Colapso de empresas, destruição da confiança dos investidores, retração da economia. Por detrás dos grandes escândalos financeiros e de empresas várias questões se colocaram. Uma delas é: então e os auditores? Enron e Lehman Brothers, nos Estados Unidos. BPN, BPP, BES e Portugal Telecom (e, mais recentemente, o Banif) em Portugal. Ou a queda recente da Abengoa, em Espanha. Todas estas empresas e bancos tinham revisores oficiais de contas e auditores. Tal como as empresas portuguesas que contrataram swaps, que se revelaram em alguns casos catastróficos para as suas contas.
A desconfiança instalou-se e várias respostas legislativas surgiram a nível internacional para tentar resolver algumas falhas identificadas. Mecanismos de controlo foram introduzidos. Mas o que é certo é que o discreto e recatado papel de auditor saltou para os holofotes dos governos, legisladores e opinião pública. E investidores.
Mas as mudanças não são pacíficas. Em Portugal, a transposição para a legislação nacional de uma diretiva comunitária está a provar-se polémica desde o início até ao fim. O novo Regime Jurídico da Supervisão de Auditoria entrou em vigor a 1 de janeiro de 2016. Mas promete continuar a dar que falar.
O principal fator de discórdia centra-se na entidade escolhida para escrutinar o sector: a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM). Entre os que torcem o nariz ao novo regime está a Ordem dos Revisores e Oficiais de Contas (OROC), que perde poder para o novo superpolícia dos auditores. Mas não só. A Associação de Empresas Emitentes (AEM) também mostra preocupação por ser criada esta estrutura. “A AEM considera que a supervisão dos auditores deveria ser atribuída a uma entidade autónoma, sem outras responsabilidades que não a supervisão da atividade de auditoria, e que pudesse assegurar a total independência no exercício da respetiva atividade de supervisão”, diz Abel Sequeira Ferreira, diretor executivo da AEM. E frisa que, “de acordo com o estudo mais recente sobre esta matéria, em 22 países da União Europeia analisados, apenas dois Estados criaram estruturas integradas no regulador do mercado de capitais para a supervisão pública dos auditores (e trata-se de casos com uma cultura regulatória e de supervisão completamente diferente do caso português)”.
Superpolícia
Para começar, a CMVM tem fama de pecar por excesso de zelo. Por exemplo, os emitentes de títulos no mercado português queixam-se, muitas vezes não publicamente, do facto de o regulador exigir informação e documentação excessiva. Os comentários, nos bastidores de eventos e à margem de entrevistas, são de que o polícia da Bolsa é exigente. No entanto, a quantidade de informação e documentos pedidos nem sempre significa uma maior proteção dos investidores. Veja-se o caso do colapso do Banco Espírito Santo e do escândalo da Portugal Telecom…
Mas essa exigência e escrutínio aplicados agora aos auditores estão a levantar preocupações. A CMVM já se tem vindo a preparar há algum tempo para o novo papel de superpolícia. Criou um novo departamento para a área de supervisão de auditoria e começou a recrutar a equipa, que arranca com 10 pessoas e deverá subir para 15 no final de 2016. Esta nova divisão conta com um diretor e um diretor-adjunto. A vice-presidente da CMVM, Gabriela Figueiredo Dias, tem o pelouro deste novo departamento. No início de dezembro, o regulador estava a finalizar o processo de recrutamento. Foram cerca de 400 os candidatos interessados em ingressar neste departamento. É também neste departamento, que se situa na sede da CMVM, na Rua Laura Alves, em Lisboa, que juristas irão preparar os processos para enviar para o departamento de contencioso.
O site do supervisor passa a ter uma área reservada à auditoria. E uma base de dados da OROC irá ser transferida para o site da CMVM, com os nomes dos auditores registados. Depois, a CMVM vai acrescentando os auditores que for registando. Entretanto, e dado que a Comissão não tem financiamento do Estado, os custos da nova divisão serão suportados com a cobrança de taxas às empresas do sector, à semelhança do que sucede com os intervenientes do mercado de capitais.
Incómodo
Um dos problemas evidentes na anterior supervisão prende-se com o facto de a OROC fazer parte do supervisor: o Conselho Nacional de Supervisão de Auditoria (CNSA). Ora, um dos pilares do novo regime comunitário de supervisão de auditores é precisamente um aumento da supervisão e o reforço da independência. A nova diretiva impõe a independência da autoridade de supervisão de auditoria e novas regras de acesso e exercício da atividade. Tudo com vista a um aumento da transparência e rigor no reporte financeiro e recuperação da confiança e proteção dos depositantes, investidores ou segurados.
Havia várias hipóteses em cima da mesa para introduzir um novo regime de auditoria com um supervisor independente. Poderia ser preservado o CNSA, sem a OROC e com ajustamentos na sua estrutura de governação. Poderia ser criada uma nova autoridade de supervisão. Ou poderia ser atribuída a supervisão a uma autoridade já existente, que foi a opção do governo.
Esta hipótese respondia a alguns requisitos. Por um lado, não fariam parte do supervisor representantes da profissão. Por outro, seriam ultrapassados os constrangimentos existentes no CNSA em termos de haver recursos próprios para supervisionar o sector. E também se mostrava uma opção mais económica e que permitia, de um modo mais rápido, ultrapassar as questões legais inerentes à criação de um supervisor de raiz.
“No tocante à competência para a supervisão, a solução da nova lei significa a falência do modelo consorcial em que assentava o CNSA, sem staff nem recursos próprios”, diz Paulo Câmara, sócio da Sérvulo & Associados. “Deste ponto de vista, a atribuição de poderes de supervisão à CMVM constitui a saída mais fácil de aplicar na prática, dada a experiência mantida pela Comissão no registo e supervisão de auditores.” E frisa que “para os auditores que atuam em diversas áreas do sistema financeiro, a concentração de poderes num único supervisor representa certamente uma solução mais cómoda e mais prática”.
Assim, passa a caber à CMVM o registo de ROC e SROC (sociedades de revisores oficiais de contas), avaliar a idoneidade, verificar a organização e os meios e instruir e decidir processos sancionatórios. O controlo de qualidade dos auditores, parte em parceria com a OROC, também é uma das funções da CMVM. Mas esta é, sem dúvida, a última e única responsável pela supervisão do sector com possibilidade de intervir diretamente sobre os ROC e as SROC em quaisquer matérias.
“A falta de divulgação e debate preliminar que esta legislação teve leva a que outros intervenientes no corporate governance das empresas, como seja os seus órgãos de fiscalização, e que viram as suas responsabilidades aumentar de modo substancial, estejam ainda mais longe de ter uma noção exata daquilo que de facto mudou para eles e dos impactos que estas alterações lhes podem provocar”, aponta Jorge Costa, sócio da PricewaterhouseCoopers (PwC). “Ao contrário do que geralmente se pensa, estas alterações não impactam apenas as empresas de auditoria, impactam igualmente as outras empresas, e sobretudo os seus órgãos de fiscalização.”
Abel Sequeira Ferreira está preocupado. “O problema não é o facto de o supervisor de auditoria independente passar a ser, em concreto, a CMVM, autoridade com a qual a AEM mantém as mais cordatas relações de trabalho, mas sim a circunstância de o modelo em apreço concentrar um conjunto excessivo de poderes numa única autoridade administrativa, a qual já exerce um conjunto muito alargado de poderes, em potencial conflito de interesses com aqueles que agora lhe são atribuídos.”
Fonte oficial da OROC vai mais longe: “O novo regime, eventualmente devido à forma apressada e pouco ponderada como foi elaborado, sem o envolvimento da Ordem e com posições públicas de discordância por parte de alguns supervisores financeiros, padece de diversas fragilidades, que seria importante corrigir rapidamente.” E acrescenta que, além de “algumas disposições manifestamente infelizes”, como é a previsão de que “a CMVM possa dar ordens à Ordem”, o que contraria o quadro legislativo nacional, não foi devidamente acautelada a necessidade de um conjunto de disposições transitórias. Nomeadamente no que se refere ao acesso à profissão e à transferência do controlo de qualidade de auditores que auditam entidades de interesse público, além de “outros erros grosseiros”, como “contradições entre números sucessivos do mesmo artigo ou remissões para números que não existem”.
Menos serviços, menos receitas
Uma das consequências do novo regime pode envolver menos receitas para os auditores e possíveis despedimentos. Isto porque há uma série de serviços que os auditores passam a estar proibidos de prestar às entidades auditadas. Serviços que trazem chorudas receitas. “O novo regime envolve, de facto, uma restrição importante dos serviços a serem prestados pelos auditores, para reforço da sua independência”, afirma Paulo Câmara.
“Os próximos anos vão ser difíceis para as empresas de auditoria. Vão ser anos de grandes desafios mas também de grandes oportunidades”, considera, por sua vez, Jorge Costa, da PwC. E frisa que as empresas de auditoria, “além de terem de continuar a dedicar toda a sua atenção à qualidade dos trabalhos que realizam e que serão alvo de controlos cada vez mais apertados, terão igualmente de criar mecanismos que lhes permitam substituir a sua atual carteira de grandes clientes de auditoria, porque, a prazo, irão perdê-los todos”. Ou seja, “têm de ser capazes de ser competitivas e ganhar novos clientes, que substituam aqueles que, por questões de rotação obrigatória, irão necessariamente mudar de auditores”. Por outro lado, “o número de propostas que irão ser efetuadas irá crescer de modo muito substancial”, porque “o sector vai estar cada vez mais regulado e os pedidos do regulador e os controlos a que os auditores vão estar sujeitos irão aumentar exponencialmente”.
Depois, com o aumento dos serviços que passam a não ser permitidos prestar aos clientes de auditoria e os limites de honorários aos serviços permitidos, “as empresas de auditoria irão ter que estratificar muito bem o mercado e definir bem os clientes onde querem de facto ser auditores e aqueles onde será preferível não o ser, não por questões de risco, mas apenas por questões económicas”.
Para a OROC, as sociedades mais pequenas serão as mais afetadas. Vai existir mais custos por via de uma maior burocracia, “sem garantia de que esse aumento de custos possa ser refletido no preço final dos trabalhos”. Tal cria “dificuldades acrescidas aos auditores, com impacto mais negativo nas sociedades de menor dimensão, o que poderá conduzir a uma redução significativa da oferta e a uma maior concentração dos trabalhos, e dos clientes, nas auditoras de maior dimensão” (as designadas big four).
Os receios são muitos. “Há uma grande preocupação com o futuro, a que acresce o receio de que a atuação da CMVM, caso enverede por uma estratégia sobretudo punitiva, assente na aplicação desmesurada de processos contraordenacionais”. As coimas elevadas (ver caixa) são “ajustadas à realidade das empresas cotadas, mas totalmente desajustadas da realidade da larguíssima maioria das sociedades de revisores e dos seus clientes”.
A OROC sustenta ainda que “há um risco muito grande” de virem a fechar empresas de auditoria, “com a concentração do mercado num reduzido número de auditoras e com o encerramento de estruturas de menor dimensão”.
Mudanças para os supervisores?
O novo regime de supervisão de auditoria levanta questões de fundo em termos do retrato das entidades de supervisão. “Este novo regime coloca de novo em questão a necessidade de encontrar soluções eficientes de unificação de competências na estrutura institucional de supervisão”, aponta Paulo Câmara.
“Este diploma faz ressurgir o tema da reestruturação das autoridades nacionais de supervisão. A evolução mais recente do sistema financeiro (nomeadamente o mecanismo único de supervisão europeia) e as crises bancárias dos últimos anos fundamentam, a meu ver, a necessidade de uma reforma em benefício de um sistema de poderes de supervisão mais integrado e coeso”, frisa. Lembra que houve um processo de consulta pública em 2010, que foi interrompido devido à fase mais aguda da crise financeira. “O tema, porém, permanece fundamentalmente em aberto.”
Travar escândalos
“O reforço das regras sobre auditoria contribui sempre, em geral, para elevar os padrões de corporate governance. Porém, o teste decisivo são as práticas, e não apenas as novas regras”, menciona ainda Paulo Câmara.
Para a OROC, “existem muitas dúvidas de que o sector venha a melhorar com o novo regime”. Diz que há a possibilidade de serem transferidas para os auditores as responsabilidades por falhas do próprio supervisor – a CMVM. “Não foram devidamente acautelados os riscos decorrentes de uma potencial falta de independência do supervisor, sobretudo nos casos em que surge simultaneamente como supervisor da entidade e do auditor.” Por outro lado, “não se compreende que tenham sido transferidas para o auditor as responsabilidades pela avaliação da idoneidade dos membros do órgão de administração, quando esta responsabilidade deveria recair sobre os próprios supervisores”. E a OROC também não antevê que “a nova regulamentação, só por si, possa resultar em maior qualidade da informação prestada pela gestão das empresas. Aliás, ela nada resolveu relativamente às exigências de prestação de contas e à responsabilização dos gestores enquanto responsáveis por essa informação”.
Algo fica patente. As empresas auditadas e as auditoras irão estar sob um maior escrutínio. Mas a própria CMVM ficará no centro das atenções. E não faltará quem vá procurar falhas na sua atuação como supervisor.
Este artigo é parte integrante da edição de fevereiro de 2016