Os especialistas e governantes repetem-no constantemente, mas como acontece com alguma regularidade, nós teimamos em ignorar. No entanto, há algo que se começa a tornar cada vez mais óbvio: de facto, quando o período do Grande Confinamento passar, nada vai voltar ao normal. Ou pelo menos, àquilo que até agora adjetivávamos como tal. Uma das áreas mais afetadas vai ser a do trabalho, não apenas porque já alterámos profundamente a forma como fazemos algumas das funções – décadas a ter discussões infindáveis sobre as limitações e os problemas do trabalho remoto, que acabariam por ser resolvidos em duas semanas à conta da pandemia –, mas também porque é realmente possível que algumas delas desapareçam de vez.
“À semelhança daquilo que já era mais ou menos unânime antes da pandemia, é natural que funções e tarefas que podem ser automatizadas tendam a desaparecer, o que será positivo para o negócio, já que ganhará eficiência, e para as pessoas, que poderão dedicar o seu tempo de trabalho a tarefas mais complexas, criativas e humanas”, acredita Paula Carneiro, head of Global People Experience Unit da EDP. “Neste sentido, é natural que surjam novas funções de complexidade e conteúdo completamente novo ligadas precisamente à automação, Inteligência Artificial, design thinking, programação, entre outros”, considera.
Alexandra Líbano Monteiro, People Operations manager da OutSystems, salienta à EXAME que, no caso da empresa fundada por Paulo Rosado, o impacto está a ser bastante menor do que em outras. Uma das razões para isso acontecer é o facto de a organização já trabalhar descentralizada há muito tempo. “Metade da equipa executiva da OutSystems já trabalhava à distância: temos dois executivos em Charlotte, outro em Boston, outro em Atlanta e outros em Lisboa.”
No mesmo sentido, falar em funções que vão desaparecer, como, por exemplo, as relacionadas com trabalhos mais administrativos é algo que a responsável descarta. “Para nós, não faz sentido. Temos muitíssimas poucas assistentes. Eu tenho uma pessoa que em parte é minha assistante, e que dá apoio administrativo ao programa de management e afins. Neste momento, por exemplo, está no contexto da outra equipa a continuar a fazer coisas. É um conceito de assistência partilhada, que já tínhamos no escritório e que, agora com o teletrabalho, creio que até ajudou bastante a melhorar a vida destas pessoas que já são muito eficientes, e com quem, por vezes, temos tendência a ‘esticar a corda’ em termos de trabalho.”
Já Tiago Forjaz, fundador da MighT – Talent Strategists – uma consultora estratégica de gestão de talento, olha para este momento como uma oportunidade que, se possível, deve ser aproveitada “para aprender, pensar no talento de cada um e decidir em que skills apostar para desenvolver uma carreira que seja sustentável pela paixão de cada um, independentemente das tecnologias e das condicionantes que surgirão para desempenhá-la”.
E pede que, quando se olha para o mercado de trabalho, não se generalize “o que vai acontecer às pessoas. O que sabemos é que as pessoas que forem mais abertas à aprendizagem e que decidirem aprender irão evoluir, as outras irão arrepender-se, seguramente”, sublinha o especialista.
Rumo ao desconhecido
- Autonomia: Mais autonomia e responsabilidade vão passar a ser regra num ambiente de trabalho descentralizado. O trabalho por objetivos, aprender a priorizar assuntos e conseguir manter uma comunicação clara e fluida com os pares e chefes vão ser cada vez mais valorizados.
- Agilidade: É certo que para muitas pessoas as funções que desempenham nas suas empresas não foram alteradas. Ainda assim, muitos processos e ferramentas sofreram uma abrupta modificação. Conseguir adaptar-se em tempo recorde, e perceber que muitas das alterações vieram para ficar, implicará uma agilidade mental e uma capacidade de encaixe que passarão a valer ouro na hora de escolher talentos.
- Liderança: Os líderes vão estar particularmente pressionados nos tempos que aí veem: depois de terem conseguido levar as suas equipas a adaptarem-se rapidamente àquele que é o “novo normal”, vão ter de desenvolver técnicas para conseguirem manter os seus trabalhadores motivados, a cultura da empresa viva e a produtividade em níveis elevados, ainda que à distância.
- Flexibilidade: Há alguns anos que a flexibilidade de horários tem juntado comunidade científica e gestores na discussão: ora, se está provado que cada pessoa tem o seu ritmo circadiano e que nem todos precisam do mesmo tempo para fazerem a mesma tarefa, os horários rígidos colocam uma pressão acrescida sobre os que trabalham contra o seu ciclo natural ou tem de marcar presença obrigatória. O teletrabalho, gerido por objetivos e metas, pode revelar-se ainda mais produtivo para estes trabalhadores.
A bola às lideranças
Outra das questões que têm sido levantadas recentemente pelos especialistas é a forma como pode ser feita a gestão dos recém-chegados a uma empresa: o facto de não haver equipas nos escritórios ou de estas estarem consideravelmente reduzidas pode facilmente condicionar a boa integração, sobretudo, de trabalhadores mais juniores.
“Nenhum recém-chegado é muito bem-sucedido, se for apenas reativo”, começa por sublinhar Alexandra Líbano Monteiro. Mas a verdade é que na OutSystems, a equipa responsável pela gestão dos recursos humanos decidiu criar imediatamente uma agenda com várias iniciativas concretas que pretendem, precisamente, garantir que quem chegou recentemente à organização não se sinta desamparado. E isso passa por sessões de trabalho para todos, “treino para manager de equipas remotas (sessões de pais, sessões de wellbeing…)”. Porque nesta questão, sublinha, “as lideranças são críticas”.
Nenhum recém-chegado é muito bem-sucedido, se for apenas reativo”
Alexandra líbano monteiro
É preciso estar mais atento às necessidades individuais de cada um, com a consciência de que a distância pode retrair trabalhadores menos expansivos. Em entrevista recente à VISÃO, o fundador e chairman do grupo Egor salientava que vamos assistir a uma maior necessidade de “um estilo de liderança coaching, em que o responsável tenha uma capacidade de escuta muito grande e que sobretudo faça perguntas aos membros da sua equipa: como cada acontecimento o faz sentir, o que quer dizer com as suas afirmações”, referia. “Esta é também uma forma de prevenir situações em que a pessoa esteja a reagir com alguma dificuldade a circunstâncias como trabalhar mais em casa, sobretudo quando essa carga de trabalho se conjuga com a solidão e a incerteza”, realçava.
Já a responsável da OutSystems atira, em jeito de provocação: “A minha pergunta é: quais são as lideranças que vão ser mais impactantes? Porque as pessoas são altamente contextuais, e este mundo que estamos a experimentar ligeiramente [durante o Grande Confinamento] será, seguramente, um mundo que daqui a 30 anos vai precisar de lideranças orientadas para um propósito, para uma missão muito clara, que saiba tornar a definição de sucesso clara. Estou a falar de lideranças altruístas na forma de deixar as soluções acontecerem. As lideranças vão ser o grande desafio e a pressão é sobre elas”, acredita.
As lideranças vão ser o grande desafio e a pressão é sobre elas
Alexandra líbano monteiro
Também para Tiago Forjaz, o acompanhamento dos mais novos e a liderança pelo exemplo são questões fundamentais. “Tenho a convicção de que o conhecimento tácito é muito importante, a História inspira-nos tanto para a frente como para trás. Nestes dias, comecei a ver um documentário do Kobe Bryant e adorei ver que uma parte importante da motivação dele vinha do legado que os jogadores dos Lakers lhe ofereciam e a responsabilidade que ele sentia nisso”, refere à EXAME a título de exemplo. “Mas penso que mais do que o apoio sobre o como fazer (vulgarmente chamado de coaching), vai ser importante a mentoria, como aproveitar as relações de desenvolvimento pessoal que realmente nos fazem crescer como seres humanos.”
Neste sentido, o especialista acredita também que os líderes vão ser motivados a diferenciarem-se e a tentarem liderar e conquistar as suas equipas com recurso a novas ferramentas, se não quiserem perder o comboio que ainda agora acabou de partir. “Acredito que surgirão aplicações que ajudem as pessoas a identificar mentores com uma maior probabilidade de terem match com os nossos interesses e desafios de vida. De resto, acho que já todos percebemos que há muito que estávamos na era dos tutoriais no YouTube. ‘Quem pesquisa no Google é cota.’ Acredito que alguns cotas modernos irão produzir conteúdo no YouTube, sobre o que é importante aprender e teremos de fazer as pazes com o que se perde.”
Paula Carneiro realça que os responsáveis “terão de conseguir levar a comunicação com a sua equipa para um novo nível, com o objetivo de aproximar e envolver as pessoas num contexto em que o risco de “desconexão” na equipa é naturalmente mais elevado”. No mesmo sentido, os líderes precisam de ter um “olhar atento nesta nova fase, principalmente ao nível do desenvolvimento de competências de gestão de equipas remotas, do alinhamento com a cultura e das práticas de gestão de pessoas que a companhia pretende (gestão por objetivos, meritocracia, flexibilidade e conciliação, entre outras)”.
No caso da EDP, onde milhares de pessoas foram para casa realizar as suas tarefas, e não apenas em Portugal, a experiência parece ter corrido melhor do que seria expectável inicialmente. “No cenário atual, sabemos que as lideranças se têm adaptado com sucesso: 94% dos managers afirmam estar a conseguir manter a eficácia na gestão da equipa e 88% conseguem comunicar de forma efetiva com a equipa, sendo que 79% não consideram que a produtividade da equipa tenha sido afetada pelo contexto de teletrabalho generalizado”.
![](https://images.trustinnews.pt/uploads/sites/5/2020/08/DT-Tiago-Forjaz-2-1600x1066.jpg)
Já a responsável da OutSystems salienta a importância de se definir aquilo que “é o novo normal”, como estão atualmente a fazer na sua organização, com uma comunicação muito clara e eficaz. “A nossa definição do novo normal, por exemplo, compreende dois vetores: o que é a audiência e as necessidades (autonomia, senioridade…) de cada elemento das equipas. Há aqui muitas pessoas que precisam de continuar a ir e a estar no escritório”, nota, salientando que não encontra nisso qualquer problema. “Depois, há ainda um vetor de liderança cultural: ou seja, sermos tão claros na definição de sucesso e naqueles que são os objetivos a atingir que também nós fazemos o drive do novo normal. E isso, no nosso caso, vai refletir-se em muito pouca presença de escritório.” Ou ainda menos, atira com um sorriso.
Reaprendizagem precisa-se
O ponto positivo de uma mudança abrupta, como aquela que o mundo laboral viveu recentemente, é que se tornará muito difícil voltar atrás em alguns comportamentos que antes eram vistos como desaconselhados – o trabalho remoto, em que os chefes têm de aprender diferentes formas de controlo (do trabalho em si, e não dos seus trabalhadores); a avaliação por objetivos; a comunicação mais eficiente e concisa; a redução da quantidade de reuniões e das horas passadas nestas, por exemplo.
Há mais agilidade em ioga do que em atletismo, por isso não vale a pena confundir velocidade com agilidade”
tiago forjaz
A partir de agora, e possivelmente por um tempo que se estenderá muito além da necessidade trazida pelas questões de saúde, as organizações e os funcionários terão uma série de novos processos para apreender e aperfeiçoar. E se para os mais novos haverá algumas facilidades (o facto de serem nativos digitais vai ser a sua principal mais-valia), são possivelmente os mais velhos que terão de os ajudar – enquanto alguns deles, possivelmente, também terão de aperfeiçoar as suas próprias capacidades – a garantir alguma autonomia e uma forma de trabalhar que seja orientada para resultados e para o progresso de uma equipa separada mas com objetivos comuns.
“A autonomia será decisiva para o sucesso, num cenário de trabalho global quase completamente descentralizado em que a autogestão diária e semanal será uma necessidade e não um nice-to-have como anteriormente, em que a proximidade física da chefia e do colega promovia uma gestão mais unidirecional chefia-colaborador”, admite a responsável da EDP. Paula Carneiro acredita ainda que “a resolução de problemas e a criatividade também assumem um papel ainda mais relevante, tendo em conta o cenário completamente novo e disruptivo” com que temos sido confrontados. “As soluções de ontem já não servem, e hoje (e nos próximos tempos) seremos confrontados com desafios que requerem novas abordagens, criativas e diferentes daquilo que fazíamos antes da pandemia.”
A autonomia será decisiva para o sucesso, num cenário de trabalho global quase completamente descentralizado
Paula carneiro
Para Tiago Forjaz, um dos grandes segredos dos bons profissionais vai ser a agilidade de aprendizagem. O talent strategist acredita que “aqueles que forem capazes de perceber que só se aprende verdadeiramente se forem capazes de abraçar o desconforto emocional de ter falhado, para depois apanhar a boleia exponencial do que se pode aprender a seguir é que serão capazes de aprender mais e melhor, mais depressa”. E, numa altura de alterações rápidas, esta agilidade vai tornar-se pedra de toque. “A agilidade de aprendizagem é composta pela capacidade de procurar os problemas, de descobrir numa atitude exploratória e receber o feedback como erros do processo de aprendizagem (sem deixar que isso afete a nossa autoestima), internalizar o que se poderia ter feito melhor (mas num diálogo connosco próprios) e depois ter a disciplina para aplicar esses ensinamentos.” E deixa um exemplo ao jeito de dica: “Há mais agilidade em ioga do que em atletismo, por isso não vale a pena confundir velocidade com agilidade”, salienta.
E se a velocidade foi algo fundamental nos últimos dois meses, para responder a um Grande Confinamento decidido em pouco mais de uma semana, agora é tempo de olhar para a frente e conseguir ajustar a estratégia certa para que não se perca e se trabalhe tudo o que foi possível aprender nestes últimos tempos. É também uma boa forma de garantir que as ferramentas trazidas por esta experiência podem servir para muito mais do que apenas para a ultrapassarmos em segurança física.
Artigo publicado originalmente na edição 434, de junho, da revista EXAME