A história tem tanto de rocambolesca como de ímpeto justiceiro. Tão depressa envolve investidores sofisticados como outros reunidos em grupos informais alimentados redes sociais, numa guerra para ver quem desiste primeiro. Nos últimos dias, a refrega fez disparar para números astronómicos a avaliação de uma empresa, arrastando outras consigo no caminho das subidas (inclusive na Europa). Entretanto, impôs perdas multimilionárias a gigantes do investimento, mas ninguém sabe muito bem como acabará. Nem quem ficará a rir por último.
No centro da batalha está a GameStop, uma empresa de venda de jogos vídeo nos Estados Unidos da América (EUA). Originária do Texas, tem mais de cinco mil lojas espalhadas pelo território, sobretudo em centros comerciais em declínio, agravado em tempo de pandemia. Nos últimos meses, as ações desta empresa estavam na mira dos short-sellers, investidores que apostam na queda do valor de uma empresa na expetativa de retirarem mais-valias dos seus títulos. A prática consiste em tomar de empréstimo ações, vendê-las ao mercado e apostar depois na queda do seu valor. A ideia é poder comprá-las de volta mais baratas e devolvê-las ao dono original, encaixando pelo caminho a diferença entre o preço de venda e o de compra.
Só que, no caso da GameStop, o tiro está a sair pela culatra a estes investidores, como é o caso de vários hedge funds. Tudo porque day traders se têm reunido em massa em fóruns como o da plataforma Reddit (r/WallStreetBets, com mais de 4 milhões de subscritores) para fazer frente às quedas, apostar nas subidas e tentar lucrar com as ações. A estratégia levou o valor dos títulos a disparar mais de 1 700% em poucos dias (desde o início de 2021), obrigando por várias vezes a suspender as negociações devido às exageradas variações alcançadas.
Recentemente a Bloomberg datava de há dois anos as primeiras razões para a valorização dos títulos, com a entrada de um hedge fund no capital. Já em agosto, quando se soube que Ryan Cohen, co-fundador de uma empresa de comércio eletrónico, tinha uma posição na empresa e fora nomeado para a sua administração, somou-se mais uma razão. Mas só há quatro meses, percebendo a grande exposição da empresa a vendas a descoberto, é que investidores reunidos no r/WalStreetBets decidiram avançar em sentido contrário ao dos short-sellers.
Ao conduzirem os títulos para fortes valorizações, estes day traders conseguiram impor um chamado short squeeze. Com as ações a subir, os investidores sofisticados que apostavam na descida do preço foram forçados a ir ao mercado comprá-las para limitarem a dimensão das perdas na sua estratégia. Isso alimentou uma espécie de efeito bola de neve que impulsionou ainda mais o preço das ações e forçou outros hedge funds a abandonarem a mão e a recomprarem ações para fecharem posições e limitar os danos. A pressão compradora foi enorme. Só na sessão de ontem, quarta-feira, o preço mais do que duplicou, para 347,51 dólares. Por comparação, na última sessão de 2020, cada ação valia 18,84 dólares.
Uma das primeiras “vítimas” entre os que tinham posições a descoberto (apostavam na descida das ações) foi o hedge fund Melvin Capital Management, que se viu obrigado a fechar a posição na GameStop e suportar fortes perdas esta quarta-feira. Sem indicar o valor dos prejuízos, a MSNBC avança que, por causa das perdas impostas, a Citadel e a Point72 tiveram de injetar quase 3 mil milhões naquele hedge fund. O efeito de “contra-ataque” aos short-sellers chegou entretanto a outras ações, como a dona de cinemas AMC ou a Blackberry. Nas praças europeias, algumas das ações com maiores posições a descoberto também sofreram um efeito semelhante de subidas, mas a menor escala.
O polícia dos mercados norte-americano – SEC – já se disse preocupado com o que está a acontecer com estas ações e a Casa Branca diz estar a monitorizar a situação. Na última noite o número de subscritores da plataforma r/WallStreetBets aumentou em um milhão (de 3,4 para 4,4 milhões de utilizadores).
“Ao desencadear um short squeeze sofisticado (…) este novo tipo de investidores retalhistas mostrou o poder dos cidadãos,” sublinhou ao Politico Jennifer Schulp, diretora de estudos de regulação financeira do Cato Institute.
“Para alguns, os recentes acontecimentos refletem uma mudança fundamental de poder que dá aos pequenos investidores grande influência nos resultados do mercado. A principal razão é a ampla liquidez, plataformas de coordenação (como a Reddit) e interfaces de investimento muito acessíveis e de baixo custo (como a Robinhood). É um efeito de cauda a ‘abanar o cão’ com efeitos que perduram em termos de mudanças da estrutura do mercado,” escreveu o colunista da Bloomberg Mohamed A. El-Erian.
Já o fundador do Reddit, Alexis Ohanian, considerou em entrevista à CNBC que o episódio da GameStop marca um antes e depois para os mercados. “Não acredito que possamos regressar ao mundo como ele era porque penso que estas comunidades [são] um subproduto da internet. Seja numa plataforma ou noutra, este é o novo normal,” afirmou, aludindo a uma “revolução de cima para baixo” causada pela preponderância das redes sociais e que já levou a transformações noutros setores, como os média.
Já esta quinta-feira, 28 de janeiro, depois de nas últimas horas duas plataformas de negociação online, Robinhood e Interactive Brokers, terem proibido a negociação de ações da GameStop, da BlackBerry, AMC ou Nokia (que viveram fortes variações nos últimos dias devido à ação de investidores como os do grupo r/WallStreetBets) as ações da GameStop experimentavam fortes oscilações, com ganhos que chegaram a 35% a darem lugar a perdas de mais de 50%.
Tal como acontece com os títulos da GameStop, que tardam em estabilizar, ainda é cedo para perceber que consequências poderão resultar deste caso. Será que isto é o anúncio definitivo da chegada de um novo tipo de investidor – ultra-agressivo e muito social – que irá subverter as regras de Wall Street? Ou será o alarme que levará os reguladores a apertar a sua fiscalização sobre as novas plataformas de corretagem e os fóruns online? Talvez ainda demore algum tempo até percebermos.