A fábrica em Alfena, a poucos minutos do Porto, chegou a ter 100 trabalhadores e a ocupar todo um pavilhão. Hoje, tem um terço do espaço – o resto alugou-se a uma oficina e a um negócio de diversões – e os cinco funcionários trabalham ao som do lento matraquear das máquinas. Júlio Penela, bisneto do fundador, percorre com as mãos as prateleiras da sala de visitas, onde repousam centenas de brinquedos de lata (reaproveitada de embalagens de conserva), chapa, plástico ou madeira, com maior ou menor sofisticação. Miniaturas de carros, telefones e outros objetos como balanças, máquinas de costura e tábuas de engomar das marcas PePe e Jato, que inundavam aos milhares as bancas das feiras, nos anos 70 e 80 – e que contam uma parte da história da indústria do brinquedo em Portugal, antes de as normas comunitárias e o fabrico barato e massivo na Ásia terem levado alguns a pôr trancas à porta.
Com origem quase centenária, a fábrica faz tudo como antigamente e encontrou o seu lugar no nicho da saudade, embora os artigos que hoje vende, dados os materiais e as técnicas usadas, sejam classificados como artesanato e não aconselhados a crianças com menos de 10 anos. Vive de encomendas restritas de miniaturas de táxis, aviões, carros de bombeiros ou carrinhas “pão de forma”, para efemérides, museus ou lojas da especialidade – como A Vida Portuguesa, de Catarina Portas, que recentemente fechou uma loja em Lisboa, em plena crise no turismo. “Chegava a fazer 200 a 300 táxis para a Catarina Portas; agora faço 36. Se fizermos mil brinquedos por mês, é muito!”, descreve Júlio Penela. Só 10% das receitas vêm deste negócio, já que o que sustenta a fábrica é a produção de plásticos técnicos, como frascos para cola e álcool-gel ou asas para caixas de vinho.
A dez minutos de carro dali, num discreto armazém em Moreira (Maia), trabalham atualmente tantas pessoas quanto as que a PePe (Penela e Penela) e Jato empregaram nos seus tempos áureos. Das mãos de dezenas de funcionárias, encarregadas de pintar cada figura a pistola e pincel, sairão este ano três milhões de miniaturas de animais e personagens do fantástico para o mercado internacional. “As senhoras aliam a perfeição à rapidez”, descreve Patrícia Maia, enquanto mostra a área de decoração onde as figuras circulam entre as mãos das funcionárias.
Algumas trabalham na empresa desde 1976, ano em que o pai de Patrícia, Victor Maia, criou a Maia & Borges. Até 2008, quando chegaram as primeiras máquinas de injeção de plástico, as tarefas limitavam-se à decoração das figuras; agora, a unidade da Maia faz tudo, do fabrico dos moldes à embalagem das miniaturas. No ano passado, faturou 2,8 milhões de euros (uma subida de 40%, segundo dados da Informa D&B) e, já em 2020, investiu 300 mil euros numa nova unidade na Guarda, com 28 empregados. Para já, só vão decorar as miniaturas produzidas nas instalações a norte. Mais tarde, o novo polo terá também capacidade para fabricar estes produtos.
“Estamos em pleno crescimento. Um dos nossos clientes teve em agosto, durante a pandemia, o seu melhor mês de sempre”, diz Patrícia Maia à EXAME, ao lado da vitrine que encerra milhares de figuras produzidas nos últimos 45 anos na casa, inspiradas em séries de animação como Dartacão e os Três Moscãoteiros, Os Estrunfes, Era Uma Vez… o Espaço, Yakari ou Abelha Maia. Desde a morte do pai, há sete anos, é ela quem lidera a empresa, com o marido, António Pinto, o “faz-tudo” da casa: “Se for preciso ir buscar material, vou; se for preciso ir para a máquina de injeção, vou; se for preciso embalar, vou”, garante. Duplicada a produção em dois anos, a próxima meta da Maia & Borges é fechar 2021 com quatro milhões de figuras e alcançar os seis milhões em 2025, que serão escoadas para multinacionais na Alemanha, França e China.
Dos moldes aos brinquedos
Descemos um pouco no mapa até Oliveira de Azeméis. Em 1977, a Irmãos Melo, que fazia moldes de aço para a produção de brinquedos, decidiu entrar também neste ramo. Começou com carrinhos de fricção e aviões “vai-e-vem” para vender em feiras e lojas, e não parou. Estes artigos, atualmente vendidos sob a marca IRMEL, representam 20% das receitas da empresa. “Nos dias de hoje, faz todo o sentido não perder o mercado do brinquedo português, visto que somos os únicos com esta gama de produtos”, explica João Paulo Melo, administrador da empresa.
Tal como na PePe e na Maia & Borges, também aqui tudo é feito dentro de casa e com grande incorporação de materiais reciclados. Dos 37 funcionários, 16 estão nos brinquedos, área que ganhou recentemente duas máquinas de injeção robotizadas e mais eficientes, de onde saem artigos de praia, como baldes e pás, camiões e tratores de brincar ou tambores e martelos de plástico, usados na noite de São João, no Porto. Tal como aconteceu com a empresa de Júlio Penela, o cancelamento de festas e romarias este ano, por causa da pandemia (a juntar à lotação limitada das praias), atingiu em cheio a época alta da IRMEL, que vai de março a setembro. Resultado: uma queda esperada de 60% na faturação.
Exemplos de longevidade na produção de brinquedos em Portugal, como os da PePe e Jato, da Maia & Borges ou da Irmãos Melo, não abundam. As crescentes exigências de segurança, as necessidades de modernização tecnológica, as mudanças na procura, a dimensão do País e a concorrência de colossos na Ásia foram arrumando para o lado e colocando no baú do esquecimento dezenas de pequenos fabricantes durante as últimas décadas (ver caixa “Fábricas de memórias”). Mesmo que ainda haja multinacionais como a alemã Schleich ou a francesa Papo a escolher produzir cá parte dos seus produtos e a colocar-lhes a etiqueta made in Portugal – basta entrar numa papelaria e comprovar.
“É um mercado muito pequeno, não temos escala. O investimento em moldes pesa muito e os preços da mão de obra são muitíssimo mais elevados. Não é competitivo com a China”, explica Ricardo Feist, administrador da Concentra, empresa que distribui cerca de 50 marcas internacionais de jogos e brinquedos – e que também manda fazer a oriente os poucos artigos que desenvolve de raiz para o mercado nacional. Outra distribuidora, há quatro anos no mercado, sentiu igualmente na pele o que custa produzir no País, quando lançou o jogo de tabuleiro Go Master, hoje adaptado a 14 países. “Produzimos cá a primeira edição, mas depois optámos pela China, porque a qualidade do produto e o preço não têm comparação. As fábricas cá não estão preparadas”, justifica Carlos Ávila, diretor comercial da Creative Toys, que, entre outros, distribui o Monopoly. É naquele país que serão feitos também os outros jogos que a sua área de desenvolvimento, a Creative Live Games, está idealizar a partir de Portugal, na esperança de que se mantenha a procura de jogos sociais e de tabuleiro, que disparou no confinamento (ver caixa “O que dá corda ao setor”).
Davides num mundo de Golias
Segundo a GfK, no último ano, o setor dos jogos e brinquedos, dominado pela distribuição e pelo retalho de produtos de multinacionais, representava 212 milhões de euros em Portugal. Uma gota num oceano global de 76,3 mil milhões de euros (ou 90,7 mil milhões de dólares), que é em quanto a Statista avalia o mercado mundial. A maior fatia deste bolo saboroso calha invariavelmente nas mãos de gigantes mundiais como Bandai Namco, Lego, MGA Entertainment, Hasbro, Mattel ou Takara Tomy. Com marcas como L.O.L. Surprise!, Barbie, Marvel Universe, Hot Wheels ou Nerf (as mais vendidas de 2019), cruzam ofertas clássicas de jogos e brinquedos com conteúdos audiovisuais, videojogos e eventos, desenvolvidos através de marcas próprias ou sob licença. Junte-se a isto toda a atividade de representação, distribuição e venda ao consumidor final, área que também passou por transformações, numa guerra de preços com as grandes superfícies. “Há 20 anos, tínhamos uns mil clientes no comércio tradicional; hoje, não chega a 25”, constata Ricardo Feist. Hipermercados, grandes armazéns como o El Corte Inglés ou a relançada Toys “R” Us dominam agora 70% do mercado em Portugal.
Contudo, mesmo com a dimensão e as limitações do País, há quem continue a insistir em idealizar e vender em português. Como a OkapiBox, constituída em plena pandemia e que procura navegar nas várias tendências deste mercado: a promoção nas redes sociais, a venda online, a aposta no pré-escolar, a vertente educativa e a componente ecológica dos brinquedos. Andreia Davide começou a partilhar, em 2018, numa página no Instagram, as atividades didáticas que fazia com a filha em casa. A curiosidade dos seguidores sobre as técnicas e os materiais foi tanta que criou uma caixa com materiais e instruções para que os pais pudessem replicar as atividades.
A montagem das caixas, com materiais ecológicos e reutilizáveis, desenhados e produzidos na sua maioria na região de Aveiro, já ocupa uma pessoa a tempo inteiro e outras em part-time sempre que necessário. Entre kits e caixas-surpresa por subscrição, seguem por mês cerca de mil artigos para famílias, escolas e terapeutas, com pedidos até de Inglaterra, Suíça e Itália. A necessidade de manter entretidas as crianças “aumentou ainda mais o interesse durante o confinamento”, diz à EXAME. Muitas vezes, os produtos colocados no site, no qual se fazem 90% das vendas, esgotam em horas, o que leva Andreia Davide a eleger novas contratações como prioridade, tal como a diversificação, com a criação de produtos para crianças em idade escolar. “Se não tivesse página no Instagram, não teria este negócio. Foi uma rampa de lançamento”, conclui.
A mão por detrás do arbusto
Também a GamersGrass tem orgulho em produzir em Portugal, mas aponta para um público mais especializado e a viver no estrangeiro, para onde vai mais de 99% da produção. A paixão de Jacinto Mateus pelos jogos de estratégia com miniaturas, do género Dungeons & Dragons, virou um negócio que não é brinquedo. Ao fim de quatro anos, a empresa dá trabalho a 12 pessoas em Torres Vedras e fatura 450 mil euros a produzir pequenos arbustos sintéticos (chamados tufts), para decorar esses tabuleiros ou aplicar em maquetes ou dioramas. É das poucas no mundo a fazer estes materiais. “Temos uma filosofia de autossuficiência, devemos ser muito teimosos. Gostamos de fazer as coisas cá, de criar e resolver aqui os problemas”, diz o administrador à EXAME. Este ano, também a colher os benefícios de mais gente fechada em casa, espera duplicar as vendas e entrar em domínios mais científicos, com a produção para maquetes de espaços naturais como rios ou estuários, aproveitando o embalo das preocupações com o ambiente.
Tema, aliás, que também parece ter entrado em força nesta indústria. Em abril, os gigantes Mattel, Hasbro e Lego apresentaram compromissos com a sustentabilidade, que passam por usar embalagens produzidas com plástico reciclado, eliminar, em alguns casos, o plástico de todas as embalagens, produzir artigos com resinas de origem biológica ou cortar no consumo de energia.
“A sustentabilidade era um grande tema, que foi ultrapassado pela direita pela pandemia. Ainda assim, nota-se nas vendas a tendência de as pessoas quererem comprar embalagens sustentáveis”, considera Miguel Pina Martins, CEO da Science4you. A empresa, que tem dentro de fronteiras mais de 90% da produção dos seus brinquedos científicos, apostou nos últimos meses numa nova linha de artigos ligados à ecologia, que privilegia materiais biodegradáveis e plásticos de múltipla utilização – um lançamento na reta final de um ano muito complexo para a empresa, que enfrentou diretamente os efeitos do confinamento, com o fecho de pontos de venda e a queda da atividade pela alteração forçada das rotinas. “Fomos habituados a comprar brinquedos para oferecer nos aniversários, mas sem festas de aniversário criam-se muitas dificuldades”, argumenta. Só o “instinto de sobrevivência”, que levou a empresa a reorientar parte da atividade para produzir álcool-gel e óculos de proteção, deverá ter evitado que a pandemia passe este ano uma fatura pesada à Science4you.
No final de novembro, quando a EXAME fez os contactos para este artigo, depois do primeiro choque da Covid-19 a época de Natal era a grande incógnita para o setor, já que as vendas de outubro a dezembro costumam responder por mais de 60% do negócio de todo o ano. Entre os elementos a ponderar estavam não só o orçamento disponível das famílias, depois de a crise de saúde pública ter cilindrado alguns empregos, como os receios dos consumidores de se deslocarem a grandes espaços e as restrições de abertura de lojas durante os estados de emergência.
Mais tranquilas pareciam estar as resistentes Maia & Borges, IRMEL e PePe. A primeira entregou, em agosto, as encomendas que tinha para esta época e estava produzir a todo o vapor para 2021; para as outras duas, as verdadeiras épocas fortes são a primavera ou o verão: “Este artigo é mais vendido nas feiras. No Natal, é quando menos se vende”, justifica Júlio Penela. “Nesta altura, os miúdos querem é bonecos que choram, querem é bonecos com pilhas.” E isso, definitivamente, não se encontra na fábrica de Alfena, onde não há apps, drones que fazem piruetas ou bonecas com o último look. Para fazer andar um comboio ou um carro, é preciso rodar uma chave de metal ou friccionar os pneus no chão. A diversão acaba ao fim de uns segundos, quando se esgotar a corda. “Aqui, produz-se como há 100 anos. As máquinas só estão cá para auxiliar”, remata.
O que dá corda ao setor
Redes sociais, online, envelhecimento, preocupação ambiental e poder ao consumidor são tendências sérias num mundo de fantasia
Mais tempo em casa
O confinamento por causa da pandemia encerrou famílias em casa e obrigou a encontrar formas alternativas (e mais educativas) de passar o tempo, levando a compra de jogos e de puzzles, de brinquedos para atividades ao ar livre e de gaming a crescer dois dígitos entre março e maio, segundo a GfK. Resta saber se ficam marcas estruturais.
> Digital
Outra marca da pandemia foi o aumento da importância do online – as visitas à loja virtual da Lego duplicaram no primeiro semestre e as vendas digitais da Hasbro cresceram 50% de julho a setembro. Juli Lennett, vice-presidente do NPD Group, alerta que neste canal é mais difícil gerar compras adicionais, tal como acontece numa grande superfície, o que desafia a melhorar a experiência de compra digital para que o cliente continue a gastar.
> Inverno demográfico
O envelhecimento na Europa e no Japão abre espaço para a fidelização ao longo da vida dos clientes e para a diversificação. Na gigante Bandai Namco, o negócio de brinquedos e hobbies, que inclui os colecionáveis, foi o que mais resistiu aos efeitos da Covid-19 devido à base acumulada de fãs adultos. Há 40 anos que o grupo comercializa modelos à escala, videojogos e máquinas de jogo ancorados numa série anime de televisão, Mobile Suit Gundam.
> Didático, ecológico, híbrido
Há brinquedos que já permitem uma experiência híbrida, aliando o físico ao digital. “São cada vez mais sofisticados: bonecas que reconhecem a voz, robôs inteligentes, brinquedos cada vez mais realistas. A grande maioria dos players tem uma componente eletrónica bastante acentuada e quase todos têm uma app,” exemplifica Ricardo Feist, administrador da Concentra. Em paralelo, aumenta a procura por formas instrutivas e amigas do ambiente para ocupar o tempo das crianças.
> Efeito uau!
É o que está por detrás de um dos brinquedos mais vendidos: as L.O.L. Surprise!, figuras em caixas opacas que só se revelam abrindo a embalagem, fazendo do desembrulhar uma experiência. “As crianças hoje querem surpresas. Vivem num mundo em que tudo é online, sabem o que esperar onde quer que vão e, por isso, anseiam pelo mistério da experimentação”, disse Stephen Pasierb, presidente da Toy Industry Association, ao The New York Times.
> Redes e animação
Cada vez mais marcas se apoiam no lançamento de filmes de animação para vender produtos associados, como Frozen 2, Toy Story 4 ou o Filme LEGO 2 no ano passado, estratégia que sofreu em 2020 com o cancelamento de estreias no cinema. Por outro lado, muitos brinquedos nascem, desenvolvem-se e vendem-se hoje nas redes sociais, com recomendações de influenciadores e vídeos de unboxing que revelam jogos e brinquedos.
> Poder ao consumidor
O impacto da crise no poder de compra pode ser uma incógnita, mas a centralidade do consumidor é um dado adquirido. A Bandai Namco, por exemplo, está a adaptar-se a “uma nova era totalmente diferente, em que o cliente quer ter o que pretende, no momento que escolhe e na quantidade pretendida”. Mitsuaki Taguchi, presidente da empresa que vende marcas como Dragon Ball ou Tamagotchi, sublinha que “a crise resultou em incerteza, e nessas circunstâncias as pessoas precisam de sonhos e de diversão”.
(artigo publicado na edição 440 da EXAME, de dezembro de 2020. não reproduzido na íntegra)