Maria João Valente Rosa olha para esta pandemia com realismo, mas não deixa de apontar os pontos positivos que podem sair deste período: aprendizagens, alterações estratégicas nas políticas públicas e, quem sabe, uma maior atenção da sociedade àquilo que devem ser as prioridades da vida de cada um. Acredita que as desigualdades se vão acentuar e que o poder público tem que adotar uma atitude muito mais interventiva.
A EXAME conversou com a demógrafa na semana da Páscoa, numa entrevista que pode ler na edição de maio, já nas bancas. Mas muitos mais assuntos ficaram de fora dessas páginas que integram um dossiê especial sobre o mundo que nos espera depois do Grande Confinamento. O resultado está abaixo.
Esta pandemia vai tornar-nos mais cautelosos?
Talvez nos possamos tornar mais cautelosos numas coisas, mas também podemos cair o risco de nos tornarmos precipitados noutras. Tal como aconteceu agora, neste caso. Não nos preparámos, mas reagimos rapidamente e, portanto, pode haver alturas em que pensemos que nem sempre o tempo poderá ser o melhor conselheiro. Pode dar para os dois lados.
Acredita que a Ciência poderá, depois disto, beneficiar de mais financiamento público, que é algo que tem vindo a ser cortado sucessivamente, nos últimos anos?
Acho que pode e que era importante. Sabemos muitas vezes que grande parte das decisões que se tomam têm a ver com a importância que as populações dão a certas áreas, e a capacidade de estas áreas de se afirmarem no seio da sociedade civil. Acho que aqui há um momento que devia ser explorado, para passar esta mensagem de que o dinheiro alocado à Ciência não é despesa, é investimento. Há mensagens fortes que deviam começar a passar no período ‘durante COVID’, porque isto ajudaria a que, quando se discutir Orçamentos, haja mais apoios. Tenho visto uma preocupação muito grande sobre a espuma do dia e muito pouco sobre como nos vamos encontrar depois. E acho que este é o momento, para que não tenhamos a sensação, que quando isto acalmar todo possamos ter esta sensação de que perdemos o tempo certo…
Como é que se poderia passar essa mensagem?
Acho que era interessante existirem debates – já que o tempo de futebol
ficou liberto – na televisão. E por que não debates entre filósofos,
matemáticos e afins? Mas não é para ter discussões sobre os números de
infetados [por coronavírus], que esse número já foi dado. Acho que era
importante começar a discutir os caminhos de futuro, e a falar sobre o que é
importante retirar daqui, abrindo as discussões e não focando apenas na circunstância.
Porque isto vai muito para além das circunstâncias.
Isso não tem sido feito?
Eu não tenho visto esse esforço: os poderes públicos têm aqui um papel importantíssimo, as organizações também e os cientistas também (e falo de todas as ciências: sociais, humanas, a filosofia aqui é critica, na minha opinião. Mesmo para a escola e para o futuro – as crianças também estão a viver isto, e à sua maneira, e era importante que pudessem perceber o que isto implica na sua forma de vida e no seu caminho. Era importante pensar o que o ensino pode fazer em relação a isto. Eu sinto que é também um momento em que as várias ciências se deviam reunir numa causa muito importante: já se reuniram a volta das alterações climáticas e outros fenómenos, mas este talvez seja o momento em que, como estamos todos, em qualquer ponto do planeta, a viver o mesmo, era interessantíssimo passar a mensagem de que a matemática, a filosofia, a economia podem e devem trabalhar juntas.
No fundo, usar as circunstâncias para ensinar?
Sim. E ainda voltando atrás, aos sentimentos que podem sair reforçados: sem as tecnologias que temos hoje, se isto é muito mau, seria terrível, terrível, terrível! Hoje, mesmo do ponto de vista de saúde, é possível encontrar uma resposta do outro lado do telefone ou do computador. Acho que vamos entender que as tecnologias não são para comunicarmos uns com os outros, mas são também para chegar sem ter de ir – e nós não podemos ir, mas temos de chegar! E por outro lado, vamos perceber melhor – ou pelo menos espero que aconteça – o valor da boa comunicação e da boa informação. Se calhar, até há uns tempos não distinguíamos tão bem o trigo do joio, e agora começamos a perceber. Começo a perceber que as pessoas agora estão interessadas nas fontes oficiais. Estão muito enfileiradas naquilo que é informação oficial e de órgãos de comunicação credíveis. E pode ser que isto dure algum tempo – embora reconheça que também pode não durar tempo nenhum. Mas novamente, não sei se vamos ter mudanças grandes.
Nem nos de hábitos, como dizia?
Tenho mixed feelings. Creio que podem acontecer dois cenários que vou tentar ilustrar com uma imagem: imagine que estamos no intervalo de um filme – que era o cenário que eu não gostaria que viesse a acontecer – e que quando isto, esta pandemia, acabar, regressamos à sala e continuamos a ver o mesmo filme. Ou seja, a vida continua. Ou então, podemos ter um outro cenário: aquele em que saímos da sala no intervalo do filme, e quando acaba o intervalo, decidimos ir para o filme da sala ao lado. Claro que esta situação que estamos a viver agora pode voltar a acontecer no futuro, com novas situações que nos obriguem a medidas drásticas. E portanto, se não tiramos grandes lições, significa que não somos muito inteligentes e que desperdiçámos completamente o tempo que estamos a viver.
Mas, por exemplo, já começamos a antever diferenças em alguns negócios….
Certo, e acho que há negócios que se vão alterar profundamente, uns porque não vão resistir a esta situação, outros porque vão perceber que já não vão dar respostas ao que se vai querer – olhemos para as compras online, por exemplo. Não sei se não vão ter que se redesenhar, porque muitos negócios online vão passar a liderar o caminho ao invés de estarem fundados em lojas físicas, como até aqui; e depois há os que vão ter que se adaptar a alterações que vão surgir, como os restaurantes. Mas é importante dizer que nós em Portugal temos vindo a mudar comportamentos, ao longo dos anos. Por exemplo, a nossa forma de vida familiar tem mudado a um ritmo aceleradíssimo, e nós temos mudado muito aos mais variados níveis. Mas há situações que nos levam a evitar a mudança.
Não está muito segura de que isto nos vá fazer mudar, então…
Eu gostaria muito que isto nos ajudasse a mudar, mas o que eu sinto é que não está a haver a devida preparação para que essa mudança aconteça da melhor forma. Embora ache quase obrigatório que nós mudemos. Sob risco de qualquer dia o desconforto se tornar tão grande que nos vai obrigar a mudar à bruta. Espero que alguma coisa fique. Mas, na verdade, não sei (risos).
E isso não pode ser uma aprendizagem, visto que estávamos há anos para tentar implementar isso?
Eu não sei se nós temos sido só burros por não termos conseguido fazer melhor. Se calhar, se tivéssemos reais avaliações de desempenho, já teríamos dado o salto. A questão é que para dar o salto perdemos o controlo das pessoas, e temos algum medo disso. Eu acho que o teletrabalho é um caminho – isto tem implicações sobre o meio ambiente e nos níveis de stress, e pode aumentar os níveis de realização pessoal porque se consegue combinar melhor as suas atividades laborais com outras que lhe interessem. Eu não sei se o teletrabalho como agora existe vai manter-se ou se vai haver aqui algumas alterações, mas pelo menos acredito que se consiga começar a redesenhar o esquema de vida das pessoas. Um esquema em que a pessoa trabalha, tem tempo para fazer formação, para estar com os outros, para lazer, e por ser responsável pelas decisões que toma. E se não cumprir objetivos, cá estamos nós para a avaliar. Se isso acontecer, seria uma mais-valia para todos.
Aliás, temos aquele ditado que diz “trabalho não é tudo na vida”…
O que faz sentido é que o trabalho seja uma parte normalíssima das nossas vidas, tal como o conhecimento, tal como estar com os outros…desta vez criou-se um casulo artificial em que tudo se misturou e a lição daqui é porventura que conseguimos fazer isto. E não sendo isto a resposta, pode ser parte do caminho.
Nos últimos anos, muitos autores diziam que as pessoas estavam a tornar-se mais umbiguistas. Vamos ficar menos individualistas?
A importância do nosso papel enquanto indivíduo num coletivo ficou clara. Ficou clara a ideia de que o resto não é indiferente aos nossos atos e comportamentos, e que há aqui um ponto que é conhecimento do impacto social dos nossos comportamentos que começa a ser particularmente nítido. Isto está nesta fase a ser muito visível, o que não acontecia até há bem pouco tempo. Sentir que o nosso comportamento impacta no resto é incrível. Mesmo nas empresas. Esta era outra mensagem que devia ser muito bem trabalhada nesta fase do ‘durante Covid’, porque depois podemos esquecer-nos. Era importante trabalhar esta ideia de que o nosso comportamento não deixa ileso o resto do coletivo, de que fazemos parte do sistema. Nós todos aderimos a estes condicionalismos de comportamentos porque percebemos que isto ajuda! Antes sentíamos que não era por nós que isto podia mudar, e agora percebemos o tamanho do nosso impacto. Isto é uma boa prova de que fazendo uma coisa em sintonia, tem um impacto brutal. Acho que a responsabilidade social de cada um ficou muito mais nítida nesta fase. E esta mensagem, até para as crianças, é muito importante, para que fique algumas coisas depois destes dias de espuma.
Está preocupada com as crianças?
Acho que as crianças estão a ser muito esquecidas neste processo. Os programas infantis pouco se alteraram desde que a pandemia começou. Os nossos, dos adultos, alteraram-se todos. As pessoas passaram a estar em teleconferência, as crianças foram quase colocadas à mercê dos pais. Acho que nos esquecemos delas enquanto fim, e isto tem consequências. Por exemplo, Portugal é um dos países em que mais o meio familiar condiciona o sucesso ou insucesso dos jovens. A pessoa ter a sorte ou o azar de nascer num determinado berço, deixa-a à mercê de um desenvolvimento. E era mesmo importante que as autoridades se preocupassem com isto. Aqui, os poderes públicos têm que ter um papel mais interveniente, e isso não é apenas assegurar que as aulas continuam, mas que a mensagem passa.
Acha que vai haver um agravamento de desigualdades?
A realidade modificou-se durante um período e é muito natural que as crianças queiram saber muito sobre o que se está a passar, e comunicar na linguagem delas. E não querem, muitas vezes, fazer isto com os pais, mas com os professores. A melhor forma de atenuar as desigualdades, na minha ótica, é trabalhar sobre aquilo que são as desigualdades de partida, – as que fazem com que o facto de uma pessoa, porque nasce aqui ou ali, estar automaticamente em desvantagem em relação a outra. Porque isto é um comportamento que se reproduz. A OCDE escreveu certa vez num relatório que o teto e o chão em Portugal eram muito pegajosos. Isso significa que precisamos de gerações para subir nos degraus sociais e que para se mudar de patamar é muito doloroso. Isto não faz sentido, até porque há muito desperdício de talento no entretanto, e há um determinismo social que temos que combater.
Ou seja…?
O que se está a passar com esta situação é que não estamos a pensar na parte do elevador social e estamos só a pensar na matéria que temos que dar até ao fim do ano. E alguma dela é muito importante, mas mais importante seria que as crianças percebessem que o conhecimento tem muito valor. Através desta tele-escola ou do que for, elas vão perceber e saber mais do que se não estiverem lá. E é triste quando chegamos à escola e percebemos que ela não consegue acompanhar o ritmo deste problema da desigualdade de partida, que condiciona a de chegada. Para além de que há muitas crianças de meios mais frágeis, que são crianças que vivem em famílias menos qualificadas, e também sofrem situações de maior risco – porque há maior probabilidade de desemprego e menor capacidade de essas pessoas voltarem a encontrar novos trabalhos e de se reconstruírem depois disto. O poder público tem mesmo que entrar nestes momentos.