Engenheiros mecânicos que trabalham em Fórmula 1, professores e investigadores de universidades, médicos, estudantes. Todos portugueses e todos unidos em prol de uma causa comum. A ideia demorou pouco mais de duas semanas a tomar forma e o proof of concept (uma espécie de prova de que o conceito funciona como esperado e que está dentro de todas as normas e regras necessárias) deve chegar ainda antes da Páscoa. O ‘ventilador de emergência’ foi totalmente criado por portugueses e patenteado em nome da Humanidade: porque é a ela que se espera que chegue. E mais: não pode ser usado para fins comerciais.
A informação foi tornada pública no dia 31 de março, quando foi disponibilizado o artigo científico onde se explana a ideia: “Proof-of-concept of a minimalist pressure-controlled emergency ventilator for COVID-19”. O repto tinha sido lançado por João Nascimento, um estudante de neurociências português em Harvard, em meados de março e interessou mais de 1 400 especialistas em redor do mundo: a ideia era criar ventiladores passíveis de fabricar localmente, em massa e a custo reduzido. Através da plataforma OpenAir foi possível a chegar a vários pontos do globo e em duas semanas havia um ventilador pensado, criado, testado e com a patente registada.
Mas apesar de a plataforma ter suscitado interesse de especialistas de todo o globo, acabou por ser uma equipa exclusivamente portuguesa a criar este ‘ventilador de emergência’, que se quer disponível nesta que “é a primeira guerra em que todos lutamos contra o mesmo inimigo”, resume à EXAME António Grilo, da Unidade de Investigação em Engenharia Mecânica e Industrial da Universidade Nova de Lisboa, e um dos autores. Está em permanente contacto com Paulo Fonte, do Instituto Superior de Engenharia de Coimbra, que o convidou a integrar o projeto. Ambos montaram equipas em cada uma das Universidades para trabalhar a ideia, e é isso que têm feito desde que a aventura começou. “Acabámos por ir chamando pessoas – ou elas aparecendo – à medida das necessidades”, congratula-se.
É a primeira guerra em que todos lutamos contra o mesmo inimigo
António Grilo, Unidade de Investigação em Engenharia Mecânica e Industrial da Universidade Nova de Lisboa
É o professor da NOVA que explica à EXAME a diferença entre este ventilador e todos os outros que, entretanto, já foram criados a nível global. “Estão a ser feitos imensos projetos de ventiladores, em todo o mundo. O que o nosso tem de diferente é o facto de termos partido de duas questões. A primeira foi: qual é o mínimo dos mínimos necessário de que um médico precisa num ventilador de cuidados intensivos? Portanto, perguntámos ao Pedro Póvoa [um dos autores do projeto], da Nova Medical School, que é médico e especialista: «se faltarem ventiladores nos cuidados intensivos, de que é que precisa para salvar vidas?» O outro princípio muito importante era fazer estes ventiladores com componentes que existam agora, e não com peças que tivessem que ser produzidas e estivessem disponíveis só daqui a um mês”, esclarece.
Da teoria à prática
Mas ter componentes à mão e ser um produto de “último recurso” não significa que o produto não tenha que cumprir, no final, todas as regras e certificações devidas para que possa ser utilizado em contexto clínico, como se pretende.
“Estamos a tentar produzir algo extremamente simples, do ponto de vista da utilização, e barato, do ponto de vista financeiro. E estamos a tentar fazê-lo com o equipamento mais barato que conseguimos, para que tenha componentes que existem em praticamente todos os locais do mundo”, resume por seu lado Pedro Pinheiro de Sousa ao telefone desde Itália. “Mas quando o aparato [o ventilador, no caso] for todo montado e industrializado, tudo vai ter que ser certificado. Há um conjunto de regras que vêm ou da Organização Mundial de Saúde ou mesmo standards ISO que vão ter que ser cumpridos porque queremos que isto seja um produto global”, esclarece o Head of Structural Design da Haas F1 Team.

D.R.
Há um conjunto de regras que vêm ou da Organização Mundial de Saúde ou mesmo standards ISO que vão ter que ser cumpridos, porque queremos que isto seja um produto global”
Pedro Pinheiro de sousa, head of structural design da Haas f1 team
Estima-se que este ventilador possa ser produzido por cerca de mil euros, menos do que os €4 000 que geralmente custa uma unidade de ventilação dos cuidados intensivos. No entanto, reiteram ambos os autores do projeto que falaram à EXAME, este é um instrumento que não deve ser pensado como um ventilador tradicional hospitalar de cuidados intensivos: o seu objetivo último é garantir que, se tudo o resto falhar, ele também consegue salvar vidas. Mas, alerta o engenheiro português a viver em Maranello, “este ventilador, atualmente, é suficiente para estes casos específicos desta patologia específica e que, normalmente, tem este tratamento”. Não mais do que isso. Mas não menos, também.
Indústria e academia de mãos dadas
Pedro tomou conhecimento do projeto através do Twitter. Interessou-lhe sobretudo o facto de se tentar criar um ventilador facilmente replicável, e que o projeto fosse em open source – ou seja, sem interesse comercial. “Nesta altura, em que atravessamos esta tragédia mundial, é algo que me faz todo o sentido”. Contactou diretamente João Nascimento e, aproveitando que está em período de férias forçadas devido à pandemia, disponibilizou-se para ajudar no que fosse possível.
Pouco tempo depois, Pedro chamava Gonçalo Pimenta, engenheiro estrutural com quem tinha trabalhado há uns anos, no Reino Unido, porque percebeu que não havia muito mais gente com experiência industrial na equipa que, entretanto, tomava forma. “Os cientistas são fundamentais, mas depois há-que criar a máquina”, diz, divertido.
Portugal, EUA, Itália e Reino Unido passaram a ter teleconferências regulares, a trocar emails e telefonemas e ao fim de duas semanas havia o primeiro fumo branco: dados e testes suficientes para o artigo científico.
Mas se a urgência é no terreno, porquê a necessidade de ter um paper antes de se partir para a produção? Primeiro, explica António Grilo, “nós somos cientistas, apesar de termos pessoas da indústria, nomeadamente da Fórmula 1, no projeto”, atira com um sorriso que se sente mesmo que por telefone. Portanto, “um dos passos importantes para nós era fazer este artigo. Porque achamos que o que estamos a propor é correto, e tivemos o apoio de um médico especialista, mas gostamos que os nossos pares nos validem e vejam o que estamos a fazer, para que possamos receber críticas construtivas. E isso não impede que continuemos a avançar”.
Achamos que o que estamos a propor é correto, e tivemos o apoio de um médico especialista, mas gostamos que os nossos pares nos validem e vejam o que estamos a fazer, para que possamos receber críticas construtivas
antónio grilo
“Neste caso específico, em que temos pessoas da indústria e da investigação, acho que o casamento resultou bem”, realçou o responsável, admitindo que foi notória a diferença de ritmo entre eles e os engenheiros presentes na equipa.
“A nossa experiência profissional, e o facto de estarmos inseridos numa indústria com um ritmo muito rápido, significa que sofremos muito com a pressão do tempo”, explica, por seu lado, o engenheiro da Haas F1 Team, que admite ter sido difícil encontrar um equilíbrio na velocidade de trabalho com os cientistas. “Estamos muito habituados a gerir estes processos que implicam reunir toda a informação e começar a elaborar logo o nosso problema. E a prática evidencia muitos problemas que nem foram pensados na parte teórica”, justifica.
Portugal em ação
Mas agora é hora de olhar para o futuro, que na verdade já está a acontecer. Ou, por outras palavras, perceber quais são os próximos passos.
“Já começámos os contactos com a indústria em Portugal, com o objetivo de haver um conhecimento mais detalhado da performance do equipamento que escolhemos”, explica Pedro Pinheiro de Sousa. “Portanto, estamos a tentar antecipar problemas que podem advir da utilização que pretendemos e ter feedback constante das nossas escolhas” para que seja perdido o menor tempo possível.
“No fundo, agora começamos a afunilar para algo muito mais definido, e estamos a trabalhar com as pessoas da indústria para voltar a testar e a medir comportamentos que não conseguimos antecipar. Até mesmo a nível de fornecimento, do ponto de vista logístico…”, esclarece.
À semelhança de António Grilo, Pedro Pinheiro de Sousa acredita também que Portugal poderá não vir a precisar destes ‘ventiladores de emergência’, mas lembra que países mais populosos e com menos capacidade de resposta dos sistemas de saúde – com alguns territórios da Ásia e de África – poderão ser beneficiados pela ideia. O facto de quererem assegurar a questão logística tem a ver com compromisso: “Achamos que pode acontecer alguns países não terem alguns equipamentos em stock, por exemplo. Daí termos interesse em ter equipamento simples, em que possamos adquirir peças rapidamente em grande escala” para se for preciso dar uma ajuda.
Entretanto, a pergunta inevitável: como é que em duas semanas, profissionais de áreas e formações tão díspares fazem tudo isto acontecer? “Com muitos telefonemas, mensagens, muitos emails e muita carolice das pessoas a trabalhar até altas horas”, atira António Grilo com uma gargalhada. “E é o trabalho de muita gente – há-que dar o crédito ao professor Paulo Fonte que criou o conceito original e fez grande parte daquilo que é o paper, com a ajuda dos professores Telmo Santos e João Goês”, aproveita para dizer.
Do projeto fazem ainda parte António Bugalho, Américo Pereira, Luís Lopes, Orlando Cunha, Alberto Martinho, António Gabriel-Santos, José Paulo Santos, Luís Gil, Tiago Rodrigues, Valdemar Duarte, António Grilo, João Martins e João Pedro Oliveira. Um verdadeiro batalhão nacional ao serviço da humanidade, numa altura em que a Covid-19 já infetou mais de um milhão de pessoas no mundo, tendo provocado a morte de mais de 50 mil.