Um Conselho Superior para a Vida Longa é a proposta que tanto Ana Lehmann, antiga secretária de Estado da Indústria, como Maria João Valente Rosa, demógrafa e ex-diretora da Pordata, têm para o próximo governo que entrar em funções. Um órgão composto por especialistas que sejam convidados a pensar “o novo mapa da vida” dos portugueses, numa altura em que as regras sociais são tão datadas que a sua aplicação prática é mais onerosa do que vantajosa para o País.
“É essencial, fundamental, importantíssimo, oportuno. Não é só falar da questão de todos termos mais tempo de vida, mas dos impactos desse tempo de vida em várias áreas: social, ambiental… Um conselho sério, com propostas e objetivos muitíssimos claros”, defenderam as especialistas, numa conversa realizada em modelo híbrido, entre Lisboa e o Porto.
Sentada num dos sofás do Martinhal Chiado, parceiro da EXAME nesta rubrica, Maria João Valente Rosa recorda que “muitas das pessoas – cerca de 50% – que nascem hoje em Portugal podem passar a barreira dos 100 anos. As pessoas que estão nas idades centrais sabem que vão viver por muito mais tempo [do que se vivia antes]. O que significa que temos um panorama completamente diferente” daquele que tínhamos no passado. “E não estamos a falar de um passado distante, de 100 ou de 200 anos. Estamos a falar de há 40 anos”, salienta. “Mas muito do que tínhamos no passado persiste no presente”, começa por atirar a especialista, ao mesmo tempo que sublinha os perigos de se considerar a idade no balizar de conhecimentos ou da utilidade. Numa sociedade cada vez mais acelerada e em que o conhecimento ganha importância, a demógrafa avisa: “O rótulo idade não é certamente um bom rótulo para sabermos se a pessoa tem ou não valor. Temos de falar de pessoas e não de idades”, pede.
Os números não deixam margem para dúvidas: Portugal está a envelhecer a olhos vistos, com as pessoas com mais de 65 anos a representar 23,4% da população, segundo dados da Pordata. Isto significa que por cada 100 jovens há 182 pessoas de idade avançada. Para termos noção do que isto significa, talvez importe recordar que os jovens representam 12,9% do total da população nacional.
“Rótulos fáceis não ajudam a uma compreensão da realidade”, começa por lembrar Ana Lehmann. A antiga secretária de Estado da Indústria salienta o papel da inovação neste aumento de esperança média e de qualidade de vida, e apressa-se a afastar os estereótipos de que inovar é algo que pertence apenas aos jovens. “Quem inova e quem são os agentes da inovação? Há casos concretos muito interessantes. A Fraunhofer Society – o maior instituto de investigação na Europa e que tem a sua única subsidiária aqui na cidade do Porto – dedica-se a contribuir com inovações tecnológicas para melhorar a qualidade de vida das pessoas de idade mais avançada. E é muito interessante lembrar que há a ideia feita de que os fundadores de startups têm de ser jovens, quando todos os estudos dizem que as startups mais bem-sucedidas são as fundadas por pessoas com mais de 40 anos”, continua.
Aliás, recorda, vários estudos já comprovaram a vantagem da diversidade etária em contexto empresarial, não apenas em termos de eficiência e produtividade como também de retorno financeiro efetivo. E em jeito de exemplo, deixa o caso da BMW, que “chegou à conclusão de que os engenheiros mais experientes, que até estariam já a chegar ou a ultrapassar a idade da reforma, seriam os mais bem posicionados para desenvolver as novas linhas de inovação da empresa. E o que fizeram? Constatando isso, mas também as necessidades e os desafios decorrentes do envelhecimento físico, criaram todo um contexto de novos layouts, desde a forma como as tarefas estavam distribuídas no espaço até às luzes mais brilhantes, assentos para não estarem tantas horas de pé, salas de descanso… E o que aconteceu? Um aumento significativo da produtividade global dessas linhas, inclusive dos engenheiros mais jovens”.
Para Maria João, estamos perante um claro problema de resistência em querer mudar um paradigma que já não serve, ao considerarmos os mais velhos como pessoas sem utilidade. “Estamos a falhar pela resistência. Somos, de algum modo, um bocadinho preguiçosos e receosos. Temos medo de avançar com alguma coisa de diferente, mesmo que o modelo de agora funcione mal. Temos muito medo desse risco, o que não faz sentido nenhum na sociedade em que vivemos”, considera. “Por outro lado, pensamos muitas vezes que a questão do envelhecimento toca a pessoas mais velhas, o que não é verdade. Toca a todos. Parece que, enquanto sociedade, não queremos saber o que as pessoas andam a fazer. Todos nós envelhecemos desde que nascemos. Todos os dias somos mais velhos – o que é ser velho? – do que no dia anterior, mas há saltos brusquíssimos, do género: eu adormeço com uma atividade superintensa e no dia a seguir acordo e dizem-me que estou reformada, porque tenho 70 anos – se for da Administração Pública, e isto é uma regra criada em 1920. Anos 20 do século passado! Ou seja, a pessoa adormeceu ativa e acorda reformada.. E o que aconteceu? Uma noite de sono, se calhar mal dormida. [Risos.] Isto é bizarro.”
Numa altura em que a esperança média de vida à nascença, em Portugal, está nos 81,1 anos, importa mudar a forma de olhar a carreira e os estudos, e tornar tudo muito mais flexível, defendem as duas académicas. Só dessa forma se conseguirá que as pessoas cheguem às idades mais avançadas com mais qualidade e tranquilidade. Isso implica começar a mudar o modo de se olhar para as fases da vida logo desde a escola, fazendo planos de carreira que não sejam estáticos e assumindo que tanto a educação como o trabalho podem ser mutáveis ao longo do tempo – porque aos 60 anos podemos não fazer o mesmo que fazíamos aos 20, mas a experiência acumulada e as capacidades não desapareceram, pura e simplesmente.
O envelhecimento é contínuo, recordam. “E nós pactuamos bem com esta história. Apesar de não pactuarmos com o sexismo, com o racismo, pactuamos com o chamado ‘idadismo’, que consiste em excluir as pessoas só porque têm determinada idade. E é claro que, numa sociedade que está a envelhecer, estamos a ter um desperdício de capital humano incrível”, salienta Valente Rosa.
Ana Lehmann volta a trazer exemplos práticos para realçar a importância de se agir o quanto antes: “A Unilever, no Reino Unido, estimou que ganhava €6 em produtividade por cada 1€ gasto em bem-estar. E esse valor gasto no bem-estar era para acomodar melhor os funcionários com mais idade.”
Manter as várias gerações no mercado de trabalho tem benefícios óbvios não só para as empresas mas também para a sociedade, uma vez que a aposentadoria está muitas vezes ligada ao acelerar da perda de capacidades intelectuais e ao aumento de doenças mentais. E não se fala de exigir a quem tem 70 anos que cumpra as mesmas funções ou tenha os mesmos ritmos de quem tem 30 anos, mas de se acomodar as limitações e de se usufruir de competências fundamentais para, por exemplo, manter o equilíbrio com as gerações mais novas. “Vários estudos dizem que as gerações com mais experiência também são muito importantes para se equilibrar o exagero da volatilidade dos mais novos – dão um importante contributo ao nível da lealdade, da reputação, por exemplo”, recorda Ana Lehmann.
Para Maria João Valente Rosa, o grande truque está na substituição do conceito de idade pelo conceito de pessoa. A demógrafa, que defende também que a idade deverá ser pensada de forma prospetiva – “devíamos pensar na nossa idade em termos de quantos anos nos faltam viver e não em quantos já vivemos! – para que o futuro pese mais do que o passado, acredita que, quando “forem as pessoas e não as idades a fazer a diferença, já conseguiremos dar o salto para uma sociedade mais justa”
Artigo publicado inicialmente na edição n.º 454 , de fevereiro de 2022, da revista EXAME