Do consumidor que só come produtos orgânicos, sem recurso a químicos, àquele que prefere recorrer a uma alimentação sem produtos processados, passando pelo adepto da dieta crudívora, até ao novo ‘pegan’ como o Daily Mail apelidou, em meados deste ano, a “nova dieta da moda”, que junta os princípios do veganismo ao ‘paleo’. Estes são os novos consumidores, e a todos eles o mercado agroalimentar quer agradar. Embora esta tendência de consumo seja ainda recente e esteja, por enquanto, circunscrito aos grandes centros urbanos, muitas empresas estão a olhar para o filão.
Até 2006 só existia um supermercado especializado em alimentação biológica. Está localizado na zona da Grande Lisboa, junto ao Aeroporto de Figo Maduro: a cooperativa Biocoop, nascida em 1993, oferece produtos produzidos em modo biológico, certificados, sem adição de pesticidas e adubos químicos. Desde então, multiplicaram-se os espaços de retalho dedicados à alimentação saudável. Como a Miosótis, também na capital, uma das lojas mais conhecidas dos consumidores, que está prestes a mudar-se para novas instalações, com quase dois mil metros quadrados. “Outros supermercados biológicos irão ser inaugurados no Porto e em Aveiro. Está outro previsto para Faro”, enumera Jaime Ferreira, presidente da Agrobio Associação Portuguesa de Agricultura Biológica, que conhece bem o mercado.
Dentro do conceito de supermercado biológico já há uns que derivam. É o caso do Maria Granel, onde, como o nome indica, tudo é vendido a granel. Além de disponibilizar apenas produtos biológicos, o Maria Granel, localizado junto à Avenida da Igreja, em Alvalade, recupera uma forma de comercialização que tinha desaparecido. Aqui, cada cliente serve-se apenas da quantidade de que precisa e paga ao peso ou à unidade. Há chás, mel, sementes, frutos secos, passando por azeite e especiarias.
Nas superfícies da grande distribuição o espaço dedicado aos produtos biológicos, sem glúten ou lactose, direcionados para dietas específicas, está a aumentar em dimensão e no cabaz de escolhas dos clientes. Ao mesmo tempo, nascem pizarias biológicas, marcas de comida crua, enquanto novos empreendedores criam cervejas biológicas ou gomas de legumes.
“As marcas estão a corresponder aos desafios do homem e da mulher modernos e a aproveitar esta tendência de querermos ser melhores, vivermos melhor, termos mais qualidade de vida. Têm sabido compreender o mercado. Veja-se os ginásios, a oferta dos serviços hoteleiros, os livros sobre bem-estar e autoajuda para uma vida melhor, as telecomunicações que nos ajudam a ser mais eficazes, as redes sociais que nos dão conselhos sobre dieta e saúde. Nunca houve tantos nutricionistas ou dietistas como hoje”, aponta Pedro Celeste, marketeer experimentado e diretor-geral da PC&A – Consultores de Marketing Estratégico.
O especialista afirma que esta tendência não é, contudo, explicada apenas pelo consumo de alimentos. “Encontrámos uma missão. Não é a busca de perfeição, mas de otimização: queremos versões ideais de nós próprios, mais eficazes e eficientes do que o que somos. Para o consumido ‘auto-otimizado’ não há fim da viagem, mas há melhoria contínua. E a comida saudável enquadra-se nesta perspetiva”, explica.
O retalho e a restauração têm vindo a adaptar-se a esta nova tendência através da criação de áreas (como a Área Viva, no Continente) ou de produtos específicos (como os produtos Pura Vida, do Pingo Doce). Este movimento não é recente, sobretudo na restauração. Em 1998 nasceu a primeira loja de fast food em formato saudável, a Vitaminas, do Grupo Multi food. A Go Natural também já é uma “velha conhecida” dos portugueses, criada em 2004. Mas é mais recentemente que “assistimos à eleição de pratos cada vez mais orientados para a comidasaudável, muitas vezes com a introdução de nomenclaturas que valorizam essa perceção. As marcas também têm contribuído para isso, como a Compal, com o lançamento dos sumos de Pera Rocha do Oeste ou de Maçã das Beiras, que ajudam a dar um sentido mais natural, de origem e, claro, saudável a estes produtos”, diz Pedro Celeste.
O marketeer considera que este mercado está “mais apurado” e veio para ficar, mesmo que com alternância: “A pirâmide dos alimentos está sempre em alteração. O feijão fazia mal, agora faz bem, mas pode vir a fazer mal outra vez. Antes, não se devia comer mais de um ovo por dia, mas chegou-se à conclusão de que até se deve ingerir em maior quantidade. A carne de vaca já esteve ‘louca’, o peixe com ‘radiação’, as aves também já conheceram dias menos bons”, aponta. Desde que se saiba adaptar a estas flutuações constantes, o negócio da comida saudávelirá prevalecer.
Muito à custa das redes sociais, claro. “É aqui que buscamos conselhos úteis e que vemos amigos partilharem casos de sucesso. Fazem-se experiências contínuas sobre o que é dito e se aplica no caso individual. Poupa-se muito nas consultas de nutricionismo.” E foi através da partilha em rede que nomes de sementes até há pouco tempo impronunciáveis em Portugal passaram a fazer parte da linguagem comum dos consumidores, como as bagas goji e o fruto açaí, as sementes de papoila, a quinoa, a chia ou a linhaça.
Tecnologias alimentam tendência
As tecnologias irão ajudar a perpetuar este mercado, acredita Pedro Celeste. Não será apenas uma moda passageira. “A transformação do consumo e os novos hábitos alimentares vão ser determinados por um algoritmo que permitirá que, em tempo real e a partir dos seus smartphones, os consumidores recebam recomendações sobre o que devem comer a cada refeição, em particular. As novas app irão dizer-nos em que nível está o nosso colesterol, a quantidade de calorias e de gorduras ingeridas até ao momento. Vamos ter um autocontrolo permanente sobre o nosso estado de saúde, com os nossos telemóveis a preparar-nos planos alimentares e receitas de refeições baseadas numa alimentação saudável e orgânica. A tecnologia será um coach permanente”, considera.
As marcas vão querer estar, cada vez mais, neste movimento. É natural que “daqui para a frente surjam muito mais insígnias”, sublinha. Aquelas que combinarem estes fatores de atratividade (leia-se, rótulos com indicações ‘sem glúten’, ‘magro’, ‘sem adição de açúcar’, entre tantas denominações à escolha) “poderão assumir uma vantagem competitiva”.
Com a ascensão da geração millennials (nascida entre a década de 80 e o início dos anos 2000) aos mercados de trabalho e de consumo, muito influenciada pela comunicação digital e pelo ‘passa palavra’, a preocupação com os cuidados alimentares irá continuar a existir nas próximas décadas. Comentam, discutem experiências e recomendam soluções alimentares saudáveis.
A socióloga Mónica Truninger dedicou a sua tese de doutoramento à agricultura biológica e editou-a em livro, em 2010 (com o título O Campo Vem à Cidade). Através de dezenas de inquéritos a consumidores portugueses, percebeu que a mudança de hábitos alimentares mais convencionais para os orgânicos é principalmente determinada pelos “sustos relacionados com a segurança alimentar”, com a preocupação em conseguir uma alimentação que seja saudável do ponto de vista nutricional e chegar a um sabor mais apurado e natural. A preocupação com o bem-estar animal e ambiental também tem determinado as mudanças no consumo.
Os paradoxos da vida contemporânea
Tratando-se de um fenómeno que nasceu urbano e próximo das classes média e alta, está a disseminar-se rapidamente. Nos últimos tempos, refere Jaime Ferreira, dirigente da Agrobio, tem falado com produtores que lhe dizem que o negócio “tem crescido 30%”. Apesar de os preços serem mais caros, “as pessoas estão a fazer escolhas diferentes: em vez de trocarem de telemóvel todos os anos, preferem direcionar o seu consumo para outras áreas, como a alimentação”. Em média, os preços dos produtos biológicos e orgânicos são 30% superiores aos convencionais.
Estes consumidores são maioritariamente mulheres entre os 25 e os 50 anos. Em geral, a grande viragem para a alimentação orgânica dá-se com a chegada do primeiro filho, conta o presidente da Agrobio a associação que tem dinamizado, aos sábados, mais de uma dezena de mercados biológicos ao ar livre, sobretudo na região da Grande Lisboa.
Este consumo, regrado e consciente, vive, no entanto, nos paradoxos da vida contemporânea. Ao pequeno-almoço consumimos sementes de chia, ao almoço não ingerimos hidratos de carbono, mas esta preocupação é colocada de lado quando se sai à noite e se escolhe um copo de gin ou outra bebida branca. “O consumidor vive hoje um paradoxo de polaridade. A moderação deixou de ser o modus operandi. Nas nossas vidas ocupadas e em rede, as pessoas encontraram um novo modelo de autocontenção, fugindo ao meio termo e vivendo em extremos temporários. Abstinência e indulgência, consumismo e poupança, jejum e excessiva ingestão são os novos padrões de estilo de vida. É aqui que se enquadra aquilo a que os americanos chamam de alco-health: é possível combinar um estilo de vida saudável com a dose certa de hedonismo, sem evitar o álcool. Estão a chegar as bebidas ‘divertidas’, que não nos fazem arrepender ‘tanto’ na manhã seguinte”, explica Pedro Celeste. É possível, pela manhã, ingerirmos sumos detox, de fruta e legumes, e à noite bebermos uma bebida alcoólica à qual adicionamos superalimentos, como o açaí, a chia ou a clorela (das algas).
Agricultura bio: é sã e recomenda-se
Há produtores biológicos que falam em aumento de vendas na ordem de 20% e 30% em 2015. Frutos secos e cereais são áreas ainda sem resposta e que podem ser oportunidade de negócio
Só este ano, a faturação da Biofrade deve crescer perto de 30% e atingir três milhões de euros. Nunca, como agora, Henrique Gomes sentiu uma procura tão grande pelas hortofrutícolas que cultiva e comercializa. A família Gomes fundou a empresa agrícola em 1991, quando a área dedicada à produção em modo biológico era apenas uma pequena parcela de terra junto à Lourinhã, na Região Oeste. Contudo, sete anos depois, os 12 hectares de terreno foram totalmente convertidos para agricultura biológica e ditaram o arranque daquela que é hoje conhecida como uma das maiores empresas nacionais a operar neste ramo. São agora 30 os hectares que a empresa cultiva (um deles em estufa), mas precisa de recorrer a muitos mais produtores biológicos para conseguir responder à “grande procura” dos consumidores.
No ano passado foram colocadas nas prateleiras da (grande e pequena) distribuição 1800 toneladas de frutas e legumes com o rótulo da Biofrade. Mas a empresa só conseguiu colher das suas terras 400 toneladas; a restante produção vem de agricultores nacionais e estrangeiros.
Por enquanto, quase metade da produção tem de ser importada, sobretudo de Espanha e da Holanda. Henrique, de 35 anos, que gere a Biofrade com o irmão Vítor, de 43 anos, fala no esforço para reduzir as importações e “promover a produção nacional”, o que tem acontecido “com sucesso” em culturas como a batata e a cebola. “Temos mais produtores portugueses a trabalhar connosco”, explica o empresário, que conta com uma equipa de 30 trabalhadores.
Se no início do negócio uma grande parte da produção da Biofrade se destinava à exportação, hoje quase 97% das verduras e frutas da empresa ficam no mercado doméstico. “Temos mais clientes. Têm surgido novos pontos de venda, diferenciados, sobretudo na Região de Lisboa. E irão surgir mais, já nos contactaram. Penso que este acréscimo tem muito a ver não só com a maior consciência dos consumidores como também com as notícias que têm saído sobre casos e malefícios dos produtos processados e convencionais. O aumento das alergias alimentares, sobretudo nas crianças, tem levado até os médicos a recomendarem a utilização destes produtos alimentares. Há muita gente que chega à loja que temos na Lourinhã em busca de mais informação”, explica o empresário agrícola.
Em “meados” de janeiro de 2016 abrirá portas a segunda loja da Biofrade, agora na Parede (Cascais) e com uma dimensão “já mais generosa, de cerca de 250 metros quadrados” um investimento que fará parte de um pacote de meio milhão de euros que a empresa vai aplicar no próximo ano, que inclui também o alargamento do espaço de armazenamento. “A esse pacote podemos somar, nos últimos anos, outros investimentos no valor de 400 mil euros”, acrescenta Henrique Gomes.
O modo de produção biológico ocupa, por enquanto, apenas 6,1% da superfície agrícola utilizada (SAU), distribuída por 2885 produtores. Ainda parece pouco, mas em 1994 não passava de 0,2% um aumento assinalável, que demonstra o maior interesse neste tipo de produtos, sem excluir os apoios comunitários. Mesmo assim, Portugal está à frente da média europeia, que regista uma SAU em modo de produção biológica de 5,7%.
Segundo Jaime Ferreira, à frente da Agrobio, “os últimos dados, referentes a 2012, dão conta de uma área cultivada equivalente a 220 mil hectares. Mas aumentou o número de candidaturas aos apoios ao desenvolvimento rural para converter mais 78 mil hectares para o modo biológico”, contabiliza. Contas feitas, a agricultura biológica rondará 22 milhões de euros e este ano “há muitos agricultores que me dizem estar a crescer na ordem de 20%, 30%”, refere.
“Este mercado já vale, a nível mundial, mais de 50 mil milhões de euros, o que nos dá uma ideia do interesse e importância destes tipos de cultura”, afirma o dirigente associativo. Austrália, Estados Unidos e Alemanha são dos maiores produtores biológicos. A Dinamarca, por exemplo, já colocou como objetivo chegar em breve a uma cobertura de 100% do modo biológico. “Gostava que um dia nos pudéssemos comparar, por exemplo, com a Áustria. Também é um país que tem uma dimensão pequena e que não pode jogar no mercado da quantidade, optando por fazê-lo no da qualidade. E já tem 18% da sua SAU a produzir em biológico.”
Jovens estão a mudar sector
“Os novos agricultores que têm chegado à terra são, na sua maioria, urbanos e trazem consigo novas dinâmicas. A agricultura vai ser muito diferente daqui para a frente e será muito mais virada para a sustentabilidade e as preocupações dos consumidores mais conscientes”, assegura Jaime Ferreira. A associação a que preside dinamiza os ‘Mercados Agrobio’, que todos os sábados, pela manhã, assentam arraiais em praças da Grande Lisboa, mas também em Portimão, Setúbal e Aveiro. São já uma dúzia e juntam produtores biológicos de todo o país.
Estes jovens, “mais conscientes da importância de cultivar em modo biológico, têm transformado o sector”, à boleia dos fundos comunitários destinados ao desenvolvimento rural (antes o Proder, agora o PDR 2020), que majoram os apoios aos jovens empresários agrícolas se optarem por este modo de produção.
Alberto Carvalho Neto tem 31 anos e está à frente de várias casas agrícolas da família, em Trás-os-Montes, na região de Mirandela. Há 30 anos que o seu avô, homónimo, começou a fazer agricultura em modo biológico, quando ainda nem sequer existia este conceito. Hoje, o neto mantém a herança, tal como os desafios que esta implica. É que fazer agricultura biológica tem de ser “uma aposta a médio e longo prazo”. Desengane-se quem investe no modo de produção biológica “porque está na moda”. Não é o bastante para ter sucesso. “Há muitas empresas agrícolas que, vendo o aumento do consumo, convertem as suas produções. Mas não fazem as contas. Não percebem que existe uma diminuição da produção. E nem sempre é verdade que os preços do biológico sejam mais altos. Até porque, se é certo que existem subsídios de apoio à produção biológica, por outro lado os produtores têm de pagar uma percentagem sobre o que vendem por conta desse apoio”, explica o empresário agrícola.
A região transmontana é a que mais jovens produtores biológicos tem. São quase 750, mesmo que muitas das explorações sejam de pequena dimensão, como é apanágio do Norte do país. A grande maioria da SAU biológica no continente localiza–se no Alentejo (60%) e na Beira Interior (25%), segundo o Relatório do Estado e do Ambiente de 2014, do Ministério da Agricultura. As pastagens predominam (61,8%), à exceção de Trás-os-Montes, onde as áreas de olival (33,5%) são predominantes, e da Beira Litoral, onde as plantas aromáticas (48,8%) em biológico têm maior peso. No que diz respeito à produção animal, os ovinos e os bovinos são as principais espécies em produção biológica (os primeiros com 36,5% e os segundos com 27,5% do respetivo efetivo nacional), criadas por um milhar de produtores.
À frente da sociedade agrícola Branco Carvalho Neto, Alberto tem de gerir circuitos de produção integrados, em que todas as produções trabalhem umas para as outras, desde o olival ao amendoal, passando pelo castanhal, à produção de maçã e pera, e ainda pelo gado (ovelhas e vacas). Para alimentar e enriquecer um olival “é preciso plantar, no meio, leguminosas e tremocilha, que tem de crescer e ser enterrada. E depois tem de entrar o gado, na altura certa, nem antes nem depois”. O ecossistema tem de ser rico, e isso implica conhecimento e dinheiro. “Não é difícil trabalhar para três ou cinco anos; o difícil é trabalhar para 10 ou mais anos, quando as terras precisam de repousar. Por isso é preciso saber muito bem como conseguir eficiência e, mais importante, é preciso estar sempre a investir”. Incluindo em sistemas de regadio, menciona.
Alberto Neto Carvalho, que é também vice-presidente da Interbio, a outra associação do sector, e está à frente da Associação de Jovens Empresários Portugal-China (AJEPC), gere um negócio que produz marcas como Azeite Casa Valbom, Origens e Estacal. A produção das suas explorações destina-se aos mercados de exportação (70%), alimentando, cá como lá, grandes superfícies e pequenas lojas dedicadas aos produtos biológicas. O negócio agrícola vale dois milhões de euros e está a crescer.
A certificação da produção “não é difícil de obter. Até porque somos nós, produtores, que temos de contratar as empresas certificadoras e somos nós que lhes pagamos. Penso que para haver uma maior moralização do processo devia ser o Ministério da Agricultura a fazer esse trabalho”, defende o jovem empresário agrícola. Já para Henrique Gomes, da Biofrade, o método atual já “está testado. Existe um caderno de encargos europeu. É o mínimo exigido e é o recomendável: esta agricultura tem ganho terreno porque também é uma prática de confiança. E é assim que se deve manter”. Jaime Ferreira explica que existem 11 empresas certificadoras e que, com o aumento da concorrência, têm “surgido práticas de certificação mais diferenciadas e com uma nova abordagem. Para se ser certificado é, de facto, preciso responder a práticas exigentes, mas não pode ser de outra maneira. Contudo, quem chega agora à agricultura tem mais conhecimento, está mais preparado para responder às questões de qualidade e segurança”, refere.
Nem só de agricultura vive o sector
Os novos agricultores biológicos olham para as suas explorações com uma “perspetiva multifuncional”, onde, além da prática agrícola, incluem a venda direta de produtos, acrescentam a vertente de turismo (rural e sustentável) e abrem as portas ao público. É o que acontece na Herdade do Freixo do Meio, em Montemor-o-Novo, uma exploração conhecida de muitos portugueses: recebe de braços abertos quem a visita e, duas vezes por ano (nos dias 25 de abril e 8 de dezembro), promove dois dias de atividades abertas para centenas de pessoas. Os 440 hectares desta propriedade, a grande maioria no tradicional sistema de montado de sobro e azinho, são ainda “casa” de alguns projetos de pequenos empresários, onde se in cluem o cultivo de frutas, ervas aromáticas, mel ou artesanato.
Alfredo Cunhal Sendim, 49 anos, está à frente do negócio. Quando as terras, depois de terem sido expropriadas, voltaram para as mãos da família, em 1990, apenas produziam trigo, ovelhas e cortiça. Só em 1997 Alfredo ouviu falar de agricultura biológica. Desde aí, tem sido a sua vida. O reconhecimento do montado enquanto sistema agrícola ancestral, idealizado pelo homem, altamente complexo e diverso tem sido a sua bandeira. Numa mesma área é possível encontrar árvores, arbustos, pastagens, diferentes culturas agrícolas e animais, que interagem entre si. Desta forma o homem nunca depende apenas de uma ou outra cultura.
Para os mercados de proximidade, para grandes superfícies, como o El Corte Inglés, assim como para a loja própria em Montemor e uma outra no Mercado da Ribeira, em Lisboa, segue uma variedade de 340 referências de produtos feitos a partir de Montemor-o-Novo: de azeite a arroz, de carnes de bovino, borrego, galo ou enchidos tradicionais a patés, de cogumelos silvestres a cereais, de hortícolas frescas a biscoitos de bolota, pão, sabão, lã e peles. “Neste momento fornecemos toda a dieta mediterrânica, exceto o peixe”, explica o empresário agrícola. Atualmente já trabalham 22 pessoas na exploração, que também tem uma componente de agroturismo.
Nos últimos meses, a Herdade do Freixo do Meio juntou-se ao movimento global Consumer Suportted Agriculture (CSA), que pretende aproximar os consumidores dos locais de produção dos seus alimentos. “O objetivo é deixarmos de olhar para a comida como uma mercadoria, mas como um bem comum. E que os consumidores se reconectem de forma consciente com as formas como os seus alimentos são produzidos e percebam a complexidade inerente a esse processo”, refere o gestor daquela sociedade agrícola.
Desta forma, em todas as estações do ano os consumidores assumem o compromisso de comprar os produtos da época (em cabazes que podem ir de 2,50 euros, como o dos ovos, a 10, como o da carne de porco alentejana), enquanto o produtor “estabelece os preços mínimos possíveis”. Desta forma, os clientes sabem o que estão a consumir, e a Herdade do Freixo do Meio “tem a vantagem de poder planificar a sua produção, tem menos quebras de receitas e consegue cortar custos, como os da comercialização e distribuição”, explica Alfredo Cunhal Sendim. “A partir do momento em que se entra neste programa, os aderentes são convidados a visitar a Herdade do Freixo do Meio todos os trimestres e a participarem nas nossas atividades, assim como a darem ideias para o programa. Queremos que o Freixo do Meio passe a ser deles”, diz.
Fazer parte da economia social
A faturação da sociedade tem-se mantido estável, rondando o meio milhão de euros, “mais 100 mil, menos 100 mil”, aponta Alfredo. “Procuramos a estabilidade. Temos crescido, sim, na solvência económica, que é o nosso objetivo. Queremos fazer parte da economia social, não pretendemos seguir uma lógica de lucro máximo, vender e vender. Queremos ter sustentabilidade económica, claro, mas procuramos outras coisas: queremos dar emprego, queremos dar saúde ao solo e às produções, queremos tratar bem os alimentos”, explica.
O respeito pela Natureza e pelas práticas ancestrais de agricultura pode significar produções mais pequenas, mas potencia a diversidade. As culturas intensivas e semi-intensivas focam-se em espécies específicas e eliminam a variedade. A aposta nas práticas agrícolas biológicas promove novas culturas e está na base da promoção das variedades locais e regionais.
Jaime Ferreira, da Agrobio, aponta casos de sucesso ligados a produções tradicionais. Como a Quinta do Romeu, em Trás-os-Montes, que tem cinco mil hectares espalhados por oito concelhos de Trás-os-Montes, com montado e pastagem, incluindo 120 hectares de olival e outros 25 de vinha. Ou a Quinta da Fornalha, em Castro Marim (Algarve), dedicada à fruticultura (e derivados, como compotas), com um grande foco na produção e comercialização (incluindo exportação) de figos frescos. Ou a Quinta de Montalto, em Ourém, apostada na produção de vinho, mas também dedicada às leguminosas e às compotas, como a Quinta do Moinho Novo, em Canha (Montijo), onde o agroturismo convive com a produção de gado. “São exemplos de que se pode ter um negócio rentável e sustentável dos pontos de vista económico, social e ambiental”, refere o responsável da associação.
As culturas agrícolas estão a crescer, mas ainda há muitas áreas em que faltam respostas. “Não temos produção nacional de cereais biológicos, por exemplo. Como é possível? Em 2014, pela primeira vez, conseguimos ter produção de arroz biológico nacional: 40 toneladas, produzidas por uma pessoa no estuário do Sado. Este ano serão 70 toneladas. Faltam-nos também frutos secos biológicos. Porque não apostar na cultura do pinhão, que já tem um valor acrescentado muito grande?”, questiona. E garante: “As oportunidades de negócio estão lá.”
Inovação sem aditivos
É uma tendência mundial: a agroindústria está a aproveitar novos alimentos e a criar produtos menos artificiais
Quando reestruturou o negócio para o mercado biológico, pouco depois do ano 2000, Joaquim Grilo, 71 anos, não levava mais do que três caixas de produtos biológicos para Lisboa. Atualmente, para abastecer os supermercados da capital lisboeta, seguem carrinhas cheias todas as semanas a partir da pequena aldeia de Ciborro, a quase 20 quilómetros de Montemor-o-Novo. É aqui que se situa a única fábrica de cereais e farinhas biológicas localizada em Portugal, instalada no início dos anos 80.
A unidade fabril da Herdade de Carvalhoso foi concebida para o tratamento e secagem de cereais no modo convencional (não biológico). Tendo em conta a sua capacidade de produção, chegou mesmo, nesses anos, “a competir com a então EPAC”, a Empresa Pública de Abastecimento de Cereais: “Chegavam-me aqui 100 milhões de quilos de trigo e seis milhões de quilos de arroz”, conta Joaquim Grilo, mostrando o secador e os três silos em que a empresa investiu para dar resposta à procura. “Com a liberalização dos preços dos cereais, podíamos comprar, tratar e vender os produtos sem quaisquer restrições”, conta o empresário. “Contudo, com a nova reforma da Política Agrícola Comum, em meados dos anos 90, que veio desincentivar a produção agrícola, toda a gente deixou de produzir. Ou vendia, ou fechava a empresa, ou continuava a apostar nisto”, lembra.
Preferiu continuar o trabalho e descapitalizar-se. “Podia estar rico, tudo o que tenho está aqui”, afirma, apontando para as instalações e os grandes silos, onde ficam armazenados os cereais, da Herdade de Carvalhoso. “Tenho um grande know–how, aprendi o maneio dos alimentos com os mais velhos. E percebi que tínhamos perdido uma cultura alimentar com milhares de anos, que se degradou e perdeu pelo caminho. Foi nessa altura, já depois do ano 2000, que me virei para a agricultura biológica.” A aposta passou por fabricar rações biológicas para animais, sem descurar a alimentação humana. “A produção de rações foi a forma que encontrei para aproveitar o desperdício da produção de cereais e farinhas para consumo humano. Apesar de ser tudo feito aqui, a fábrica de rações tem um circuito à parte.” Atualmente, a área animal vale 70% do negócio, com a segunda a ser responsável pelos restantes 30%. Mas é precisamente o negócio da alimentação humana que tem vindo a aumentar nos últimos tempos: “Tem crescido 20% ao ano”, esclarece o empresário.
A faturação da Herdade de Carvalhoso fixa-se em um milhão de euros. O milho, a soja, a cevada e o trigo “têm de vir de Espanha, porque cá ninguém os produz. Também vamos buscar arroz ao país vizinho, contudo agora já temos um produtor nacional”. Os legumes biológicos que chegam à fábrica para serem transformados são nacionais, “assim como o grão e o feijão”, indica.
O início não foi fácil, já que o mercado “nunca foi muito grande. É um nicho de mercado. E, olhando para esta unidade, é certo que estou sobredimensionado para aquilo que o mercado absorve. Mas está a crescer”, acrescenta Joaquim Grilo.
Para aproveitar o balanço, o empresário criou há cerca de dois anos uma unidade de desidratação de frutas e legumes um método já utilizado pelos egípcios e que outras empresas, como a Frueat, têm aproveitado para fazer negócio. Através da marca Herdade de Carvalho, a organização comercializa arroz (de diferentes tipos e com a adição de ervas mediterrânicas), leguminosas, cereais, farinhas, farelos, açúcar e cereais. A insígnia Gouchi assinala produtos mais gourmet e diferenciados, como os arrozes perfumados, as frutas desidratadas e as flores comestíveis.
Trabalham na empresa pouco mais de uma dezena de pessoas, que já exporta uma parte da produção. Naquela unidade, Joaquim Grilo já investiu “entre três e quatro milhões de euros”. Agora, diz, atravessa um impasse. É um homem de movimento, gosta de trabalhar, mas, aos 71 anos, está sem seguidores. “Isto está aqui; agora quem queira, quem tenha vontade, que pegue nisto. Eu até fico cá a trabalhar e a ensinar. Mas quero que este negócio continue”, refere.
A vantagem da inovação…
A PortugalFoods, que associa dezenas de empresas agroalimentares portuguesas e serve de plataforma de internacionalização, apresentou as últimas tendências do sector mundial. Além da redução e da otimização do desperdício, a aposta nos alimentos saudáveis é uma das novas bandeiras da agroindústria, que inclui ainda a valorização de novos ingredientes, com sabores autênticos e menos artificiais.
Com maior preocupação com a saúde física e mental, este sector está a abrir portas a novos ingredientes, incluindo os superalimentos (como o trigo, o grão freekeh e a chia), e outros alimentos com baixo teor de sal, açúcar e gordura.
O sector “centra-se no consumidor que, ao estar mais informado, procura produtos com este tipo de posicionamento. Há ainda outros fatores de cariz externo que atuam como força motriz, como a pressão da regulamentação (como acontece no caso da redução do sal) e a pressão da informação, por via das redes sociais, bem como de necessidades específicas, como as intolerâncias alimentares”, explica Isabel Braga Cruz, responsável pela Divisão de Conhecimento da PortugalFoods.
A associação empresarial tem em desenvolvimento um projeto subordinado às tecnologias emergentes, o Noveltec, num consórcio misto, com o envolvimento de universidades e da indústria, que aborda o processamento óhmico (forma de aquecimento dos alimentos) ou por alta pressão enquanto alternativas ao clássico processo de pasteurização. O objetivo, explica Isabel Braga Cruz, “é encontrar produtos com propriedades nutricionais e organoléticas superiores”.
A aliança entre produtores, indústria e universidades está a abrir caminho a novos projetos de qualidade e diferenciados. Que não têm de passar, propriamente, por grandes processos de transformação. Às vezes, até saem assim da terra. Em Vila Nova de Gaia, o Cantinho das Aromáticas, que se assume como “o único projeto de agricultura biológica urbana a produzir plantas aromáticas na Europa Ocidental” (palavras do seu mentor, Luís Alves, que lançou o negócio em 2003), em parceria com a Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e a Escola Superior de Biotecnologia da Católica do Porto, lançou a marca Bio Infusão Premium. Este consórcio, à semelhança do que acontece com os vinhos, pretende criar lotes de chás de qualidade através do apuramento da utilização das matérias-primas (escolhidas, por exemplo, consoante a época da colheita, o tipo de corte, entre outras condições). Este projeto, onde estão a ser investidos 258 mil euros, até já deu frutos: algumas das referências, nomeadamente o lote reserva de infusão de limonete biológico, já ganhou vários concursos mun diais de inovação agroalimentar, incluindo o concurso Taste Awards, em 2014 e 2015.
Também em laboratórios universitários, mas desta vez espalhados pela Europa, foram concebidas as gomas saudáveis da Doctor Gummy, empresa do engenheiro químico aveirense Nuno Santos, que começam agora a ser comercializadas em Portugal, mas também em mercados como o francês. Estas guloseimas, normalmente regadas a açúcar, glúten, lactose, corantes e conservantes artificiais, são feitas e aromatizadas à base de fruta, legumes e vegetais. Cenoura, espinafre e abóbora dão cor a estas gomas, enquanto, no caso dos chocolates, o leite é substituído por farinha de soja. A Doctor Gummy arrecadou recentemente, na Dinamarca, o prémio Health Innovation num concurso dedicado a negócios criativos.
Foi também num laboratório que nasceram os suplementos alimentares Algo. “A indústria da saúde e bem-estar superou a indústria farmacêutica e é agora um negócio mundial avaliado em 3,4 biliões de dólares. Mas não é o negócio da suplementação que nos alicia e nos move, mas sim o negócio da simplificação de uma indústria que, a nosso ver, se tornou complicada demais”, sustenta Gabriela Balivet, CEO do laboratório Biocol, que em abril lançou nove suplementos que pretendem colmatar alguns dos mais recorrentes problemas da sociedade moderna, como cansaço, stress, insónia, sobrecarga do fígado, sistema imunitário, entre outros.
Até agora foram vendidas mais de 10 mil unidades dos suplementos Algo, mas a responsável da Biocol não avança números de faturação, referindo apenas que a variedade mais vendida até agora é a que está direcionada para os excessos alimentares.
Quando a marca estiver consolidada, Gabriela Balivet espera que venha a pesar 10% no volume de negócios do laboratório que dirige. “Sentimos que os consumidores de hoje, que procuram soluções éticas, inovadoras e sedutoras, pouco ou nada se reveem com a oferta que existe atualmente nas prateleiras da suplementação”, refere a CEO da Biocol para justificar a aposta neste segmento.
… e a aposta na certificação
Os produtos biológicos e alternativos estão a mudar as prateleiras dos nossos supermercados. Na zona dos laticínios, nunca vimos tanta oferta de bebidas à base de soja, por exemplo. Entre agosto de 2014 e o mesmo mês de 2015 (dados da Nielsen), venderam-se 18,8 milhões de litros de bebidas de soja em Portugal, mais 19% face ao período homólogo do ano ante rior (quando também já se tinha registado um aumento de 8%). Marcas como a belga Alpro ou a espanhola Vive Soy já são conhecidas dos portugueses. Contudo, faltava uma insígnia made in Portugal.
Desde 2014, a partir de Vagos, distrito de Aveiro, a Nutre (empresa que atua na agricultura, extração, biocombustíveis e produtos alimentares em países como o Brasil e Moçambique) produz leite de soja com rótulo nacional. Os grãos de soja chegam de outras regiões, como a Ásia, mas são transformados em Portugal com a certificação de origem não transgénica. A Nutre fabrica esta bebida 100% vegetal para as marcas da distribuição, mas tem a sua própria insígnia, a Shoyce, que, além de ser vendida em Portugal, também segue para Espanha, China e Taiwan.
Outro mercado que também está a crescer em Portugal é o das cervejas artesanais, também elas orgânicas. Contudo, até há pouco tempo não havia nenhuma com certificação, isto até à chegada da Lucy, a primeira cerveja biológica certificada. A bebida, produzida na Trofa (Porto), ainda só está disponível em alguns pontos de venda, como os restaurantes Taberna Tosca ou Salão Ideal. Durante o verão correu algumas feiras e festivais de música numa rulote (de madeira orgânica) com o nome da empresa que a fez nascer, a We Are All Skulls Independent Brewery, que tem como mentores os empresários Luís Mileu e Mário Silva. Ainda tem produção limitada, mas o objetivo é crescer. Uma garrafa Lucy pode custar quatro euros, mas, além do modo de produção artesanal, o preço ainda reflete os custos de importação da matéria-prima.
Foi no cruzamento entre inovação e marketing que Cristina Teixeira decidiu lançar a linha de sumos desintoxicantes Detox Original, em setembro de 2015, e na qual investiu 100 mil euros. Purificar, energizar e eliminar são os propósitos de cada um dos três sumos concebidos por Cristina Teixeira, que tem um percurso ligado à gestão e ao marketing, e o monge indiano Dada Dhyanananda.
Neste momento, o Detox Original está disponível em cerca de 40 pontos de venda, entre os SPA do Grupo Pestana, clínicas, restaurantes vegetarianos, consultórios médicos e nutricionistas, além da loja online. Mulheres urbanas entre os 30 e os 50 anos, das classes média e média/alta, são as principais clientes dos sumos que Cristina Teixeira faz questão de salientar que se trata de um programa detox.
Pioneiro dentro dos sumos (detox e não só) foi a marca SumoPontifice, lançada no final de 2011 e posicionada para os hábitos vegan e crudivoristas (comida crua). Os três fundadores tinham por hábito tomar regularmente sumos 100% de frutas e vegetais e em Portugal não havia oferta, por isso decidiram lançar-se nesta categoria para poderem manter o mesmo tipo de hábito ao mesmo tempo que se aventuravam num novo negócio.
Neste momento, a SumoPontifice tem apenas um ponto de venda (no Alegro de Alfragide), mas no passado chegou a somar quatro lojas. Andreia Bedoya, uma das sócias da marca, não avança dados de vendas, mas refere que este tipo de negócio pode vir a ter piores dias. “Acreditamos que enquanto o governo taxar a 23% o IVA desta oferta o negócio não irá desenvolver–se da melhor forma. Além disso, ainda continua a ser um nicho que se está a desenvolver, e por vezes o preço põe em consideração a escolha do consumidor”, sustenta.
Retalho e restauração a vender saúde
Nunca houve tanta oferta de supermercados e restaurantes saudáveis. Pioneiro Miosótis muda de dono e de localização. Grande distribuição vende cada vez mais neste segmento
Corria a revolucionária década de 70 quando um armazém de venda de cereais avulso, instalado em Lisboa, na Rua do Príncipe (atual Rua 1.º de Dezembro), dá origem a um supermercado cujo nome é inspirado nesta atividade. Está criado o Celeiro, que em 1974 abre, em frente a este supermercado, uma loja de produtos naturais semelhante às reform haus que apareciam noutras cidades europeias, para satisfazer as necessidades dos lisboetas mais alternativos.
Quatro décadas passadas, a alimentação saudável faz o caminho para se tornar cada vez mais a regra e menos a exceção, mesmo que seja uma moda que no futuro possa não resistir à entrada de uma nova estação. Multiplicam-se os conceitos na restauração e cafetarias, que prometem comida livre de tudo o que faça mal à saúde, enquanto as cadeias de hipermercados convencionais aumentam as vendas e a oferta deste tipo de produtos.
Num estilo mais informal, os mercados biológicos de rua instalam-se em praticamente todos os lugares, do tradicional Príncipe Real, passando por Alvalade, Campo Pequeno ou Telheiras. As bancadas ‘bio’ montadas na rua há muito que saíram da capital para ‘contaminar’ localizações como Loures, Amadora, Cascais, Carcavelos, Algés, Aveiro e Matosinhos.
Entre os pioneiros nos supermercado biológicos encontra-se o Miosótis, que acaba de trocar de dono e prepara a mudança da Rua Marquês Sá da Bandeira, perto do El Corte Inglés, em Lisboa, para uma nova morada próxima, na Rua Latino Coelho.
O novo espaço conta com cerca de dois mil metros quadrados, contra a loja atual, com 300 metros quadrados. “Decidi vender porque os meus filhos não estão interessados no negócio e recebi uma boa proposta de compra”, explica Ângelo Rocha, que abriu o Miosótis há oito anos e que, apesar de ter vendido o supermercado (a um cliente), irá manter-se na gerência.
O novo imóvel para onde o Miosótis se vai mudar alberga, além do supermercado, um restaurante, parque de estacionamento próprio e um auditório, onde irão ser desenvolvidas aulas de culinária, palestras e debates em torno das temáticas da vida saudável. Ângelo Rocha revela que ao longo destes anos a preocupação foi democratizar o acesso aos alimentos biológicos, desmitificando a ideia de que se trata de uma opção cara.
O gerente desfaz a ideia de que quem procura este tipo de alimentação tenha características muito específicas. “Há clientes com motivações específicas, de saúde ou ecológicas, mas a maioria são cidadãos comuns”, revela Ângelo Rocha, avançando que o número de clientes tem vindo a prosperar. No fecho de 2015 espera ter uma faturação de cinco milhões de euros, contra os quatro milhões registados em 2014.
Do associativismo na Biocoop às prateleiras dos hipermercados
Os supermercados biológicos, no entanto, começaram com o impulso da cooperativa Biocoop, em 1993, formada por 18 pessoas interessadas neste tipo de consumo.
Começou no Mercado Municipal Chão do Loureiro, em Lisboa, mas o número de sócios foi crescendo e em 1995 a Biocoop mudou-se para Figo Maduro, junto ao aeroporto, para um espaço com 500 metros quadrados. Atualmente tem cerca de três mil associados e 10 funcionários e continua a ser a referência quando o assunto são supermercados biológicos.
Foi por terem a perceção de que este é um mercado cada vez mais abrangente que as principais cadeias de grande distribuição têm vindo a alargar a oferta de suplementos alimentares, produtos biológicos, sem glúten, sem lactose, entre outros, além de desenvolverem marcas próprias para este segmento. “Em 2014, os nossos números apresentaram um crescimento de cerca de 16% e para o fecho de 2015 prevemos um crescimento de 25%”, avança um porta-voz do Continente, escusando-se a revelar a faturação desta área de negócio.
No Continente, os segmentos dos produtos biológicos e sem açúcar são os que registam crescimentos mensais constantes, enquanto os artigos sem lactose e sem glúten são os mais procurados a nível dos consumidores com intolerâncias alimentares e alergias. No Pingo Doce, por seu lado, são os produtos integrais e free from que têm cada vez mais procura, nomeadamente as referências sem glúten e sem lactose. No total, são cerca de 1200 referências no departamento Área Viva, das quais 100 são comercializadas com a marca própria com esta denominação.
“O aumento do sortido tem incidido sobretudo nos segmentos de produtos integrais, sem glúten, sem lactose, sem açúcar e biológicos”, segundo fonte oficial do Pingo Doce, acrescentando que os produtos biológicos frescos ainda são uma gama pouco expressiva, mas que está a aumentar. É sob a marca própria Pura Vida que são comercializados produtos com estas características, entre os quais o Pingo Doce destaca o pastel de nata sem glúten e os biscoitos integrais com sementes de chia.
No El Corte Inglés, “a secção de produtos saudáveis e biológicos tem crescido em relação às restantes secções de alimentação, sendo expectável um crescimento, em 2015, a dois dígitos”, refere uma fonte da cadeia espanhola de retalho, sem revelar o volume de negócios desta secção.
Os produtos hortofrutícolas são os que têm tido mais procura por parte dos clientes do supermercado do El Corte Inglés, que, à semelhança da concorrência, também tem uma marca própria para este segmento.
A Special Line abarca uma gama de produtos que vão desde as bebidas de soja, os hambúrgueres vegetarianos, as infusões antioxidantes, às sementes e doces, entre outros.
A oportunidade deste negócio a nível da grande distribuição foi identificada por dois empreendedores que em 2008 criaram o supermercado Brio (vendido ao The Edge Group em 2009) e que atualmente conta com cinco pontos de venda na Grande Lisboa. “Depois de alguns anos de crescimento mais moderado devido à forte contração do consumo causado pela crise, em 2014 alcançámos um crescimento de 16% face a 2013, like for like, com um volume de negócios a ultrapassar três milhões de euros”, refere José Luís Pinto Basto, CEO do The Edge Group, avançando boas estimativas para 2015 e 2016, devido ao regresso ao crescimento do consumo biológico em Portugal. “Em 2015 esperamos ultrapassar quatro milhões de euros de faturação e em 2016 pensamos ultrapassar os seis milhões, já contando com a abertura das novas lojas”, remata.
Durante os próximos meses, o Brio prevê abrir mais cinco supermercados, dos quais dois em Lisboa (Telheiras e Avenida de Roma) e os restantes em Aveiro e no Porto, mais uma localização no Centro do país que ainda está em negociação. O The Edge Group faz ainda a ponte para a restauração saudável com a rede de restaurantes e cafetarias Origem. “Temos quatro cafetarias e um restaurante. Duas cafetarias estão inseridas nos supermercados biológicos Brio de Carnaxide e do Chiado. O restaurante, tal como a terceira cafetaria, situam-se no Espaço Amoreiras”, explica José Luís Pinto Basto, acrescentando que o Origem gere também a cafetaria da Oeiras International School, além de ter um serviço de catering para empresas e eventos.
Em 2016, o Origem vai abrir quatro novos espaços, no Edifício D. Luís I (antigo imóvel do Millennium, no Cais do Sodré, adquirido pelo The Edge Group ), nas Twin Towers (edifícios também adquiridos pelo The Edge Group), bem como noutras novas localizações dos supermercados Brio.
“As pessoas tomaram consciência da importância da alimentação no seu bem–estar e na prevenção de doenças. A frase ‘somos o que comemos’ é hoje aceite como uma grande verdade, pelo que a procura por produtos naturais e biológicos apresenta um crescimento a nível mundial na ordem de 10% a 15% ao ano”, argumenta José Luís Pinto Basto.
Igualmente com um conceito que cruza supermercado biológico com restauração, o Biomercado e o AmorBio engrossam a oferta. No Biomercado, na Avenida Duque de Ávila, em Lisboa, tudo é biológico, desde o vinho ao papel higiénico, in cluindo as madeiras utilizadas na obra, que são recicladas. No AmorBio, também em Lisboa, na Praça de Alvalade, a ausência de químicos e pesticidas rege a escolha dos produtos que estão à venda. O projeto, lançado em 2013, nasceu, como a denominação indica, da paixão dos dois sócios fundadores pela Natureza e estilo de vida saudável.
Restaurantes com comida livre de tudo
Neste segmento há também negócio para os conceitos que se dedicam apenas à restauração, à semelhança de projetos pioneiros ligados à alimentação macrobiótica e vegetariana, como a Espiral e a Unimave (que fechou portas em 2001). Hoje, são denominações como vegan, omnívoro, raw food ou ovolactovegetariano que inspiram novos espaços, como o Nomalism, em Campo de Ourique. Neste bistrô, com 24 lugares sentados, a cozinha é regida pelos princípios vegetarianos e o conceito pretende ser comum aos clientes, para também reduzir a sua pegada ecológica no planeta.
O The Cru, por seu lado, pretende ser mais democrático, começando por se instalar na praça de alimentação de um centro comercial e posicionando-se para quem procura refeições biológicas, sem açúcar e sem glúten. Neste restaurante, no Oeiras Park, há uma naturopata em vez de um cozinheiro, porque o objetivo é que a comida faça bem à saúde, mais do que saciar a gula. Aqui, a diferenciação passa, por exemplo, por sumos funcionais anticancro, para o reforço do sistema imunitário ou para fortalecer os ossos.
Num espaço mais exclusivo, no SPA Banyan Tree, no Hotel Palácio, no Estoril, a ementa também está entregue a uma naturopata, Mariana Pessanha, que decidiu aplicar nesta cafetaria o que aprendeu no curso de Nutrição que fez em Londres. No Organic Caffe não há alimentos processados, nem glúten, nem lactose e muito menos açúcar, e o serviço está disponível também a não hóspedes do hotel.
No In Bocca al Lupo (expressão italiana que significa ‘boa sorte’), os proprietários pegaram na comida mais famosa e democrática do mundo (as pizas) para lhe acrescentar os princípios biológicos. Há muitos anos que este é o caminho de uma das proprietárias do restaurante, junto à Praça das Flores, que é também a responsável pelo que vai para o forno e é servido à mesa. Paula Castro é vegetariana desde os 18 anos e nos anos 80 começou, em conjunto com o marido, a produzir miso, o que os tornou nos primeiros produtores europeus desta pasta de soja fermentada.
A ligação das preocupações orgânicas com as pizas, essa, veio por via da avó italiana, que entre 1945 e 1957 esteve ao comando da cozinha do restaurante La Gondola, na Praça de Espanha. “O nosso restaurante é uma filosofia de vida”, responde Paula Castro quando questionada sobre a sustentabilidade de tantas opções que existem atualmente dentro deste conceito. Que a comida saudável seja eterna enquanto dure, pelo menos, a filosofia de vida.
Este artigo é parte integrante da edição de janeiro da revista EXAME