Numa altura em que muitos celebram a saída da troika, apetece perguntar: celebram o quê e porquê? O doutor Paulo Portas tinha razão quando referia insistentemente que, nos anos que mediaram a chamada da troika pelo engenheiro Sócrates e a dispensa do último cheque dos credores oficiais pela doutora Maria Luís, Portugal se tinha tornado num protetorado financeiro dos representados da troika. A questão é que me parece que ainda o é. Continuamos extremamente dependentes dos nossos parceiros da União Europeia, do Banco Central Europeu e dos credores privados do Estado, quer estrangeiros quer nacionais. Mantemos uma dívida externa elevadíssima e o Tratado Orçamental da União Europeia não dará tréguas ao necessário processo de consolidação orçamental. O nosso passado, os 20 anos de acelerado endividamento público e privado, é constrangimento suficiente para obnubilar integralmente o essencial do eventual alívio que o fim do período de visitas da troika poderia trazer.
Duas décadas de despesismo e de manifesta incapacidade em criar as bases de uma economia competitiva não prepararam o país para o atual mundo globalizado e concorrencial, nem para o desenvolvimento sustentável dentro de uma zona monetária em que os membros são Estados independentes e, portanto, com dificuldade em convencer os respetivos eleitorados em financiar membros cronicamente necessitados da poupança alheia. Ao longo de 20 anos, a evolução demográfica e o desenvolvimento de uma economia demasiado dependente do Estado conduziram a uma situação em que os portugueses se tornaram mais dependentes do Orçamento público e do financiamento externo. Os desequilíbrios, incomportáveis em 2011, eram e, em larga medida, ainda são comuns ao setor público e ao setor privado.
Ao fim dos três anos de programa, Passos e Portas, cometendo inevitáveis erros de percurso e com sucessivos obstáculos constitucionais, conseguiram reganhar a independência financeira perdida na Primavera de 2011. No processo, o país conseguiu manter suficiente coesão interna, a despeito das permanentes movimentações em contrários da extrema esquerda e dos que, à esquerda e à direita, cavaram o mar de dívida em que ainda navegamos, apresenta um setor produtivo mais competitivo e virado para o exterior, iniciou reformas importantes nos mercados de bens e fatores e permitiu o, pelo menos até agora, penoso mas crescentemente bem-sucedido ajustamento do setor financeiro. O custo tem sido enorme. É um facto. Era, porém, inevitável, dada a dimensão do ajustamento necessá rio para corrigir erros de décadas. Só que o processo não acabou. Longe disso, e a dispensa do cheque da troika só significa que o IGCP tem tesouraria suficiente para cobrir a sua falta e que a euforia dos mercados com a periferia europeia facilita o acesso a financiamento a custo historicamente baixo. Nada mais. Falta ainda um longo percurso: a economia tem de se robustecer, a reforma do Estado está por fazer, o desemprego estrutural mantém-se problemático (como já era em 2011). Como referimos em artigo anterior, a economia permanece descapitalizada e, a despeito do importante aumento da poupança das famílias, as empresas não financeiras continuam excessivamente alavancadas e os mecanismos que, num país onde os capitalistas gerem a respetiva dívida, possibilitariam a capitalização das empresas ou foram postos na gaveta pelo governo (o plano apresentado pela CGD em maio de 2012 para reforçar o capital das empresas através de mecanismos de mercado) ou tardam em aparecer (a famosa instituição financeira de desenvolvimento). É pena, pois esta é uma área em que os poderes públicos podiam e deveriam ter atuado com outra celeridade e eficácia. Do lado da Administração Pública, falta uma verdadeira reforma da mesma, permitindo fazer o mesmo com muito menos recursos dos contribuintes, melhorando a sua organização e otimizando os respetivos processos. É certo que exige capacidade de gestão, coisa que, em regra, escapou aos sucessivos ministros das Finanças, incluindo o primeiro deste governo. Mas é essencial à viabilidade futura do Estado, sejam quais forem as futuras decisões do Tribunal Constitucional.
Terminada esta primeira fase do ajustamento, o risco político interno é considerável e pode pôr em causa muito do esforço já realizado e alguns dos resultados já conseguidos. Executar um programa como o que agora temos de continuar passa também por convencer os governados dos méritos das opções tomadas e perceber que a oposição às reformas vai acentuar-se por parte dos beneficiários do status quo, que sempre clamarão pela existência de alternativas que não explicam. Há ainda um longo e penoso caminho, incontornável como correção a uma via impossível que durou tempo de mais. Todavia, esse caminho só é possível, nas atuais circunstâncias, mobilizando os portugueses, explicando os custos e os benefícios das opções que se lhes vão colocar. Sem isso, este novo patamar do ajustamento pode tornar-se politicamente impossível. E o facto é que vai ser um desafio para este governo e para os que se lhe seguirão. Digam os seus mentores o que disserem.
António Nogueira Leite
Administrador da EDP Renováveis e professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa desde 1995. Foi presidente da Bolsa de Lisboa, secretário de Estado do Tesouro e Finanças, vice-presidente da CGD e administrador do Grupo Mello
Este artigo é parte integrante da edição de julho da Revista EXAME