À medida que o Netflix se concentra cada vez na produção de conteúdos originais e aumenta a velocidade de produção, há uma preocupação redobrada com a qualidade desses conteúdos e com os critérios que guiam as decisões criativas. Mitch Lowe, que abandonou a empresa em 2003, relativiza o problema, numa conversa à margem da conferência Vertex, realizada na Alfândega do Porto.
“A filosofia do Netflix é que há sempre alguém que irá gostar de algo. Há uma audiência para tudo. Vamos fazer uma grande variedade [de filmes e séries] e alguém irá encontrar algo de que gosta. É diferente da HBO, que faz apenas algo que sabe que será muito grande. Ambos os modelos têm taxas de falhanço semelhantes”, explica, a seguir à sua apresentação. “Temos de nos preocupar com a qualidade, mas hoje há um renascimento da comunidade criativa nos media. Não apenas Netflix, mas Hulu, Amazon… Todos estão a contratar guionistas e realizadores para fazer novas histórias. E claro que haverá muito lixo.”
O Netflix já não é apenas uma plataforma de streaming. É também um mega-produtor. Este ano, deverá gastar mais de seis mil milhões de dólares em conteúdos próprios, estimando chegar a cerca de mil originais no final do ano. Um orçamento semelhante aquilo que a gigante Disney gasta em programação não-desportiva.
Para além de questões sobre qualidade, pode argumentar-se que algumas decisões criativas passaram a estar mais condicionadas por critérios comerciais. Esse equilíbrio entre aquilo que se quer fazer e aquilo vende sempre existiu, mas nunca uma empresa teve tanta informação sobre aquilo que gostamos. O Netflix sabe quando pausa ou anda para trás num filme ou quando desiste de um episódio de uma série. Sabe que cores deve usar e que ritmo deve uma série ter. É famosa a história de House of Cards: cruzando o histórico de utilização e preferências dos seus subscritores, o Netflix já sabia que uma série realizada por David Fincher e protagonizada por Kevin Spacey seria um sucesso.
Essa informação é cada vez mais minuciosa. Podem as decisões criativas tornarem-se escravas de um algoritmo? “A comunidade criativa não gosta de que lhes digam como fazer um produto que vende. Mas há fórmulas que ajudam. Nicolas Cage é a estrela de cinema com maior retorno sobre o investimento que existe. Contrate o Nicolas Cage para todos os filmes de ação ou drama que faça e vai ganhar dinheiro”, afirma Mitch Lowe, hoje presidente da MoviePass, um serviço de subscrição para bilhetes de cinema.
O empresário foi convidado pela Porto Business School para a conferência Vertex, onde recordou os desafios da fundação do Netflix e os fatores que permitiram que o projeto fosse bem-sucedido. “Os nomes mais populares que havia para empresas tinham fruta. Decidimos escolher Netflix, porque estávamos a tentar arranjar dinheiro em Paris e um tipo disse “let’s watch a flick” [vamos ver um filme]. A alternativa era Movies by Mail…”, recorda Lowe. Fundada em 1997, inicialmente a empresa não era obviamente uma plataforma de streaming. As pessoas encomendavam DVD e eles eram-lhes enviados por correio. “Ninguém acreditava que iria funcionar. O meu filho achou que era uma ideia estúpida. “Há blockbusters em todo o lado”, disse-me ele.”
E, de facto, o futuro poderia ter sido muito diferente. Em 2000, o CEO do Netflix propôs ao Blockbuster que comprasse a sua empresa por 50 milhões de dólares. O negócio foi recusado. Hoje, o Netflix vale mais de 150 mil milhões, dois terços do PIB português, e tem mais de 130 milhões de subscritores. O Blockbuster? Acabaria esmagado pelo peso da Internet. Hoje, já só existe uma loja nos EUA.
O sucesso foi uma surpresa? “A determinada altura, fizemos apostas sobre quão grande ficaríamos e a minha aposta foi 1,7 milhões de subscritores. Sim, fiquei muito surpreendido”, lembra Mitch Lowe.
Para o futuro, reconhece que ninguém sabe exatamente qual será o caminho. Mas existem algumas pistas à vista. Os produtores de conteúdos terão de gerir um público com uma capacidade de atenção inferior a um peixinho de aquário, sabendo que as pessoas continuam a adorar histórias e a amar ou odiar personagens. Além disso, depois de termos saído de um mercado altamente concentrado nas grandes produtoras, a fragmentação que se assiste nos serviços de subscrição pode estar a ser excessiva e não se deve excluir a hipótese de voltarmos a assistir a um movimento de concentração. “Nem eu nem os tipos do Netflix sabemos para onde isto vai. Só sabe quando tenta”, assume, com a imagem da personagem principal do filme “Brave” como pano de fundo. “Não tenham medo de algo novo.”