A abundância deu lugar à escassez, o facilitismo na concessão do crédito foi substituído por regras cada vez mais apertadas ao financiamento e o que era fácil revelou-se afinal um problema monstruoso. É esta a herança que uma nova geração de gestores da banca recebeu. O dinheiro concedido às grandes empresas e ao Estado serviu para muita coisa, mas acabou por se afastar de um dos seus melhores propósitos: gerar riqueza para o país. A EXAME escolheu alguns dos que se têm destacado desde a crise financeira que se abateu sobre o mundo em 2008 A banca mudou vertiginosamente nos últimos oito anos. No mundo inteiro e também em Portugal. Desapareceram bancos, desapareceram banqueiros, os lucros esfumaram-se, houve operações que se evaporaram, a reestruturação passou a ser a palavra de ordem. No meio da desordem, uma nova geração de gestores da banca, já com um currículo assinalável, está a apanhar os cacos, a lançar novos projetos e a tentar recuperar a imagem dos banqueiros. Uma missão complicada, já que os escândalos em Portugal em 2008 no BPN, depois no BPP, a seguir no BES e mais recentemente no Banif deixaram um legado pesado.
Quem são estes gestores da banca? A EXAME selecionou 14, dos quais 11 acederam a contar as suas histórias e a partilhar a sua visão sobre o sector. Em comum, o sonho, a ambição, o interesse em enveredar no mundo da banca. Nalguns casos, desde crianças. Noutros, só mais tarde, depois de terem desejado ter outras profissões: a banca ‘roubou’ ao país médicos, pilotos de aviões, arquitetos, engenheiros eletrónicos e empresários. Quase todos trabalharam ou fizeram estágios enquanto estudavam Economia ou Gestão de Empresas. Entre os 42 e os 54 anos, têm-se destacado nos percursos que trilharam. São administradores executivos (Maria João Carioca, na CGD, Pedro Barreto, no BPI, Jorge Cardoso, no Novo Banco, e Mário Bolota, no BIG) ou mesmo vice-presidentes (Nuno Fernandes Thomaz, na CGD, e Miguel Maya e Miguel Bragança, no BCP) ou presidentes de bancos (Bernardo Meyrelles, no Deutsche Bank Portugal, Diogo Cunha, no Atlântico Europa, e Luís Pereira Coutinho, no Banco CTT). A exceção é Sérgio Monteiro, que só regressará à CGD depois de terminar a venda do Novo Banco e depois de ter passado pelo anterior governo. Não é o único a ter tido funções governativas: Nuno Fernandes Thomaz também foi secretário de Estado, mas há mais tempo.
Mais três gestores -Manuel Preto e Pedro Castro e Almeida, administradores executivos do Santander Totta, e Cristina Casalinho, presidente da Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública (IGCP) -faziam parte da seleção da EXAME, mas não quiseram dar os seus testemunhos.
Como explicam a tempestade que se abateu sobre o sector onde escolheram trabalhar? Ou, melhor ainda, como foi possível destruir tanto valor nos últimos oito anos? Segundo o Banco de Portugal, seis bancos BCP, CGD, BES/Novo Banco, BPI, Montepio e Banif registaram quase 40 mil milhões de euros em imparidades de 2008 a 2014. Os mesmos bancos somaram prejuízos de 1,8 mil milhões de euros em 2011 e o mesmo valor em 2012, 2,5 mil milhões em 2013 e 1,7 mil milhões em 2014.
O caminho para a crise
Há unanimidade no diagnóstico: não foi feita uma correta análise dos riscos na concessão de crédito, mas também houve um péssimo contexto a pesar nos bancos, que não estavam preparados para a contração económica que se verificou não só em Portugal como em muitas partes do mundo. Diogo Cunha, presidente do angolano Atlântico Europa, mas cujo percurso foi feito no Banco Investimento Global (BIG), é taxativo: “Houve uma excessiva orientação para o crescimento em volume, em detrimento da rentabilidade, o que conduziu a um peso anormal do crédito ao imobiliário e a um conflito de interesses com os stakeholders (clientes e acionistas), facilitando aprovações de crédito que não passariam por análises de risco independentes.”
O administrador do BIG Mário Bolota defende que “numa economia com uma elevadíssima dívida externa, com défices crónicos e uma capacidade de crescimento limitada pela falta de competitividade e pelo elevado peso do Estado, teria que haver necessariamente um ajustamento transversal aos diversos sectores da economia”. Este ajustamento “gerou um aumento substancial do crédito em risco e dos níveis de incumprimento”. Por isso “os bancos tiveram necessidade de reduzir o endividamento e exposição ao risco, redimensionaram a sua estrutura e adaptaram a base de custos de funcionamento e investimentos à capacidade efetiva de gerar receitas”.
O vice-presidente do BCP, Miguel Maya, que subiu à administração do banco no mandato de Carlos Santos Ferreira, em novembro de 2009, acha que é “importante fazer uma reflexão séria sobre o que se passou e aprender com os erros”, porque “o que aconteceu foi o reconhecimento, a explicitação, a destruição que estava latente num conjunto de créditos concedidos e que não suportavam qualquer abrandamento da atividade económica”. Diz que os modelos de governo da banca “eram muito frágeis, efetivamente pouco colegiais e com alavancas de motivação muito, para não dizer exclusivamente, centradas no curto prazo”. Não tem dúvidas de que se evoluiu muito, mas é adepto de “uma maior responsabilização por parte de quem toma decisões que podem afetar milhares de pessoas”. Aliás, considera que para as perdas verificadas nestes anos foi decisiva “a insustentabilidade do modelo de desenvolvimento económico português”.
Para Diogo Cunha, “os bancos em Portugal tornaram-se centros de poder, ao invés de centros de gestão. Infelizmente, os maiores, pelo menos em Portugal, acabaram todos a ser apoiados de uma forma ou de outra pelo Estado”.
Por seu turno, Miguel Bragança, outro dos vice-presidentes do BCP, mas há menos tempo no banco -saiu do Santander Totta para o BCP com Nuno Amado -, considera que para a destruição de valor e de capital na banca contribuiu uma “ilusão coletiva na sociedade portuguesa sobre a viabilidade de modelos económicos que não eram sustentáveis, porque assentavam num excesso de confiança sobre a irrelevância dos desequilíbrios externos com a introdução do euro”.
Já Pedro Barreto, administrador do BPI, com um percurso fiel ao banco fundado por Artur Santos Silva, acha que falar de “destruição de capital e de valor” é uma “versão errada e simplista do que efetivamente se passou na banca”, excluindo, obviamente, os casos de fraude. Explica que a degradação da atividade bancária aconteceu devido à “queda, num curto espaço de tempo, de 7% do produto interno bruto nacional, com impacto nos negócios das empresas, no emprego e nas imparidades dos bancos; a redução em mais de 4,5% das taxas de juro, o que originou uma forte redução da rentabilidade dos depósitos à ordem” e o facto de os depósitos a prazo terem sido “a única forma de financiamento dos bancos portugueses dando origem a carteiras muito elevadas e com margens muito negativas”. Indica ainda a “redução de crédito às empresas e particulares, com impacto ao nível da margem financeira; o aumento da concorrência pelo crédito bom, dando origem a uma deterioração das margens de crédito às empresas” e, por último, “a criação de novos impostos sobre a banca, como a contribuição para o Fundo de Resolução Europeu”.
Sérgio Monteiro, que foi secretário de Estado das Infraestruturas, Transportes e Comunicações no governo de Pedro Passos Coelho, após uma breve estada na administração da CGD, em 2011, culpa também as “práticas erradas na avaliação de risco na concessão de crédito”. O agora assessor para a venda do Novo Banco, que pretende regressar à CGD quando terminar a tarefa, em outubro de 2016, não hesita em dizer que “os incentivos estavam todos errados. Dava-se mais importância ao volume do que à qualidade e ao curto prazo do que ao médio/longo prazo”. Acrescenta que “a crise dos mercados financeiros não ajudou”, pois encarregou-se de trazer de forma mais rápida “à superfície os problemas de qualidade dos balanços”.
Para Nuno Fernandes Thomaz, vice-presidente da CGD, o que se passou resume-se à “falta de governança, falta de seriedade, falta de prudência, incompetência e incentivos errados, ganância e uma crise económica”. Tudo junto teve um “efeito explosivo”.
Também Luís Pereira Coutinho, presidente do Banco CTT, usa poucas palavras: “Má governação, essencialmente ditada pela falta de estruturas acionistas sólidas, amplificada por uma economia muito frágil e excessivamente endividada”. O que mais o preocupa, no final do dia, “é o facto de não haver capital português”. Aliás, o tema está em cima da mesa com a discussão sobre a “espanholização” da banca portuguesa. E isso “é uma fragilidade para os bancos e para as empresas. Há um problema para resolver: não temos grupos económicos com dinheiro e os que existem contam-se pelos dedos”. A somar a isto junta o facto de a economia portuguesa não crescer e as políticas fiscais não ajudarem os grupos portugueses a prosperar.
Já Maria João Carioca, nomeada para a administração da CGD no mandato que está a terminar, diz que as perdas de capital dos bancos não ocorreram apenas nos últimos anos, mas sim nas últimas décadas. “A banca simplesmente não conseguiu aplicar os mecanismos de gestão de risco e de controlo interno que teriam evitado essas perdas.”
Bernardo Meyrelles, presidente do Deutsche Bank Portugal, lembra que há um desequilíbrio grande quando se olha para o portefólio dos bancos. “O que é produtivo na banca tem baixa rentabilidade e o que é delinquente, o que leva os bancos a constituir provisões e imparidades, é muito elevado.” E não vai ser fácil equilibrar de um momento para o outro esta equação. Por outro lado, diz que na banca em Portugal ainda existe uma dispersão elevada dos recursos em participações corporativas não relacionadas com a banca e decorrentes muitas vezes de envolvimento político. O cenário está a mudar, admite, mas convém não repetir erros.
Decisões difíceis? Despedir pessoas
Os gestores com quem a EXAME falou têm-se afirmado nestes cargos de relevância numa conjuntura deprimida, com a economia em contração e um sistema financeiro mergulhado em escândalos. A redução do negócio e a necessidade de cortar custos impôs e continua a impor cortes de trabalhadores, e isso é uma das decisões mais difíceis que estes gestores dizem ter de tomar.
No caso do BCP, a redução de pessoas assumiu um peso muito elevado. Daí que os seus dois vice-presidentes, Miguel Bragança e Miguel Maya, apontem como as decisões mais complicadas as que dizem respeito à saída de trabalhadores. Medidas a que se tem de recorrer quando é preciso “assegurar a sustentabilidade das instituições”, afirma Miguel Bragança.
“A preocupação principal foi procurar ser o mais justo possível, tomando as decisões com base no mérito das pessoas e tendo presente também o enquadramento de cada caso, de cada família. É muito difícil. Em todas as decisões que tomei nesta matéria interiorizei o que estava a fazer com a plena consciência de que um dia serei eu a estar do outro lado da mesa”, conta Miguel Maya. Que acrescenta: “Para um gestor, o natural, o que entusiasma, é recrutar e desenvolver. É crescer. Reduzir o quadro é sempre uma violência, é antinatural, é uma perda que só conseguimos superar se acreditarmos que era o melhor para o futuro da instituição.” Bernardo Meyrelles recorda o ano de 2008 como um dos momentos mais difíceis por que passou, porque o Deutsche Bank teve de abandonar projetos, refazer outros e despedir pessoas. Luís Pereira Coutinho, que até janeiro de 2015 esteve no Grupo BCP, diz que o facto que mais o incomodou ao longo destes anos foi a guerra de poder no BCP, em 2007, que “teve consequências devastadoras” para o banco, os acionistas e os intervenientes diretos.
Para Maria João Carioca, as decisões que custam mais tomar “são sempre as que envolvem diretamente pessoas”. Diz que lhe incomoda “enormemente a incapacidade de decidir, particularmente quando isso se traduz numa má gestão dos ativos ou na perda de oportunidades”. Tal como lhe incomoda “o paroquialismo na gestão, a tendência para se achar que se sabe tudo ou que vale a pena perder tempo a reinventar a roda”.
Já Mário Bolota destaca a situação difícil do país, que gerou um aumento forte do desemprego, a redução da riqueza per capita e maiores carências sociais, como um dos factos que mais o incomodaram nos últimos anos. Tal como a perda de importância de Portugal, a maior dificuldade de desenvolvimento de negócios, o peso excessivo e ineficiente do Estado na economia e a fraca cultura de mérito e de igualdade de oportunidades.
Sérgio Monteiro aponta o nível de incumprimento de crédito a que se chegou na banca em Portugal. “É muito difícil quando chega o momento de executar um cliente em incumprimento, sobretudo se ele fez tudo ao seu alcance para evitar a situação.” Reconhece que “houve práticas bancárias, durante demasiados anos, muito afastadas dos fundamentos normais da banca: a confiança entre cliente e instituição, a sã e prudente política de concessão de crédito, a não cedência à tentação de apresentar resultados de curto prazo (por causa dos prémios, por exemplo)”.
O fim do BES “quer pela dimensão do problema, quer pela forma como foi gerido” é, para Pedro Barreto, o facto que mais o surpreendeu ao longo da sua carreira. E Diogo Cunha confessa o “desgosto de ver a profissão de bancário assumir a má imagem atual”.
Reuters
BANCA VAI CONTINUAR SOB PRESSÃO
Os riscos da União Bancária: aplicar as mesmas regras a todos os países e à sua banca quando as realidades são diferentes não é uma boa ideia para o equilíbrio europeu
Com tanto problema na banca e culpas atribuídas aos supervisores, poderá a pressão sobre o sector ser neste momento excessiva? E a União Bancária é ou não positiva para a banca portuguesa? Nuno Fernandes Thomaz, vice-presidente da CGD, considera que sim: “A pressão na banca continua a ser excessiva -sobretudo em termos de capital.” Diz verificar que “o calendário da União Bancária avançou como programado. No entanto, a recuperação económica e a inflação estão muito aquém do esperado. Por tudo isto tem que haver mais visão para se evitarem ainda mais dificuldades (algumas já estamos a ver…)”.
As expectativas sobre a criação da União Bancária, com o Mecanismo de Supervisão Único, são elevadas. Mas Miguel Maya alerta para o erro que é “aplicar no mesmo momento, desde o primeiro momento, as mesmas regras a todos os países”. Considera que “a realidade de cada país, por diversas razões, é muito distinta, pelo que se deverá procurar convergir para um mesmo enquadramento num prazo adequado a cada país em concreto”. E adianta: “Se, genericamente, estamos mais atrasados em termos de alguns indicadores económicos e sociais em Portugal, obrigar os bancos portugueses a partilhar o mesmo enquadramento desde o primeiro momento só pode ser destrutivo para o sistema financeiro e para a economia portuguesa. Entregaremos soberania a troco de coisa nenhuma e não creio que seja irrelevante para o desempenho económico de Portugal dispor também de grandes bancos portugueses”.
O vice-presidente do BCP diz mesmo que “o maior risco que está subjacente ao Mecanismo de Supervisão Único é pensar que podemos pôr toda a gente a correr a maratona sem previamente se prepararem as pessoas para o fazerem. Alguns países estão ou acabaram de sair de programas económicos de assistência financeira o equivalente aos cuidados intensivos e querem que essas pessoas (os bancos desses países) partam para a maratona no mesmo momento em que pessoas saudáveis (países saudáveis) o fazem, esquecendo que estes estão há vários anos preparados para o fazer”. Contudo, apesar destas considerações, diz estar “confiante e otimista”. “Portugal tem novamente empresários e cientistas de excelência, que competem à escala global”, acrescenta.
Miguel Bragança não tem dúvidas: “O modelo ainda enferma de riscos e inconsistências importantes.” O vice-presidente do BCP afirma, no entanto, ter “fortes esperanças de que quando o mecanismo estiver totalmente implementado, incluindo um Fundo de Garantia de Depósitos Europeu, tenhamos uma banca europeia mais resiliente, com um forte contributo para a integração económica europeia e para o crescimento económico”.
Pedro Barreto, administrador do BPI, receia que as regras não sejam aplicadas de forma equilibrada. E acha que a pressão regulatória sobre os bancos que aumentou muito nos últimos anos deverá continuar a aumentar.
No Mecanismo Único de Supervisão, Diogo Cunha, presidente do Atlântico Europa, vê como componente positiva o fundo de depósitos comum, sendo que o mais difícil é “o peso da regulação, especialmente para os bancos de menor dimensão”. Este é “o outro lado da moeda única”.
A administradora da CGD Maria João Carioca sublinha uma eventual “pressão excessiva sobre a banca” por via da regulação, que “importa que não seja procíclica nem desarticulada quando exercida em diferentes pontos, que não seja introdutora de desequilíbrios competitivos, que não seja dominada por consequências não intencionais. Não creio que alguém possa afirmar com confiança que a pressão que está atualmente a ser aplicada sobre a banca cumpre todos estes requisitos”. No mesmo sentido, Luís Pereira Coutinho, presidente do Banco CTT, espera que a coordenação melhore e sejam resolvidos os problemas de sobreposição de demasiadas entidades reguladoras.
“É necessário ter uma visão única a nível europeu”, diz Bernardo Meyrelles, que considera a União Bancária “vantajosa”. O presidente do Deutsche Bank diz, por outro lado, que a multiplicidade das diretivas que têm saído “é excessiva e abundante”. Acrescenta que “há uma enorme pressão nos prazos e nota-se alguma descoordenação entre o que são requisitos de regulação nacional e internacional”. Além disso, a assimetria entre a regulação na Europa e nos Estados Unidos pode levar a uma perda de competitividade dos bancos europeus.
Sérgio Monteiro, que, antes de regressar à CGD, foi contratado para ajudar a vender o Novo Banco, opina que “a supervisão harmonizada é um bom conceito, mas insuficiente se não complementado com outros instrumentos. Depois, a discricionariedade de avaliação subjetiva de alguns fatores individuais de cada banco pode também aumentar o grau de incerteza regulatória no sector”.
Este artigo é parte integrante da edição de abril de 2016 da Revista EXAME