A resposta musculada e ágil da União Europeia à crise provocada pela pandemia da Covid-19 poderá ajudar a reforçar o papel do projeto comunitário, mostrando que os Estados-membros são mesmo mais fortes estando juntos. A comissária europeia Elisa Ferreira abriu os trabalhos do evento anual ‘Portugal em EXAME’, para ajudar a entender “A Economia que queremos ter”.
“Nós já estávamos a trabalhar para uma economia verde, mais digital e também mais solidária em que ninguém fosse deixado para trás. Depois da pandemia, isto faz muito mais sentido, porque de facto percebemos a quantidade de reuniões físicas que fazíamos, por exemplo, e em que perturbávamos tanto o equilíbrio do planeta. O que percebemos também com esta pandemia é que, possivelmente, os pobres ficarão mais pobres, e os que estão melhor ficarão igual ou ainda melhores, e teremos por isso que nos preparar para uma economia mais solidária”, começou por dizer, desde o seu gabinete em Bruxelas.
“A Europa está a criar condições para isso aconteça – às vezes os cidadãos, com a perturbação que está criada não se apercebem – mas mudámos a legislação, excecionalmente, para os países poderem utilizar o dinheiro que ainda não tinham gastado ou que não estava completamente comprometido, e permitimos a flexibilidade de transferir dinheiro entre eles”, explicou a comissária com a pasta da Coesão e Reformas. “Desburocratizámos tudo e, por exemplo, muitas das máscaras que estão a ser distribuídas, grande parte dos ventiladores, do trabalho a mais que está a ser pago nos centros de saúde e hospitais, o apoio ao tempo de trabalho parcial, o apoio a pequenas empresas para que tenham um fundo de maneio permanente… tudo isso está a ser possível através dos fundos estruturais”, justificou.
No entanto, uma resposta de emergência não pode afastar um pensamento a médio e longo prazos, que permita relançar a economia. É tendo por base esse princípio que surge o Plano de Relançamento da União Europeia, que prevê um orçamento plurianual 2021/2027 no valor de 1,07 biliões de euros e um Fundo de Recuperação de 750 mil milhões de euros que serão garantidos através da emissão de dívida.
Uma dívida que ainda ninguém sabe exatamente como será paga – se através dos Orçamentos do Estado de cada país, se através da criação de novos impostos, uma vez que ainda tudo está a ser discutido e todos os cenários são possíveis. A única coisa certa é que alguém terá que pagar, e Elisa Ferreira aponta para taxas a grandes empresas ou indústrias que ainda estejam a ser poupadas, para tentar proteger os trabalhadores e as pequenas e médias empresas.
Esta emissão de dívida tem estado sob pressão, com a Polónia e a Hungria a vetarem a sua concretização – é preciso unanimidade dos 27 Estados-membros – e a atrasar o processo. Para Elisa Ferreira, este é um obstáculo que vai ser ultrapassado e, garante, sem por em causa aquilo que são os valores da União Europeia.
“A Europa até agora passou muitas crises e muitas fases. Não é um veto que vai resolver nada”, considera, descontraída. “É um bocadinho estranho até porque os dois países em causa beneficiam imenso da politica de coesão e curiosamente temos muita gente aqui e ali a explorar quaisquer descontentamentos. Mas temos mecanismos que nos recordam de que a Europa nasceu para contrariar essa falta de solidariedade”. Aliás, continua, “espero que isto seja passado através da ação dos cidadãos. A solidariedade a que estamos a assistir é o exemplo de que se os cidadãos quiserem, se elegerem as pessoas certas, é possível atravessar as crises com um espírito de democracia e de solidariedade”, atira. Porque desta vez, recorda, não é possível construir um discurso em que se encontram países mais culpados do que outros, importa lembrar aos cidadãos de todos os Estados-membros que está nas suas mãos elegerem quem querem a representar o seu país na União, de forma a levar a bom porto as políticas e projetos comunitários.
“Não temos um plano B! Há um plano A e ele tem de funcionar!”, afirma a responsável quando confrontada com a hipótese de aqueles dois países não cederem. “Até porque esses países têm muito a perder se não funcionar. Mas o respeito pelos cidadãos, pelas minorias, pelos direitos humanos tem que ser garantido. Às vezes o discurso político sobrepõe-se ao discurso lógico, mas enfim. Não se pode ter sol na eira e chuva no nabal, como se diz em Portugal. Não se pode ter apoio nos quadros europeus e depois não cumprir as regras europeias”, diz Elisa Ferreira, repetindo que os valores europeus não são negociáveis. “A Europa é um instrumento de democracia, que surge no pós-guerra e que é construído na base de respeito uns pelos outros. Há regras e essas regras têm de ser cumpridas. Portugal também aderiu na sequência de ter saído de um período em que não podia ter aderido, porque não cumpria as regras da democracia interna. Há um conjunto de regras que estão subjacentes a este projeto, que é político, e que tem uma componente económica, porque se as pessoas não tiverem acesso ao bem público não podem viver em liberdade. E, portanto, todos temos que trabalhar quotidianamente para que isto não seja um monte de objetivos teóricos descosidos da prática”, avisa.
“Como vamos resolver isto?”
Ainda sobre o relançamento das economias, quando passar o pico da emergência, Elisa Ferreira lembra que isso é algo que está na mão de cada Estado-membro, a quem foi pedido que endereçasse à Comissão Europeia os seus planos. “Mas a resposta sobre onde é que Portugal tem que investir só tem que estar respondida entre janeiro e a primavera. Estamos numa fase em que é importante atacar a emergência mas continuar a pensar”, reforça, dando alguns exemplos das áreas em que acredita ser importante atual. “Pode financiar-se, por exemplo, uma reforma da administração publica que combine a digitalização com a reforma dos edifícios, ou fazer uma reforma das florestas, ou a renovação dos edifícios. Enfim. Tudo está em aberto e daí que seja importante, ainda que o curto prazo seja relevante, pensar o medeio e longo prazos. Os países podem aproveitar esta oportunidade para a reestruturação para a frente, e é importante perceber de que forma vão aproveitar os fundos estruturais normais e este novo instrumento, porque [no atual contexto] não há uma flexibilidade total mas há uma flexibilidade que é pouco usual nos fundos da Comissão Europeia”, lembra.
Questionada sobre se a emergência sanitária e económica pode limitar o caminho da economia sustentável que estava a ser seguido, Elisa Ferreira pede que haja bom senso e que as empresas e responsáveis se lembrem de que “é importante não estragar. Se calhar pode fazer-se uma renovação das escolas que contemple já retirar o amianto, melhor isolamento e fazer infraestruturas digitais que permitam que as aulas sejam dadas por via digital como está a acontecer nesta conferência. E isso pode criar um emprego que não é artificial, que está ligado à máquina…mas também é importante em algumas zonas turísticas fazer a renovação dos hotéis, fazer aqueles trabalhos de saneamento básico ou outros que nunca se podem fazer quando há presença de turistas. Estou a dar dois exemplos, mas há imensas coisas que se podem fazer. Porque preparar o futuro não pode ser a fazer igual ao que se fazia no passado”, pede.
E reforça a importância de se assumir que há custos de transição na mudança de paradigma da economia, para evitar que, como tem acontecido tantas vezes, “se gaste duas vezes dinheiro: uma para fazer mal e outra para corrigir o que foi feito na primeira versão. Olhemos para o urbanismo, onde em alguns lugares a regra foi crescer, crescer e agora temos que resolver. Vamos ver se fazemos bem para que daqui a 10 ou 15 anos não tenhamos que voltar a gastar dinheiro para voltar a fazer”, alerta a comissária.
“A Europa, na minha opinião e já o disse no passado, não se inseriu no mundo globalizado com uma estratégia”, o que pode estar na base de algumas das dificuldades elencadas anteriormente. “E essa é outra das consequências da pandemia. As instituições europeias começam a assumir um discurso de conseguir segurar peças estratégicas do processo produtivo de forma a não ficarem tão vulneráveis à distribuição de valor das outras potências. A Europa tem que assumir que é preciso gerir a transição interna e externa, mas um projeto. sem termos noção de onde nos situamos, é um projeto perdido a prazo”, avisa ainda.
O território é onde as políticas acontecem
Na mesma ocasião, Elisa Ferreira pediu que se aproveitasse a oportunidade para diminuir as assimetrias que em Portugal ainda são muito vincadas, entre o mundo rural e as grandes cidades. “Toda a gente percebe que um sistema que funciona em rede é mais eficiente que um hipercentralizado. O hiper-centralismo ocorre nos países com mais problemas de desenvolvimento e temos que nos lembrar de que todas as políticas têm impactos territoriais: sejam políticas de importação ou exportação, impostos… é fundamental ter noção de que o território é onde as coisas acontecem. E se não percebermos isso corremos o risco de estar a fazer com uma mão e a destruir com a outra”.
“Um desenvolvimento mais equilibrado é mais inteligente para o bem de toda a comunidade. Outra das lições desta pandemia é que há possibilidade e interesse e as pessoas vivem melhor se pensarmos mais nas cidades médias e não apenas as grandes. Lugares onde as pessoas podem trabalhar através das redes digitais, com muito melhor qualidade de vida, sem os custos das grandes cidades onde se perde imenso tempo em transportes, há imensos congestionamento de trânsito, sobrelotação de algum tipo de habitação como a habitação social… Esta pandemia pode ajudar a enquadrar o que é uma opção daqui para a frente para vivermos de uma forma mais inteligente.”
No mesmo sentido, a comissária assume que esta crise está a ter uma resposta consideravelmente diferente da última com que a União Europeia foi confrontada em 2009. E apesar de admitir que só daqui a alguns anos vai ser possível enumerar todas as dimensões que determinaram essas diferenças, há algumas notas que deixa em jeito de justificação.
“Há o facto de ser uma nova Comissão que está aqui, com condições diferentes, pela primeira vez com uma mulher à frente, com metade dos comissários a serem mulheres, com uma presença bastante ativa social-democrata, …mas também é verdade que o discurso dos culpados e das sanções neste momento é mais difícil, porque na verdade ninguém foi culpado e há uma certa incapacidade de construir o discurso. Não quer dizer que esteja totalmente resolvido, porque mesmo no meio de solidariedade encontramos discursos populistas e dogmáticos. Que nem sempre são capazes de propor uma alternativa melhor – ou quase nunca, na verdade. Nada, nunca, está seguro. Mas somos nós que vamos construindo, que vamos trabalhando, somo nós que votamos, que escolhemos o que queremos. Há uma escolha e uma responsabilidade de todos nós!”, repete, pedindo mais envolvimento e atenção aos cidadãos.
“É bom sempre chutar para alguém mas na Europa, e nos EUA, digamos que foram as pessoas que elegeram. E, portanto, têm que pensar no significado do voto e da sua opção!”, sublinha.
Assim, Elisa Ferreira acredita que a partir de agora o papel do Estado vai também ser pensado de forma diferente, uma consequência daquilo que foi vivenciado em todos os países na resposta a uma emergência sanitária que não teve igual neste século. “O pensamento e as opções políticas funcionam um bocadinho por ondas, que corrigem as situações anteriores. Quando eu estava no Parlamento dizia-se para esquecermos o Estado. Depois levámos coisas a extremos tão grandes que partes da população ficaram totalmente excluídas, países sentiram-se excluídos do projeto europeu. Mas neste momento ficou patente que os SNS foram a âncora de tudo isto” e portanto, “espero que sim, que haja uma postura equilibrada – tudo isto é uma questão de bom senso e equilíbrio entre o que é privado e publico. O público não pode fazer tudo, mas tem que estar lá, nomeadamente quando o funcionamento dos privados não responde ao que é necessário. E vimos a importância de um Estado, não que seja avassalador, mas que seja suficientemente robusto para controlar o apetite dos privados. Essa capacidade de regulação é uma faculdade primordial do Estado”, considera.