão mais abrangente do termo, a visualização da informação existe há séculos. Nos meus livros, tento desmistificar a noção de que a visualização da informação é algo que surgiu nos últimos 20 anos. Algumas coisas mudaram, mas o objetivo principal continua intacto desde o início da Idade Média. Acho que é essa a génese da disciplina. Nessa altura, existiu uma avalanche de novos dados vindos da Grécia e Roma antigas. E as pessoas pensavam que não existia forma de fazer face a esse volume avassalador de informação. Surgiu também Gutenberg, os livros massificaram-se. De repente, existiam milhares de livros. E o design de informação surge para fazer face a esse volume avassalador de dados. Acho que, hoje em dia, sofremos um pouco dessa mesma sensação. A diferença é que temos ferramentas muito mais potentes e o volume de dados é muito superior.
Quando olhamos para o Visual Complexity, o site que fundaste em 2005, percebemos que há determinadas formas que são mais recorrentes. Por exemplo, os círculos ou as redes neuronais. Porquê estas?
Existem algumas formas gráficas que são mais adequadas a determinado tipo de dados. Se tivermos dados temporais, por exemplo, vamos recair forçosamente em algum tipo de timeline. Se tivermos dados geográficos, vamos recair em algum tipo de mapa ou representação geográfica. Mas isso nem sempre existe. Quando falamos de dados sobre sentimentos, ou de quantas pessoas visitaram este espaço hoje, qual era a composição dessas pessoas… não existem formas muito eficazes, ou automáticas, de visualizar esses dados. E é aí que entra a liberdade criativa. Em parte, acho que existe uma certa predisposição genética para determinadas metáforas visuais, incluindo o círculo. Cerca de 40% de todos os mapas que tenho no Visual Complexity apresentam algum tipo de forma circular, o que demonstra a existência de uma tendência para essa forma. Mas o maior desafio é o facto de o ser humano ser preguiçoso. Preferimos usar metáforas visuais que sabemos que serão bem aceites pelo público. Temos medo de arriscar, e isso tem de mudar. Por exemplo, nunca vamos conseguir visualizar muitos dos desafios que temos em termos ecológicos através de um gráfico de barras. Trata-se de um ecossistema que funciona em rede, altamente interdependente. Todos os gráficos tradicionais e convencionais não conseguem ajudar-nos a compreender muitos desses novos desafios.
Consegues visualizar essas novas formas?
Rede é um novo paradigma que substitui a árvore. A árvore foi a forma visual predominante durante, sensivelmente, um milénio – para visualizar tudo, não apenas árvores de família, mas, por exemplo, para visualizar leis. Aliás, de acordo com alguns historiadores, os primeiros diagramas em árvore foram criados na Roma Antiga, para visualizar sistemas hierárquicos de leis. Mas as redes também têm limitações do ponto de vista visual, não só para nós, humanos, conseguirmos tirar sentido da informação, mas também para a própria máquina conseguir visualizar todos os nós, todas as ligações. A verdade é que ainda não conseguimos encontrar metáforas visuais ideais, e acho que estaremos sempre um passo atrás. A nossa capacidade de gerar dados excedeu, em larga medida, a nossa capacidade de fazer os mesmos terem sentido.
Afirmaste, numa entrevista recente, que “a visualização é bela quando a informação é organizada de tal forma que padrões e estruturas são revelados”. Confesso que, apesar de, na sua maioria, estas representações serem visualmente muito apelativas, a informação é algumas vezes difícil de apreender. Qual é o trade-off desejável aqui?
Acho que tens toda a razão nesse sentido e creio que, em parte, isso acontece pela imaturidade da disciplina. Houve um grande avanço, principalmente no design de interação, que permite perceber melhor toda a complexidade de que estamos a falar, de ecossistemas, interdependências. Acabo por não ser tão crítico desse processo porque é uma área ainda completamente emergente. Se quisermos ser ousados, ter a coragem de experimentar modelos novos, vamos ter de passar por um processo em que algumas coisas não funcionam. E vamos aprender com esses erros e seguir em frente.

Uma árvore radial que classifica 10.568.679 itens na Wikipédia por tipo. O tamanho dos círculos é proporcional ao número de entradas na Wikipédia relacionadas com cada conceito, e os ramos representam as principais categorias associadas a esse conceito. Crédito: Ask Media.
Deixaste a Google em 2021, depois de seis anos. Quais eram as tuas principais responsabilidades?
Cheguei a gerir uma equipa de 45 pessoas, entre designers, researchers e engenheiros de UX. A nossa função era criar uma “livraria” de ferramentas de visualização internas para a Google. Eram desafios muito interessantes, mas que, passado algum tempo, começaram a perder o apelo. A Google tem muitas políticas problemáticas.
Tais como?
Desde a cultura extremamente sensível em relação a tudo, a falta de inovação que existe – que é notória quando estás lá dentro –, a falta de ética, que, hoje em dia, é uma discussão comum. Ainda no outro dia foi despedido um investigador da Google porque disse que um sistema que ele estava a criar de IA se tinha tornado inteligente. E a declaração da Google foi: “Ele foi contratado como um engenheiro e não como um profissional de ética.” Para mim, essa declaração reflete a cultura dessas empresas. Ética não é para vocês. São empresas hoje tão nefastas para a sociedade como as indústrias do tabaco ou do petróleo. E eu não podia falar mal estando lá dentro. Comecei a escrever o meu próximo livro, que não é um ataque, mas que fala muito da falta de ética dentro dessas grandes empresas, cuja influência, atualmente, é assustadora. E nós, designers, temos uma grande responsabilidade em fazer frente a isso.
Qual é a responsabilidade dos designers?
Nós criamos dark patterns [interfaces criados para ludibriar e induzir os utilizadores a adotarem determinados comportamentos]. São ferramentas altamente viciantes, até para crianças, como o YouTube Kids. No Reino Unido, por exemplo, já criaram a primeira clínica para vício de gaming com idades que começam nos 8 anos. E, em certas personalidades, existe um enorme paralelo de evolução de gaming para gambling. Todas estas aplicações, como o TikTok, são criadas por engenheiros e designers.
Contribuem para uma forma de manipulação da mente humana…
Completamente. Eles estão a manipular a tua mente, o teu tempo, com a adição de comportamentos cognitivos que já são mais do que conhecidos – o gesto de fazer scroll no ecrã. São comportamentos que vieram das slot machines em Vegas e que são altamente condicionantes da mente humana. Estamos a criar tech zombies.
Isso é quase a revolução dos designers…
Mas tens de ter algum tipo de integridade. Há muitos anos, quando comecei na publicidade, muitos designers traçavam a linha em trabalhar para tabaqueiras ou petrolíferas. Mas a linha não existe para este tipo de empresas. Por um lado, são muito bem pagos. Por outro, também acho que, muitas vezes, essas empresas são de tal forma grandes que não tens visibilidade sobre o todo. A visão em túnel é extremamente redutora. Eu geri designers que estavam extremamente infelizes porque, com uma equipa tão grande, eles estão focados em “parafusos” digitais. Não é estimulante, e não conseguem abarcar o todo. São fábricas de designers automatizados. Por todas essas razões e outras, decidi sair da Google. E aqui estamos a falar apenas de design digital. Porque, quando entramos na área de design de produto, temos uma responsabilidade incrível, nomeadamente na componente ambiental: na escolha de materiais, como são produzidos, na sua duração, como vão ser utilizados. Em 2050, vamos ter mais plástico nos oceanos do que peixe. É certo que os designers não podem mudar o mundo. Mas tens de ter algum tipo de conduta ética e moral.
Agora, és diretor de Design de uma startup em Washington, a Interos. Seria difícil esta empresa sequer existir sem a visualização de dados.
A Interos é uma confluência de todos os meus interesses. Lida com um tema extremamente interessante, que é a visibilidade das cadeias de abastecimento. A vulnerabilidade destas cadeias é impressionante, e consegues perceber como tudo está interligado. Como é que um barco na China pode influenciar o que recebes aqui, na tua loja, em Portugal…
O tema não podia ser mais atual…
Nem mais complexo. Temos 430 milhões de empresas na nossa base de dados.
E por onde se começa a mapear essa teia?
A nossa ferramenta começa por cada empresa. Uma empresa vem ter connosco e diz “esta é a minha rede de fornecedores” – nós chamamos o Tier 1. E, depois, conseguimos estabelecer quem são os fornecedores dos teus fornecedores, e assim consecutivamente. A NASA é um dos nossos clientes: quando chegas ao Tier 3 da NASA, estamos a falar de cerca de 200 mil fornecedores. No Tier 4, estamos a falar de milhões. É uma complexidade absurda. E isto é importante porquê? Imaginar que és o CEO da Nike. E, amanhã, sai na EXAME que um dos fornecedores dos teus fornecedores no Vietname está a utilizar trabalho infantil. Como CEO, tenho essa responsabilidade, de saber e de agir. A nossa ferramenta permite precisamente dar essa visibilidade. Depois, há a parte da resiliência das cadeias, também ligada à componente ambiental. Se quiseres ser uma empresa consciente do ponto de vista da gestão ambiental, vais escolher os fornecedores que melhor se enquadram no teu esquema de valores.

Tabela de donativos superiores € 50 mil a partidos políticos alemães. Cada donativo é representado por uma linha que liga um doador no semicírculo inferior a um partido no semicírculo superior. A largura da linha depende do valor da doação e a cor representa o partido recetor. Crédito: Gregor Aisch.
É fácil perceber o interesse da disciplina para este tipo de empresas. Estamos a falar de um nicho ou a sua aplicação pode ser transversal à maioria dos setores de atividade?
Existe um enorme apetite. Todas estas novas áreas – data visualization, data analytics, data scientists, machine learning – estão par a par, não só na procura como na remuneração. A indústria tecnológica é uma aplicação óbvia, mas existem outras. A medicina, por exemplo, é uma área que beneficia imenso com a visualização de dados. A visualização de dados está em todo o lado, desde a engenharia e até em nós próprios, nos relógios, onde conseguimos ver os nossos próprios dados. Há algumas áreas mais tradicionais em que ainda não existe uma enorme presença. Mas é apenas uma questão de tempo.
Como visualizas a evolução da disciplina nos próximos 20 anos?
Acho que o próprio tratamento e análise de dados recairá cada vez mais nas máquinas, embora a parte criativa permaneça no domínio dos humanos durante mais algum tempo. Mas, principalmente, penso que a grande evolução estará na parte ética. A filosofia era um domínio morto e esquecido, sem aplicabilidade, e hoje muitas destas empresas contratam filósofos, que são responsáveis por decisões de ética. Mais concretamente, na área da visualização de dados, vamos ter de ser mais corajosos no sentido de criar novas metáforas visuais. Acho que serão experiências cada vez mais sensoriais, não só visuais mas também olfativas e sonoras. Haverá uma introdução da parte digital na parte física, e a visualização vai tirar partido dessas experiências.
Nota: Artigo publicado originalmente na edição da EXAME de agosto de 2022.