É uma história de prejuízos que parece quase interminável. Desde agosto de 2014, altura em que o Banco Espírito Santo (BES) foi alvo de uma medida de resolução dando origem ao Novo Banco, o Estado, através do Fundo de Resolução, já injetou quase 7.900 milhões de euros na instituição financeira. Logo no arranque do banco novo, que deveria ter ficado apenas com os ativos bons do antigo BES, foram destinados 4.900 milhões de euros para capitalizar a nova instituição financeira.
Mas, após a venda em outubro de 2017 à Lone Star, foram injetados mais 2.976 milhões de euros ao abrigo do chamado “acordo de capital contingente”. O fundo americano, que tem um histórico de utilizar estratégias agressivas para recuperar valor com ativos problemáticos, exigiu essa espécie de garantia para ficar com 75% do Novo Banco em troca de injeções de mil milhões no capital do banco. A instituição liderada por António Ramalho ficou com um plafond de 3.890 milhões de euros para pedir ao Fundo de Resolução para cobrir perdas originadas com ativos ainda do antigo BES.
A resolução do BES levou o Fundo de Resolução a entrar com 4,9 mil milhões de euros. Desde a venda à Lone Star, Novo Banco recebeu mais 2.976 milhões.
Esse valor poderia ser solicitado até 2025. Mas em apenas três anos, o Novo Banco utilizou 77% do montante máximo previsto. E tudo aponta para que venha a pedir mais dinheiro no próximo ano. Tendo em conta a evolução da atividade no primeiro semestre deste ano, o banco conta vir a receber mais 176 milhões no próximo ano, segundo o último relatório e contas. O valor final dependerá do desempenho dos ativos problemáticos abrangidos por aquele acordo de capital contingente e dos rácios de capital do banco no segundo semestre.
Do total de quase 7.900 milhões, mais de 6.000 milhões foram financiados diretamente pelos contribuintes através de empréstimos do Tesouro, já que o Fundo de Resolução, que funciona com contribuições dos bancos, não tem recursos para acorrer a tanta despesa. Dado o valor expressivo das perdas e a velocidade com que o Novo Banco estava a solicitar as injeções de capital previstas no acordo de venda, o Governo, através do antigo ministro das Finanças, Mário Centeno, pediu no ano passado uma auditoria para escrutinar o processo de concessão dos créditos incluídos no mecanismo de capital contingente.
A análise às operações do BES/Novo Banco ficou a cargo da Deloitte. A consultora ressalva no documento que já realizou no passado projetos para o antigo BES e para o Novo Banco, mas garante que não identificou situações que a impedissem de fazer esta auditoria independente. O documento foi entregue aos deputados e o Parlamento divulgou-o, embora com muita informação truncada para garantir o sigilo bancário. Mas a análise ao que se passou no BES e no Novo Banco entre 2000 e dezembro de 2018 permite perceber como foram gerados os maiores buracos na instituição financeira.
As conclusões da auditoria, assim como os processos de vendas de ativos, levaram os deputados a chamar ao Parlamento o governador do Banco de Portugal, Mário Centeno, e o ministro das Finanças, João Leão, para prestarem esclarecimentos. O Novo Banco tem perdido centenas de milhões em alienações de carteiras de crédito e de imobiliário, que servem para atingir as metas colocadas pela Comissão Europeia de desinvestimento em ativos não produtivos, participações não-estratégicas e na redução do malparado.
Menos de 100 devedores na origem de grandes perdas cobertas pelo Fundo de Resolução
Entre agosto de 2014 e 2018 o Novo Banco teve perdas acumuladas de 3.834 milhões de euros com operações de crédito, segundo a auditoria da Deloitte. Mas uma parte significativa desses prejuízos teve origem em poucos clientes. Mais concretamente, apenas 121 devedores (pertencentes a 56 grupos económicos) foram responsáveis por perdas de 2,32 mil milhões.
Operações de crédito resultaram em perdas acumuladas de 3.834 milhões de euros entre 2014 e final de 2018.
Muitos destes créditos entraram no perímetro das perdas que o Fundo de Resolução foi chamado a tapar ao abrigo do acordo de capital contingente (CCA). “A amostra selecionada inclui 98 devedores que estão abrangidos pelo CCA. No período entre 1 de julho de 2016 e 31 de dezembro de 2018 as Perdas CCA associadas a esses devedores ascenderam a 1.238 milhões de euros, representando cerca de 54% do total de perdas imputadas ao CCA nesse período”.
A auditoria detalha que “as perdas registadas referem-se maioritariamente ao segmento de empresas, verificando-se uma concentração elevada num conjunto de grupos económicos. A título ilustrativo, verifica-se que cerca de 70% das perdas totais no período para a amostra analisada foram registadas para 14 grupos económicos”.
As perdas foram assumidas principalmente nos últimos anos, já que até à resolução foram detetados “processos sucessivos de reestruturação” que permitiram que esses contratos evitassem o rótulo de incumprimento. Isso pode indiciar que, aquando da escolha dos ativos que iriam para o banco bom e os que ficariam no banco mau, processo que decorreu entre agosto de 2014 e final de 2015, houve muitos empréstimos problemáticos a ir para o Novo Banco. “Uma parte relevante dos devedores para os quais foram registados reforços de imparidade em 2017 e 2018 apresentava já incumprimento ou outros triggers de risco em períodos anteriores”, observa a Deloitte.
Vendas com perdas de milhões e sem análise de conflitos de interesse e justificações para os descontos
O Novo Banco também perdeu dinheiro com a venda de carteiras de créditos problemáticos. Para se livrarem do malparado nos seus balanços é comum os bancos alienarem esses empréstimos com descontos elevados. São comprados por entidades especializadas que tentam depois recuperar parte dos valores em dívida. Esse negócio floresceu em Portugal nos últimos anos e ajudou os bancos a limparem os seus balanços.
No caso do Novo Banco, as grandes vendas de carteiras de crédito foram denominadas de projeto Nata. A primeira dessas alienações ocorreu em 2018 e “englobou a venda de cerca de 100.000 exposições de crédito, registadas no Grupo Novo Banco, tendo o respetivo contrato de compra e venda com o consórcio KKR/LX Partners sido assinado a 22 de dezembro de 2018”, refere a auditoria.
Vendas de carteiras de crédito e de imobiliário têm resultado em perdas expressivas para o Novo Banco, indica a Deloitte.
A Deloitte indica que esta operação originou o registo de uma perda de 110,1 milhões de euros nas contas de 2018, dos quais 86 milhões de euros em ativos ao abrigo do CCA. Em 2019, o Novo Banco concluiu a venda do projeto Nata II, que teve um impacto negativo de 79,7 milhões de euros nas contas do banco. No entanto, a auditoria da Deloitte já não analisou operações feitas no ano passado.
Além das vendas de crédito, o Novo Banco também alienou carteiras de ativos imobiliários. A maior operação foi batizada de Viriato e incidiu sobre 8.963 imóveis (3.498 ativos residenciais, 2.559 terrenos e 2.906 ativos comerciais). A maior parte deles tinham sido entregues ao banco como dação em pagamento. “Esta operação originou o registo de uma perda de 159 milhões de euros nas contas de 2018 (dos quais 18 milhões de euros em ativos ao abrigo do CCA)”, indica a Deloitte. O comprador foi a Anchorage Capital e houve “um processo organizado de venda, com apresentação de ofertas não vinculativas e vinculativas por investidores”.
A auditora sublinha que na maior parte destas vendas foi feita uma avaliação das contrapartes por parte do Novo Banco no contexto de branqueamento de capitais. Mas sublinha que “não foram efetuadas análises de partes relacionadas ou análises de conflitos de interesses”. Acrescenta que se “verificou a inexistência de normativos internos para todo o período que regulassem a realização sistemática de uma análise das entidades compradoras que participaram em processos de venda”. Em várias operações de alienação não foi obtida informação sobre os beneficiários efetivos da compra e a sua identidade.
No entanto, após a divulgação da auditoria, o Novo Banco garantiu, em comunicado, que “sempre analisou e portanto conhece o último beneficiário das operações de venda de ativos”. Num comunicado, a entidade liderada por António Ramalho considera que “não é portanto apontada pelos auditores qualquer falta de informação adicional para fazer o escrutínio dos últimos beneficiários efetivos”.
Nas propostas de aprovação das vendas são normalmente descritas as características e condicionalismos dos imóveis, mas não é incluída uma justificação ou explicação para a diferença entre o valor de venda e o valor de avaliação anterior.
Além da ausência de controlos desse tipo, a Deloitte verificou que nas vendas de imóveis não foi “incluída uma justificação ou explicação para a diferença entre o valor de venda e o valor de avaliação anterior” nas propostas de aprovação das vendas. A consultora ressalva, no entanto, que “esta justificação não era requerida de acordo com o normativo interno aplicável”.
O Novo Banco teve também de assumir perdas com participadas que herdou do antigo BES. Entre agosto de 2014 e final de 2018 teve uma perda global de 380 milhões de euros com a segurador GNB Vida, de 100 milhões do BES Vénétie (que tinha sede em Paris e funcionava junto da comunidade de emigrantes) e de 24 milhões de euros no BESI, a divisão de banca de investimento.
Essas empresas acabariam por ser vendidas, mas a Deloitte realça que nos casos do BES Vénétie e do BESI não foi feita uma análise sobre eventuais conflitos de interesse com as entidades compradoras. No entanto, a auditora relembra que “as operações em questão foram sujeitas a aprovação pelas respetivas entidades supervisoras, nos termos da legislação aplicável para esse efeito, com base em informação disponibilizada pelo potencial comprador”.
Prejuízos com ações da antiga PT, da Oi e do BCP
O antigo BES deu créditos para a compra de ações, nomeadamente do BCP. Apesar de a versão pública do documento não indicar quais os destinatários nem a data da concessão desses créditos, tudo aponta para uma história semelhante à da Caixa Geral de Depósitos que teve operações ruinosas para financiar a compra de ações do BCP em 2007 no auge de uma guerra pelo controlo do banco.
As perdas com financiamentos para a compra de ações do BCP, que tinham os títulos do banco como garantia, originaram perdas acumuladas de 268,5 milhões de euros entre 2014 e final de 2018. O BES esteve também envolvido em batalhas pela influência em cotadas como a antiga Portugal Telecom e financiou compras de títulos da operadora. Resultado: uma perda de 128,5 milhões de euros que teve de ser assumida pelo Novo Banco.
Crédito para compra de ações do BCP, concedido pelo antigo BES, gerou perdas de 268,5 milhões para o Novo Banco.
“Os financiamentos acima referidos eram concedidos tendo como colateral fundamentalmente as próprias ações adquiridas, verificando-se em alguns casos a inexistência de covenants contratuais de cobertura mínima. Em resultado do declínio do GES e do Grupo PT, bem como da desvalorização significativa verificada na cotação em bolsa das ações do BCP, parte dos colaterais associados a estes financiamentos concedidos pelo BES viram o seu valor reduzir-se significativamente, originando o registo de perdas significativas”.
A versão pública da auditoria aponta que houve um devedor que comprou ações com crédito do antigo BES que originou perdas de 83 milhões de euros ao Novo Banco. Mas não é indicado o nome da entidade em causa.
Além das perdas relacionadas com créditos para a compra de ações, o Novo Banco teve também prejuízos com ações compradas diretamente pelo antigo BES. Na antiga Portugal Telecom (atual Pharol SGPS) as perdas foram de 139,2 milhões. E na brasileira Oi houve um estrago de 62,1 milhões de euros, devido à desvalorização dos títulos.
VMOC também pesaram nas contas do Novo Banco
O Novo Banco assumiu ainda perdas com valores mobiliários obrigatoriamente convertíveis (VMOC), instrumentos financeiros utilizados em processos de renegociação de créditos como aconteceu com o Sporting, por exemplo. Em 2019, a SAD de Alvalade fechou um acordo com BCP e Novo Banco para reestruturar as condições dos VMOC referentes a operações de financiamento com essas entidades financeiras que resultou num “perdão” de 94,5 milhões de euros.
Na amostra das operações analisadas pela Deloitte estão 4 VMOC, emitidos por dois grupos económicos que não são identificados na versão pública da auditoria. A Deloitte refere que “estes ativos foram subscritos pelo BES (187,4 milhões de euros em 2011) e pelo Novo Banco (24 milhões de euros em 2014) no âmbito de operações de reestruturação de créditos concedidos a clientes, tendo o produto dessa subscrição sido utilizado essencialmente para o reembolso de dívida que esses clientes tinham no BES/NB”.
Estas reestruturações implicaram para o BES e Novo Banco a substituição de dívida por instrumentos convertíveis em capital, ficando numa posição desfavorável face a outros credores.
A auditora adverte que “estas reestruturações implicaram para o BES e Novo Banco a substituição de dívida por instrumentos convertíveis em capital, ficando numa posição desfavorável face a outros credores”. E realça que “a documentação de suporte à aprovação das operações não inclui uma explicação detalhada dos fatores que levaram o BES (e o Novo Banco no caso da subscrição de 24 milhões de euros em 2014) a eleger a opção de utilizar VMOC’s nas reestruturações”.
As perdas acumuladas nestes instrumentos financeiros totalizaram 186 milhões de euros.
Artigo atualizado com esclarecimento do Novo Banco sobre os últimos beneficiários das operações