Um acaso trouxe o navio do inglês Thomas Garland até à costa portuguesa. Décadas depois, os descendentes encerraram temporariamente a firma e refugiaram-se em Inglaterra para escapar às invasões francesas. Os britânicos da Taylor’s também foram forçados a partir, perderam parte do stock de vinho mas salvaram o negócio, com astúcia e alguma sorte. Já o alemão Ferdinand Claus não teve o mesmo engenho. Expulso durante a I Guerra, assistiu de longe à nacionalização da empresa de sabonetes de luxo e não voltou a investir em Portugal. Nos Açores, a Revolução dos Cravos quase derrubou a fábrica de chá Gorreana, apesar dos pergaminhos republicanos dos proprietários. Mas nem sempre os sobressaltos da História significam perdas nos negócios. A II Guerra Mundial salvou a indústria conserveira nacional, e o incêndio do Chiado, mesmo tendo reduzido a cinzas a Casa Batalha, representou um momento de viragem e de expansão da rede de lojas. Em tempo de pandemia, a EXAME recolheu narrativas de empenho e de esforço que permitiram a seis empresas centenárias sobreviverem a mudanças de regime, guerras, invasões, pragas, doenças e outras catástrofes. Apesar das enormes incertezas, também desta vez vão saber reerguer-se. O passado transmite-lhes essa confiança.
Numa noite de mau tempo

Uma tempestade arrastou, em 1776, o navio de transporte de bacalhau de Thomas Garland até à costa portuguesa. Mais de um século depois, outro imprevisto marcou a chegada do primeiro Dawson a Lisboa, unindo as duas famílias britânicas pelos negócios. Ainda a bordo da embarcação, vindo da Terra Nova, o comerciante inglês percebeu as potencialidades do novo mercado e começou a enviar navios de pescado para Lisboa, fazendo-os regressar a Inglaterra carregados de sal extraído na região de Setúbal e também de algum vinho do Porto. Nasceu assim a Garland, uma empresa de logística, transportes e navegação que mantém atividade em Portugal há 244 anos, mas com uma exceção. Durante as invasões francesas, foi obrigada a encerrar o escritório no Cais do Sodré (na foto) entre 1809 e 1810. Com Lisboa cercada, por terra e por mar, estava impedida de operar. Só depois da retirada das tropas de Napoleão é que retomou o negócio. Os proprietários, tal como outros cidadãos ingleses, procuraram refúgio na terra natal, temendo o inimigo com quem a Grã-Bretanha estava em guerra desde 1803.
O salvador da Taylor’s
A norte, a ofensiva francesa também agitou a comunidade dos ingleses exportadores de vinho. Numa das mais antigas casas do vinho do Porto, fundada em 1692 pelo comerciante inglês Job Bearsley, havia que salvar vidas mas também a produção guardada nas caves do Douro. Na firma que viria a chamar-se Taylor’s, trabalhava um escriturário norte-americano, de ascendência turca, chamado Joseph Camo, descrito à época como um homem cheio de energia. Sabendo que a França não iria tratá-lo como inimigo nem apoderar-se do património à sua guarda, os proprietários, antes de se refugiarem na Grã-Bretanha, cederam-lhe uma quota de um sexto do capital, em troca da sua permanência à frente do negócio. A 29 de março de 1809, o Exército francês invadiu o Porto e tentou saquear três navios, carregados com 632 pipas de várias casas comerciais, que aguardavam uma melhoria do tempo para partirem para Inglaterra. Mas as tropas gaulesas acabaram derrotadas pelo peso dos imponentes cascos, apoderando-se de apenas uma pipa e meia da Taylor’s. Em junho, o duque de Wellington recuperou o controlo da cidade, e os navios partiram finalmente para Portsmouth, em Inglaterra, com a carga quase intacta.
Terminada com sucesso a missão de Camo, o negócio passou a ter um novo sócio, Joseph Taylor, que fez a transição entre o período Bearsley e as famílias Fladgate e Yeatman, cujos descendentes são hoje proprietários da Fladgate Partnership, que engloba as marcas Taylor’s, Croft, Fonseca, entre outras.
A chegada dos Dawson
Em Lisboa, outro acaso haveria de ligar o apelido dos Garland ao dos Dawson, os atuais acionistas. Em 1866, Errington Dawson, um miúdo de 16 anos, foge da escola e entra clandestinamente num navio de carga. Ao fim de três dias, a embarcação atraca em Lisboa e o passageiro vai procurar trabalho no primeiro escritório com nome inglês que lhe surge pela frente. É contratado como tea boy, com a responsabilidade de preparar o chá do presidente da Garland, sempre à mesma hora: 16h15. Mas os jornais britânicos, embora com atraso, eram lidos minuciosamente pelos britânicos residentes em Lisboa. Ao deparar com a fotografia de Errington, o seu empregador percebe que o pequeno aventureiro é procurado pelos pais. De imediato, envia-o para casa, com a promessa de o acolher de novo em Lisboa quando concluir os estudos em Inglaterra. Anos depois, Dawson regressa à capital portuguesa e, com o tempo, torna-se sócio do último Garland na empresa. Embora esteja há já cinco gerações na família Dawson, o grupo mantém até hoje o apelido do fundador.
Filoxera, a pandemia do Douro
A história do Douro é sinuosa e feita de percalços. O aparecimento das pragas do oídio, em 1851, e da filoxera, em 1872, vão pôr à prova a resiliência de John Fladgate, o sucessor de Joseph Taylor. “Foi uma das piores crises” desta já longa existência de 328 anos do grupo, admite Ana Margarida Morgado, relações públicas da Fladgate.
Antes, por volta de 1855, uma epidemia de cólera ceifara vidas humanas no Douro. A seguir, foi a vez das vinhas. Os primeiros sinais da filoxera, causada por um inseto oriundo da América do Norte que se alimentava das raízes das vinhas, foram detetados em 1863 e 1864, mas só em 1872 a ameaça é encarada a sério, quando a praga se espalha pelas maiores quintas da região. John Fladgate, à frente da Taylor’s, quis saber tudo sobre a doença e, no verão de 1871, deslocou-se a França para colher novos ensinamentos. “Na qualidade de irmão-lavrador”, dirigiu uma carta aberta de 30 páginas aos agricultores do Douro (na foto), alertando-os para a “morte” das vinhas e ensinando-os a tratar a praga com químicos.
No final do século XIX, o Douro Superior era um lugar desolado. Quando a gripe pneumónica assolou o Norte do País, em 1918, a região ainda se erguia a custo da devastação causada pela filoxera.
Apesar dos seus esforços, no final do século XIX, o Douro Superior era um lugar desolado. Quando a gripe pneumónica assolou o Norte do País, em 1918, a região ainda se erguia a custo da devastação causada pela filoxera. “Julga-se que a epidemia tenha causado escassez de mão de obra e atrasado o plantio das vinhas novas, em substituição das antigas”, admite Ana Margarida Morgado, recordando que foi nessa altura que foram introduzidas no Douro novas castas e novas técnicas de cultivo que produzem até hoje alguns dos melhores vinhos do Porto.
Com a declaração do estado de emergência, em meados de março, a Fladgate encerrou a área do turismo (hotel e centro de visitas), colocou parte dos funcionários em teletrabalho e manteve ativas as linhas de engarrafamento, continuando a vender online. Tal como nos tempos de guerra, na Grande Depressão dos anos 30 ou a seguir à Revolução de Abril, “o vinho pode esperar” até que o mercado retome. “As crises nunca são iguais mas ultrapassam-se. Com dor, é certo, mas salvando o essencial”, diz a mesma responsável. A história da Taylor’s está cheia de exemplos.
A quase falência da Garland
Na Garland, a continuidade dos Dawson foi assegurada por Alfred, nascido em 1886. Os tempos que se seguiram não foram fáceis. As lutas liberais deram lugar às revoltas, a república sucedeu à monarquia e o negócio entrou em “quase falência”, afirma o chairman Bruce Dawson, membro da quarta geração. Um representante da Garland, a Booth Steamship, propôs-se adquirir 50% da empresa. “O acordado foi que a Booth Steamship ficaria com as ações se a Garland não recuperasse ou, em alternativa, revenderia as ações pelo mesmo valor se, e quando, a empresa tivesse condições financeiras mais favoráveis. Tratou-se de um negócio baseado na confiança mútua e fechado com um aperto de mão, sem necessidade de qualquer contrato”, acrescentou.
Foi um negócio que surgiu das oportunidades que sempre as situações de crise proporcionam e que nos permitiu recuperar
Bruce Dawson
Durante a Grande Guerra, e nos anos da pneumónica, a Garland continuou a desenvolver a sua atividade. “Sofremos uma redução do trabalho, mas facilmente se ultrapassou”, garante Bruce Dawson. Na II Guerra, a neutralidade de Salazar funcionou como um selo de idoneidade e a Garland entrou numa das fases de maior crescimento. Com as restrições ao tráfego marítimo, estreou-se no transporte ferroviário de mercadorias na Europa, expandindo-se nos anos 70 para o transporte rodoviário e aéreo.
Bruce e Peter Dawson, que ocupam os cargos de chairman e CEO da Garland, recordam que a Revolução de 1974 causou “uma substancial redução do negócio”. Para dar a volta, a empresa começou a fazer o transporte de mobílias dos retornados das ex-colónias e a seguir das famílias, portuguesas e inglesas, que partiram para a Europa e para o Brasil. “Foi um negócio que surgiu das oportunidades que sempre as situações de crise proporcionam e que nos permitiu recuperar”, diz Bruce Dawson. Em 1994, a empresa entrou na área da logística.

A Garland é hoje uma das cinco empresas mais antigas em atividade em Portugal. Tem sido sempre gerida por membros da família, nascidos e educados em Inglaterra, embora falantes da língua portuguesa. Só a quinta geração, representada na administração por Mark e Giles Dawson, parece ter perdido o sotaque britânico que lhes denuncia a origem. Neste momento, os 445 funcionários estão a trabalhar, 60% dos quais em casa e os restantes 40% nas instalações. “É necessário fazer chegar os bens essenciais aos portugueses”, sublinha Bruce Dawson, falando sobre o grupo que, em 2019, faturou cerca de 120 milhões de euros. “Resistimos sempre graças à nossa resiliência.”
O luxo da Claus
Contar a história da Claus Porto é também contar a história da Ach Brito. Começamos pela primeira, que tem início em 1887, na cidade do Porto, quando o alemão Ferdinand Claus propõe ao parceiro de negócios e conterrâneo, Georges Schweder, investirem no luxo. A sua ideia era a de aproveitar a formação em engenharia química do amigo e os dois se lançarem no fabrico de sabonetes e de fragrâncias para mimar os hóspedes dos melhores hotéis de Manhattan e vender nas montras glamorosas das lojas de Paris e de Londres.
Em 1903, o jovem Achilles de Brito, de 24 anos, junta-se aos dois alemães como guarda-livros, acabando por se tornar sócio da Claus & Schweder, quatro anos depois. Quase ao mesmo tempo, Georges Schweder retira-se, por questões de saúde. O sucesso da empresa é tão grande que, em 1908, recebe a visita do último rei de Portugal, D. Manuel II. Mas as nuvens negras começam a formar-se sobre a Europa. Com a declaração de guerra da Alemanha a Portugal, a 8 de março de 1916, os passos do sócio alemão ficam sob vigilância e este acaba por ser expulso do País. A história da Claus podia ter acabado nesse momento, mas não foi isso que se passou. O antigo guarda-livros acreditou sempre no potencial dos produtos de beleza e de banho e, em 1918, funda a Ach. Brito, com o irmão Affonso. Em 1925, adquire a fábrica e outros ativos da antiga Claus & Schweder, entretanto extinta em consequência da nacionalização do capital. Embrulhados à mão, em embalagens com rótulos e padrões alusivos ao glamour da Belle Époque, os sabonetes e fragrâncias da Claus alcançam notoriedade e, em vésperas da II Guerra Mundial, já as marcas estão consolidadas nos dois lados do Atlântico.

Nos anos 90, os bisnetos do empresário português, Aquiles e Sónia de Brito, alargam as vendas a 60 países com novas linhas para o corpo e casa. Em 2015, a empresa de capital de risco portuguesa Menlo adquiriu uma posição maioritária, mas a quarta geração da família manteve-se na empresa. Neste momento, as lojas da Claus em Lisboa, Porto e Nova Iorque estão encerradas, mas, tal como em crises anteriores, a Ach Brito tem mantido a sua laboração em pleno, com cerca de 100 pessoas. Em 2019, as vendas atingiram os 6,2 milhões de euros.
Pinhais vai à guerra
Se há negócios que florescem à sombra de guerras e de pandemias, um deles é o das conservas de peixe. Durante a Grande Guerra, a exportação das conserveiras portuguesas foi subindo até atingir quase 40 mil toneladas, em 1919. Na década de 20, havia 300 fábricas em Portugal. Porém, a crise não demorou a instalar-se com a Grande Depressão e, a seguir, com as tarifas aduaneiras impostas pelo Brasil.

A II Guerra Mundial foi a salvação para muitas dessas empresas, permitindo-lhes aumentar significativamente as vendas junto dos dois lados do conflito, com exércitos para alimentar. Nas fábricas, não sobrava pescado, mas a qualidade do produto não era a melhor. Tudo se vendia, incluindo os stocks acumulados, desde que se conseguisse trocar as voltas aos navios de guerra que vigiavam o Atlântico, impedindo os cargueiros de chegarem ao seu destino, quer junto dos Aliados quer do países do Eixo.
A história da conserveira Pinhais começou a ser escrita já depois da I Guerra Mundial, a 23 de outubro de 1920. A produção artesanal mantém-se até hoje, sendo a única fábrica em Portugal que a faz. A preparação do pescado continua a ser feita à mão pelas experientes operárias. Só a cozedura do peixe, a esterilização do produto e a cravagem e fecho da lata de conserva são confiadas às máquinas. “Apostámos nos mercados mais exigentes, nas lojas gourmet em vez das grandes superfícies”, explica o diretor de certificação e auditoria, António Pinhal, neto do fundador. “Mas é muito difícil resistir aos preços baixos”, admite. Em 2016, a família vendeu a totalidade da empresa ao distribuidor austríaco Glatz.

Desde a declaração da pandemia da Covid-19 que a Pinhais “quanto mais produzir, mais vende”. As conservas de peixe são um alimento de refúgio, com prazos de validade de cinco a seis anos. Com a economia do País quase paralisada, os 102 trabalhadores da Pinhais têm mantido a fábrica de Matosinhos a laborar no máximo da sua capacidade, produzindo 30 mil unidades por dia (o que equivale a 300 cabazes de sardinha). Nada que se compare, no entanto, ao período áureo da II Guerra Mundial, em que as vendas aumentaram três a quatro vezes. Durante o conflito, António Pinhal Júnior, descendente do fundador, escolheu um dos lados e – garante o filho – só vendia aos ingleses. “Por simpatia”, diz. Mas as suas convicções criaram-lhe dificuldades, quando tinha de disputar o preço do pescado com os concorrentes. Como estes também vendiam aos alemães, que importavam mais e pagavam melhor, faziam melhores ofertas nos leilões da lota, obrigando a Pinhais a gastar mais para adquirir matéria-prima.
No pós-guerra, uma crise profunda abateu-se sobre o setor, em toda a Europa. A Pinhais sobreviveu, tal como espera sobreviver à crise no ano do seu centenário: não só à da Covid-19 mas também à da escassez da sardinha resultante da redução das quotas de pesca impostas pela União Europeia.
Também a Ramirez, criada em 1853, no Algarve, por um andaluz, tem a fábrica de Matosinhos a funcionar em pleno, de forma a satisfazer o aumento das encomendas. Tal como as outras conserveiras, a Ramirez conheceu um dos períodos de maior expansão durante a II Guerra Mundial. No início dos anos 50, as escavações feitas no antigo bunker de Hitler puseram a descoberto três latas de sardinha em azeite da marca portuguesa. Ao que parece, ainda em bom estado de conservação.
A revolução do chá
Os Açores são o único local da Europa onde se cultiva e produz chá, numa fábrica também única. A técnica da plantação do chá foi aperfeiçoada na ilha de São Miguel por chineses, em 1874, transformando-se numa fonte de rendimento de Ermelinda Gago da Câmara e do filho José, a partir de 1883, quando esta e outras famílias da região procuravam alternativas à “crise da laranja”, afetada por uma praga importada do continente.

Quase sempre gerida em crise, a Gorreana tem uma vida centenária recheada de sucessos e de fracassos. “Se há um termo para definir a Gorreana, esse é a falta de dinheiro”, diz Roberto Pereira Rodrigues, atualmente a escrever a história da empresa familiar. Mas aquilo que a distingue é também a forte cultura matriarcal transmitida de mães para filhas – mesmo quando eram os homens a comandar – e que hoje é representada pelas irmãs Madalena e Sara, a sexta geração à frente do negócio.
Com a morte de Ermelinda, a Gorreana passou a ser gerida por Jaime Hintze, casado com uma neta da fundadora. Visionário para uns, tresloucado para outros, certo é que as suas ideias estavam muito à frente do seu tempo – o que lhe valeu a oposição de Salazar. Homem de iniciativa, criou bichos-da-seda para fazer tecidos, e gansos para produzir patê, capas e borras de pó de arroz com as penas. Fundou a primeira “creche” da ilha, ao transformar um pátio num recreio, onde as mães trabalhadoras podiam deixar os filhos. Mas a sua grande obra foi a instalação, em 1926, de uma central hidroelétrica para a mecanização da fábrica. Sem autonomia energética a Gorreana não teria sobrevivido, mas por causa dela quase que desapareceu. O investimento deixou a fábrica atolada em dívidas que o filho Fernando, a muito custo, pagou.
Aos poucos, a produção de chá foi desaparecendo dos Açores. O protecionismo de Salazar ao chá de Moçambique originou uma crise no arquipélago. Em 1944, sobravam cinco das 14 unidades fabris. Hoje, resta a Gorreana.
Todo o nosso stock de chá estava no continente, nos armazéns de um distribuidor que foram nacionalizados. Perdemos tudo. Não sei como resistimos
Madalena mota
Madalena Mota era ainda criança quando o PREC, na sequência da Revolução de 1974, ia deitando tudo a perder. Apesar das simpatias republicanas do bisavô, que foi o primeiro governador civil de Ponta Delgada, a empresa, embora de forma indireta, não escapou às nacionalizações. “Todo o nosso stock de chá estava no continente, nos armazéns de um distribuidor que foram nacionalizados. Perdemos tudo. Não sei como resistimos”, conta a gestora.
Mas a Gorreana atravessou outros momentos difíceis, mas sempre lutou, mesmo que a família tivesse de socorrer-se de outros negócios para viabilizar o cultivo de chá. “A seguir à adesão europeia, disseram ao meu pai que o negócio não tinha futuro. O que estava a dar era a criação de vacas. O dinheiro ia todo para a lavoura”, refere Madalena. Sem acesso a fundos, Hermano Mota investiu em representação de marcas automóveis e em agências de viagens, recusando sempre fechar a fábrica, o maior empregador da Maia, no concelho da Ribeira Grande. A crise financeira e a chegada da Troika representaram um novo golpe para a Gorreana, obrigada a recorrer ao layoff para manter postos de trabalho numa região onde o emprego escasseia. Em 2013, com a morte inesperada do pai, as duas irmãs agarraram no negócio, procuraram novos clientes em mercados como o alemão e apostaram no turismo, através da abertura de um espaço museológico junto à plantação e à fábrica, onde se podem saborear e adquirir as variedades de chá da marca. “Eu diria que 99% dos turistas que visitam os Açores se deslocam à Gorreana. Neste momento, temos zero visitas”, lamenta Madalena que, em março, tomou a decisão de encerrar o museu, a casa de chá e a loja, mandando os funcionários desses setores para casa. A colheita do chá está a arrancar e a fábrica a laborar, com cerca de 40 trabalhadores em dois turnos rotativos de 15 dias cada. Aquando do primeiro contacto telefónico da EXAME, Madalena encontrava-se na fábrica a ajudar no que fosse preciso – com a convicção de quem já viu a Gorreana sobreviver a outras crises.
A batalha da Casa Batalha
É a marca mais antiga de Portugal, fundada em 1635. Com o País ainda sob domínio espanhol, João Cipriano Rodrigues Batalha vem para Lisboa exercer o ofício de conteiro e dedicar-se à venda de contas. Século e meio depois, em 1785, o negócio foi transformado numa sociedade comercial que abriu portas no número 77 da Rua Nova do Almada, em plena Baixa-Chiado. O negócio da venda de contas fora, entretanto, alargado às missangas, bordados e bijutaria fina, como colares e brincos.
A mudança de regime para a república faz-se com alguma dor, já que os donos da Casa Batalha eram defensores do regime monárquico. Mas a empresa soube adaptar-se à mudança dos tempos e, até meados do século XX, manteve-se como única marca de bijutaria portuguesa, colhendo as preferências das senhoras da classe média-alta lisboeta.

A catástrofe fez-se anunciar na madrugada de 28 de agosto de 1988. O incêndio que deflagrou nos antigos armazéns Grandella alastrou-se rapidamente e destruiu lojas, escritórios e habitações nas ruas do Carmo, Garrett e Nova do Almada. No espaço de horas, o recheio da Casa Batalha ficou totalmente destruído, assim como o arquivo histórico-documental, salvando-se apenas a placa colocada à entrada (visível na fotografia). Mas a vontade de renascer das cinzas foi grande e, cerca de um mês depois do incêndio, a Casa Batalha reabriu no primeiro andar dos antigos armazéns Ramiro Leão. Um ano depois da tragédia, mudou-se temporariamente para a vizinha Rua do Ouro, até que os gestores resolveram apostar nos centros comerciais, em Lisboa e no Porto.
A estratégia de expansão da rede de lojas conheceu altos e baixos, e a dispersão do capital por muitos herdeiros não ajudou à tomada de decisão. Gonçalo Esteves, representante da décima primeira geração do negócio familiar, disse, numa entrevista, que a Casa Batalha renasceu das cinzas por duas vezes: “Uma após o incêndio e outra com o aumento de capital”, que lhe viria a dar o controlo da empresa, em conjunto com um tio.
O negócio não prosperou como se previa e, em 2008, foi adquirido pelo grupo português Lanidor que apostou num reposicionamento como boutique de bijutaria. Dez anos depois, fez o regresso ao Chiado, desta vez com a abertura de uma Oficina na Rua das Flores, uma homenagem ao trabalho manual do artesão. A Casa Batalha tem, neste momento, as lojas encerradas e os dez funcionários em layoff. As vendas online, assim como as que resultam da parceria com a marca Globe, são asseguradas pelo back office do grupo Lanidor. Tal como as outras empresas aqui retratadas, a Casa Batalha é hoje o reflexo de uma longa história que ainda não terminou – está apenas suspensa.
Artigo publicado originalmente na EXAME n.º 433, de maio de 2020