Este texto foi originalmente publicado na edição 428 da revista EXAME, de dezembro de 2019
Documentos internos mostram que a indústria petrolífera já sabia há décadas do impacto humano nas alterações climáticas. Os cientistas têm tanta certeza de que queimar combustíveis fósseis faz o planeta aquecer como de que fumar provoca cancro. O que saberemos daqui a algumas décadas acerca da forma como as empresas digitais trataram os nossos dados?
A indústria do tabaco sabia, desde os anos 50, que fumar podia provocar cancro do pulmão, o setor de bens alimentares açucarados pagou a cientistas para negarem a relação entre açúcar e problemas cardiovasculares, o setor do álcool encorajava mulheres grávidas a continuarem a beber. Do dieselgate à atual crise da Boeing, passando pela forma como as empresas digitais usam os nossos dados, não faltam casos em que as empresas optam por mentir ao público, chegando a provocar, por vezes, mortes evitáveis. Nas últimas semanas, uma outra indústria foi colocada sob os holofotes: a indústria petrolífera sabia há décadas do impacto da sua atividade no aquecimento global, mas optou por montar uma megaoperação de desinformação e manipulação do público.
Um relatório publicado no final de outubro por três investigadores das universidades de Harvard, Mason e Bristol detalha os esforços prolongados das empresas de combustíveis fósseis para impedir que lhes seja aplicada mais regulação ou que os seus lucros sejam limitados.
“Documentos internos das empresas mostram que a indústria dos combustíveis fósseis sabia do impacto humano no aquecimento global há décadas. A sua resposta foi orquestrar e financiar contraditórios e desinformação para travar qualquer atuação e proteger o statu quo das suas atividades empresariais”, pode ler-se no relatório, que faz uma síntese dos estudos e notícias publicados nos últimos anos acerca da forma como o setor lidou com as evidências cada vez mais fortes da influência humana no aquecimento global. “À medida que o consenso científico em torno das mudanças climáticas emergiu e se tornou mais forte, a indústria e os seus aliados políticos atacaram o consenso e exageram as incertezas.”
Os investigadores comparam estes esforços com as campanhas da indústria tabaqueira, desde o recurso a falsos especialistas e a teorias da conspiração à apresentação de factos e dados parciais para lançar mais confusão.
Essa estratégia gerou efeitos negativos que continuam a fazer-se sentir hoje. Dificultou a capacidade do público de compreender o que é e como funciona o aquecimento global, diminuiu o interesse e o apoio a medidas que atenuem esse fenómeno, silenciou informação factualmente correta e polarizou o debate. Os cientistas são colocados numa posição complicada, ao terem de responder a premissas falsas, ao mesmo tempo que procuram manter o rigor das suas afirmações.
A ExxonMobil já sabia do impacto da atividade humana nas alterações climáticas ainda antes de se ter formado, nos anos 80 e 90, o consenso científico atual em torno da questão. Hoje, os estudos convergem para 97% dos cientistas estarem de acordo em relação à responsabilidade dos seres humanos no aquecimento do planeta. “Os cientistas climáticos têm tanta certeza de que queimar combustíveis fósseis provoca aquecimento global como os cientistas de saúde pública têm certeza de que fumar provoca cancro”, acrescentam os investigadores.
Num documento de 1978, cientistas da Exxon já avisavam que as mudanças no clima tinham provavelmente origem na emissão de dióxido de carbono para a atmosfera, fenómeno com ligação aos combustíveis fósseis. Dez anos depois, outros documentos internos mostravam que era um objetivo explícito da empresa “enfatizar a incerteza das conclusões científicas”. A vitória seria alcançada quando “o cidadão comum reconhecer as incertezas da ciência climática” e quando “a cobertura dos média […] reconhecer a validade dos pontos de vista que desafiam a atual convicção geral”.
Esta estratégia utiliza cinco táticas habituais: falsos especialistas, que desafiam as ideias prevalecentes, mas sem qualquer investigação ou formação na área, falácias lógicas, expectativas irrealistas (exigência de que o consenso científico seja de 100% em vez de 97%), utilização de informação parcial e utilização de teorias da conspiração.
“A desinformação acerca das alterações climáticas tinha um objetivo claro: bloquear a ação que a mitigasse. Nos Estados Unidos da América, ela foi muito bem-sucedida, com as políticas a acabarem frustradas ou adiadas durante décadas”, refere o relatório. “Entretanto, o aquecimento global intensificou-se, provocando eventos climáticos extremos, subida do nível do mar, efeitos nocivos na saúde humana e muito mais.”
Do tabaco ao açúcar
Porquê agora? O timing do relatório está ligado à ida da ExxonMobil a tribunal, acusada de prática de fraude perante os seus acionistas e o público. Foi mais um passo no caminho que começou a ser trilhado quando o Inside Climate News e o Los Angeles Times noticiaram que, enquanto os cientistas da empresa investigavam as mudanças climáticas, a empresa duvidava em público da sua existência. “Não há nada de errado em defender a sua empresa. Mas não lhe é permitido cometer fraude”, explicou o procurador-geral de Nova Iorque, Eric Schneiderman, em reação às notícias.
A Exxon teria transmitido garantias falsas de que estava a gerir os riscos económicos que seriam provocados por regulação mais apertada. Contudo, a atuação da empresa deixou-a ainda mais exposta a esses riscos, sem que nunca o tivesse sugerido aos acionistas. O processo contra a Exxon acusava-a de ter feito com que os seus ativos parecessem mais seguros do que na realidade eram, o que influenciava o preço das suas ações e, por arrasto, defraudava os investidores.
No entanto, esta indústria não está sozinha na mentira ao público, mesmo quando está em causa a saúde. A comparação que normalmente é mais vezes feita é com a indústria do tabaco, cujo impacto nocivo dos seus produtos é hoje amplamente conhecido. Mas há mais. Álcool e açúcar tiveram comportamentos semelhantes. Por vezes, essas práticas vêm também de empresas individuais, como aconteceu com a Volkswagen em 2015 e com a Boeing este ano.
Por último, temos ainda um setor em relação ao qual talvez só tenhamos mais informação daqui a alguns anos: as empresas digitais, que dependem dos dados dos utilizadores. Por exemplo, ainda durante este verão, o Wall Street Journal noticiou que havia emails que mostravam que Mark Zuckerberg tinha conhecimento de práticas duvidosas em relação à privacidade dos dados da rede social. A correspondência foi revelada como parte de uma investigação acerca da utilização imprópria de dados de 87 milhões de utilizadores do Facebook pela Cambridge Analytica. Quanto mais sabemos acerca da forma como estas empresas – e organismos governamentais como a NSA – agem, mais preocupados ficamos com a nossa privacidade.
Contudo, tal como nos casos anteriores, pode demorar anos até sabermos se nos mentiram. Ou até que ponto.