Artigo publicado em outubro de 2019 na edição 426 da revista Exame
No recreio da escola, o miúdo dono da bola geralmente tem o privilégio de escolher as equipas, de dar a tática e de decidir quando começa e termina o jogo. Na elite do futebol não é muito diferente, exceção feita aos cheques de dezenas e centenas de milhões, aos fatos de gala e aos camarotes de luxo. Os donos da bola têm bolsos largos. “Como indústria, o futebol tem enormes recursos financeiros; a riqueza líquida estimada dos donos dos 100 maiores clubes é quase 950 mil milhões de euros”, indica o relatório anual Football Finance, desenvolvido pela Soccerex. Um valor mais de quatro vezes o PIB de Portugal.
Este poderio financeiro ajuda a explicar a inflação galopante no mercado de transferências, com o apoio de contratos televisivos, de patrocínios cada vez mais generosos e da entrada de investidores e assessores financeiros na indústria. “Foi registado um novo recorde de gastos em 2019: 6,6 mil milhões de euros. Esta quantia é quase uma subida de 10% em relação ao recorde anterior de 2017. Em dez anos, os investimentos em transferências dos clubes das cinco maiores ligas cresceram mais de quatro vezes”, revela um estudo do CIES – Observatório do Futebol que inclui já os dados do último defeso. Isto apesar de estarem em curso as regras do fair-play financeiro, que pretendem que os clubes mantenham um equilíbrio entre despesas e receitas.

Mas a química de jogo entre os clubes controlados por magnatas e os gastos em transferências é elevada. Naquela que é considerada a melhor e mais rica liga do mundo, a inglesa Premier League, nove dos dez maiores clubes são detidos por investidores estrangeiros. “A era dos magnatas no futebol tem à volta de 15 anos, e a influência que estes mecenas têm no futebol contemporâneo é fácil de perceber”, indica o relatório anual Football Finance divulgado pela Soccerex. Os exemplos mais evidentes apontados nesse estudo são os dos ingleses Chelsea e Manchester City e o do francês Paris Saint-Germain. Curiosamente, ou talvez não, os três clubes estão no top dos emblemas que mais gastaram em reforços na última década, segundo o CIES – Observatório do Futebol.
O estudo concluiu que os clubes de topo são uma “proposta viável para investidores e que, dessa forma, o jogo atrai donos de várias geografias”. Nos 100 emblemas com maior potencial, há proprietários oriundos de vários continentes. Mas as duas maiores economias do mundo dominam este campeonato. “Cerca de um terço vem da China e dos EUA”, refere o relatório. Os investidores chineses, seguindo a tática do Presidente, Xi Jinping, que quer tornar o país uma potência do futebol, apostaram fortemente no Reino Unido, em Espanha, Itália e França. Já os donos norte-americanos fazem da liga inglesa o seu alvo de eleição. No top 30 do ranking da Football Finance, o número de clubes detidos por investidores dos EUA é o mesmo que o dos franceses, alemães e italianos juntos. Com a experiência e com os milhões feitos no futebol americano ou na NBA, tentam diversificar para o desporto-rei dos europeus.
A desconfiança
No início da era dos magnatas do futebol, a compra de clubes causava estranheza e não tinha grande racional económico. “Há dez anos, oito dos 20 clubes da Premiership eram detidos por estrangeiros, investidores externos que podiam pagar esse investimento. Mas, nessa altura, não havia lucro no futebol inglês. Sem lucro, qual a motivação para se comprar um clube de futebol?”, questiona Arjun Medhi, consultor na área de prevenção da corrupção e de branqueamento de capitais que fez investigação sobre a prevenção desses problemas no futebol inglês.
O especialista, que colaborou com algumas ONG britânicas que atuam na prevenção da fraude, afirma à EXAME que “a associação a um clube da Premiership é boa publicidade para outros negócios do portefólio. Os investidores ricos, domésticos e estrangeiros, também querem deter um clube por vaidade. É uma espécie de ativo em troféu”. Porém, podem existir motivações mais sinistras. Um relatório técnico da Comissão Europeia sobre os riscos de branqueamento de capitais e de financiamento ao terrorismo na UE, divulgado em julho, afirmava que “o nível da ameaça de lavagem de dinheiro relacionado com o futebol é considerado significativo”. Um dos casos apontados pela Comissão Europeia que exemplificava essa vulnerabilidade foi a Operação Matrioskas, uma investigação da Polícia Judiciária, concluída em 2016, que detetou a presença de máfias russas em escalões secundários do futebol português. No entanto, esse processo que incidia em suspeitas de evasão fiscal e de branqueamento de capitais viria a ser arquivado pelo Ministério Público já neste ano.
A associação a um clube da Premiership é boa publicidade para outros negócios do portefólio. Os investidores ricos, domésticos e estrangeiros, também querem deter um clube por vaidade.
Também em Inglaterra, a atual “terra prometida” do futebol, as autoridades estão atentas. Arjun Medhi recorda que um comité do parlamento do Reino Unido concluiu que “os clubes ingleses são vulneráveis ao branqueamento de capitais, devido ao maior envolvimento de mecenas ricos e à falta de regulações efetivas”. O consultor salientou casos como o de Vladimir Antonov, o antigo dono do Portsmouth, que conseguiu comprar o clube, apesar de estar impedido pelo regulador financeiro de fazer negócios no Reino Unido. Já o Manchester City chegou a ser detido por Thaksin Shinawatra, apesar das críticas da Amnistia Internacional e da Human Rights Watch, devido a suspeitas de que este antigo primeiro-ministro tailandês, derrubado num golpe de Estado, estivesse ligado a casos de violação dos Direitos Humanos e de corrupção.
Tal como noutros setores, o recurso a offshores é uma constante no investimento estrangeiro no futebol. “A maioria dos clubes de futebol da Premier League é detida por empresas registadas em segredo em paraísos financeiros offshore, tornando muito difícil verificar quem são os verdadeiros donos dos clubes de futebol e a origem da sua fortuna”, acrescenta Medhi.
O futebol como investimento financeiro
O início da era dos magnatas donos da bola até pode ter tido intenções que não o racional económico do negócio. Porém, esse plano de jogo tem sofrido algumas mudanças nos últimos anos. “O futebol tem sido visto como um investimento de vaidade que traz fama e, com alguma esperança, retorno financeiro”, refere Jason Traub à EXAME. Mas o presidente-executivo da 23 Capital, uma firma especializada no financiamento e na assessoria a clubes de futebol, nota mudanças nos últimos anos: “Há um mundo de diferença entre o que é atualmente o financiamento do futebol e o que acontecia há dez ou mesmo há cinco anos.” Talvez por esta razão o futebol atraia cada vez mais empresários norte-americanos que conseguiram ganhar dinheiro nos desportos mais populares nos EUA.
O líder da 23 Capital, empresa que disponibilizou o financiamento na transferência de João Félix, observa que há uma maior sofisticação financeira no mundo do futebol: “Os maiores níveis de receita gerada pelos direitos televisivos e pelas comissões de patrocínios contribuíram definitivamente para a entrada de fluxos de liquidez na indústria. À medida que estes valores subiram nos últimos dez anos, também o nível de sofisticação financeira do setor aumentou.” Jason Traub acredita que isso ajudará a trazer mais investidores financeiros para o desporto-rei. E alguns dos gigantes dos mercados já estão atentos ao que se passa nos relvados.
Os maiores níveis de receita gerada pelos direitos televisivos e pelas comissões de patrocínios contribuíram definitivamente para a entrada de fluxos de liquidez na indústria. À medida que estes valores subiram, também o nível de sofisticação financeira do setor aumentou.
Um dos principais acionistas da 23 Capital é George Soros, um dos gestores de hedge funds mais conhecidos do mundo, famoso por ter batido o Banco de Inglaterra em 1992. E no A.C. Milan, outro dos investidores mais temidos dos mercados, Paul Singer, também dita a tática financeira. Depois de o anterior dono dos rossoneri, o empresário Li Yonghong, ter falhado no pagamento de dívidas, o gestor que é conhecido como o “abutre da Argentina” tornou-se dono da equipa. O plano é aumentar o valor de mercado para vender o clube, nos próximos anos, com um lucro significativo.
O estudo da Soccerex conclui que “o futebol nunca foi tão popular e tão rico e o jogo continua a crescer e a cruzar fronteiras. Os administradores do futebol estão constantemente à procura de formas de alavancar o seu vasto público e de melhorar a relevância e as oportunidades comerciais. Assim, parece ser lógico que os maiores clubes do mundo continuem a reunir ativos, a acumular riqueza e a tornar-se investimentos mais atrativos”. Por mais prestígio ou fama que se consiga ao ser um dos donos da bola, investidores financeiros como Soros e Singer não costumam falhar ocasiões claras para faturarem e adicionarem mais valor ao seu palmarés financeiro.
De onde vêm os investimentos
EUA
Dos clubes do top 30 do ranking da Football Finance, sete são controlados por empresários dos EUA. Os investidores desta origem têm uma preferência pela Premier League. Clubes como o Arsenal, o Manchester United e o Liverpool são detidos por norte-americanos que trazem já a experiência de gestão de grandes equipas dos desportos mais populares nos EUA. Na lista dos 100 clubes mais poderosos, os norte-americanos controlam 18.
China
O Presidente chinês, Xi Jinping, é adepto de futebol e tem incentivado o desenvolvimento do desporto no país, alimentando a ideia de vir a organizar um mundial de futebol. E é da China que vêm também muitos donos de clubes. Detêm três clubes no top 30 do ranking da Football Finance: o Inter de Milão, o Wolverhampton e o chinês Guangzhou Evergrande. No grupo dos 100 clubes mais significativos do globo, os investidores chineses controlam 13 emblemas.
Reino Unido
A Premier League é o alvo preferencial dos magnatas que querem investir no futebol. Além das compras norte-americanas, também há investidores do Médio Oriente e da Rússia a controlarem os clubes mais poderosos. O xeique Mansour é o rosto de Abu Dhabi que detém o Manchester City. Já Roman Abramovich é o dono do Chelsea. Mas ainda há gigantes da Premier League com donos de sotaque britânico, como é caso do Tottenham, controlado pelos milionários Joe Lewis e Daniel Levy.