As memórias estão bem vivas. A viagem no tempo faz-se sem esforço. “Naquele campo jogávamos à bola. Ali brincávamos num descampado.” Há uma década que a quinta judoca mais medalhada do mundo não voltava às ruas onde cresceu. Telma Monteiro viveu até aos 17 anos no Bairro Branco, Monte de Caparica (Almada), e aprendeu cedo a defender-se dos perigos daquele que era muitas vezes considerado um dos bairros mais problemáticos da margem sul do Tejo, associado, sobretudo, ao tráfico de droga. “Quando descíamos as escadas dos prédios, era habitual vermos algum toxicodependente a drogar-se ou alguém a vender droga. Aprendi a viver com isso e evitava determinados caminhos, conforme o que se estivesse a passar”, conta a atleta, de 31 anos, que, em agosto, fez vibrar os portugueses ao vencer a sua primeira medalha olímpica, uma de bronze, no Rio de Janeiro.
Longe vão os tempos em que a judoca ficava em choque quando ouvia os atletas, com quem se cruzava nas competições, contarem que os pais lhes davam €50 para carregarem o telefone. “Para mim, isso era impensável! Eu nem sequer podia ter telemóvel”, conta, sem embaraços. Os atletas do bairro não tardaram a descobrir a estratégia ideal para lidarem com o preconceito que sentiam. “Ríamo-nos da situação e exagerávamos. Chegávamos ao balneário e dizíamos: “E quando entraram no bairro com uma bazuca?”, relembra, divertida. “Inventávamos histórias para chocar.”
A medalha de Telma Monteiro foi o culminar de um percurso repleto de desafios desportivos, mas também pessoais. O desporto é fértil em exemplos como o dela. Do incontornável Cristiano Ronaldo à mais recente estrela do futebol nacional: Renato Sanches. O rapaz que, aos 18 anos, saltou do Benfica para o Bayern de Munique, por 35 milhões de euros, cresceu na Musgueira, antigo bairro de barracas com vista para o aeroporto (hoje Alta de Lisboa).
A CHAMA ACESA
Sentada num banco corrido de madeira do Centro Social Paroquial de Cristo Rei, o mesmo em que se sentava quando ali começou a treinar judo, Telma Monteiro ressalva que o Bairro Branco não era apenas sinónimo de criminalidade, mas também de espaço para brincar. “Ao fim de semana, passávamos o dia todo na rua. Brincar às escondidas durava uma eternidade, porque éramos mais de 30 miúdos”, recorda. E, claro, não faltavam diabruras. A primeira vez que Telma Monteiro participou numa aula de judo no clube do bairro sem fazer a mínima ideia de que desporto era tinha um único objetivo: defender as amigas de umas miúdas que se haviam metido com elas no treino. Tinha 12 anos. Só voltaria ao ginásio dois anos mais tarde, aos 14, incentivada pela irmã mais velha (hoje professora de judo), que a convenceu a trocar o campo de futebol pelo tatami (tapete de judo).
O entusiasmo pela modalidade era evidente. Cansada dos fatos de judo e cinturões emprestados, decidiu trabalhar nas férias de verão no restaurante onde a mãe era cozinheira e juntar dinheiro para comprar o seu primeiro judogi.
“Eu tinha plena consciência do que podíamos ter ou não. Sabia que havia muitas contas para pagar e preocupava-me se haveria dinheiro.” Ao salário de cozinheira da mãe juntava-se o de pintor de automóveis do pai. O casal tinha três filhas, mais um filho adotivo. “Ao princípio, era complicado ir aos estágios e ver os outros comprarem gelados sem poder acompanhá-los porque não tinha dinheiro para isso.” Seria o judo a trazer-lhe as bolsas e prémios que lhe permitiram conquistar a independência financeira, logo aos 17 anos, essencial para continuar a competir e a estudar. O gosto pelos estudos, aliás, mantém-se: a atleta terminou este ano uma pós-graduação em Gestão e Marketing do Desporto, com média de 18 valores.
Ao olhar à volta, naquela que foi a sua primeira sala de treino, não deixa de notar que “os tapetes estão melhorzinhos”. Dá-lhe razão a judoca Sandra Borges, companheira de treino no Benfica, que aproveitou a boleia da vizinha de infância para voltar ao bairro onde se iniciaram na modalidade. Também o colega de equipa Célio Dias começou nos mesmos tapetes (incentivado pela mãe de Telma). A geração de ouro do Bairro Branco. “A ligação de amizade entre nós facilitou tudo. Se um ia ao treino, o outro também ia”, justifica Telma.
A atleta olímpica foi surpreendida pelo grafito na porta de entrada do centro, que continua a ocupar os miúdos do bairro com desporto e outras atividades lúdicas: a imagem de uma Telma Monteiro sorridente, com os cindo dedos da mão direita bem esticados, tantos quantos os títulos de melhor atleta da Europa que ganhou. “Se as crianças tiverem uma referência, mais facilmente acreditam que podem chegar longe. Eu acabo por ser uma e, de tudo aquilo que conquistei, isso é o mais importante.” Dos planos faz parte abrir uma escola de judo que também integre crianças carenciadas com vontade de vencer. Um desejo de superação que, para ela, “é como uma chama sempre acesa”.
ABAIXO OS HERÓIS
Tal como Telma Monteiro, Aldina Duarte, 49 anos, guarda memórias felizes da vida de rua no bairro de Chelas, na zona oriental de Lisboa, onde viveu até aos 20 anos. Apesar de ligada à área artística, a fadista também destaca o exercício físico como fundamental para resistir ao ambiente adverso de um bairro social.
“Precisamos de um corpo esperto para nos defendermos. Eu não tinha grande agilidade física mas, como era muito alta, confundiam isso com força. Foi a minha sorte”, brinca. A violência estava permanentemente à espreita. Aprendeu cedo, com os vizinhos, a saber o que era o alcoolismo ou a violência doméstica. “Quando se cresce num ambiente assim, e se tem uma mãe inteligente como a minha, chega um momento em que trocamos a inocência pela consciência. É uma questão de sobrevivência.” As memórias mais dolorosas da fadista concentram-se no período antes do 25 de Abril, até aos 6 anos, altura em que vivia sozinha com a mãe o pai morreu na Guerra Colonial quando Aldina tinha 3 meses. “Só não vivi numa pobreza extrema porque, se fosse preciso, a minha mãe passava fome para eu não passar.” Até entrar no 1º ciclo, andava sempre com a progenitora de um lado para o outro. Via-a cozinhar em algumas casas, costurar noutras e limpar mansões. “Apercebi-me muito cedo das desigualdades sociais. Passava o dia inteiro em palacetes e à noite voltava para Chelas”, recorda.
Aldina Duarte percebeu cedo, também, que “o poder de sonhar e o de estudar são inseparáveis”. “Uma pessoa que não desenvolva a inteligência não consegue, no meio de tanta adversidade, encontrar soluções para uma vida melhor” mais uma lição aprendida com a mãe, que foi sempre estudando à noite, acabando por se tornar contabilista na Função Pública.
“Trabalhar e estudar era duríssimo para ela.” Por isso, a artista é perentória: “Não gosto de heróis. Prefiro sociedades bem estruturadas que pensam no essencial para todos, sem serem precisos heróis.” Uma visão que sempre a levou a recusar “ser um petisco para tias”. “No início da minha carreira, quiseram fazer de mim ‘a pessoa pobre que venceu’, usando-me para mostrar que se pode crescer em ambientes horríveis e ser uma pessoa vitoriosa, mas não é bem assim. Não basta querer, é preciso ter uma série de condições à volta para ter uma vida saudável. Sou quem sou porque tive uma mãe que passou fome. Isso não é para ser vangloriado, é para ser respeitado.”
A COMÉDIA DA VIDA
Trabalho. Foi essa a palavra-chave que sempre acompanhou a infância e adolescência do comediante, cantor e apresentador de TV João Paulo Rodrigues, 38 anos. Era ao som da Primavera, de Vivaldi, que o pai o acordava, em Braga, quando ainda era criança. “Lembro-me de ver os meus pais, empregados fabris, a prepararem as marmitas que levavam para o trabalho.” Forçado pelo desemprego, o pai do apresentador acabaria por aceitar um lugar como engenheiro técnico em Moçambique. “Fiquei tristíssimo. O meu pai era o meu melhor amigo. No dia em que partiu, foi uma choradeira. Eu tinha 10 anos.” E os anos passaram a valer pelas férias de verão em Moçambique.
João Paulo concluiu o ensino secundário no Porto. Vivia na casa dos avós paternos, num bairro construído para os trabalhadores dos caminhos de ferro, próximo de Campanhã. Eram as mal-afamadas ilhas, naquela época associadas ao tráfico de droga. Pelo meio houve algumas hesitações académicas.
Passou um ano em Moçambique com o pai, começou a trabalhar e ponderou deixar de estudar. “Queria ganhar dinheiro e fazer as minhas coisas, mas uma tia deu-me um sermão de uma tarde inteira que me convenceu.” Acabou o 12.º ano à noite, depois de fazer a tropa. No ano em que entrou em Direito, na Universidade Católica do Porto, perdeu o pai. Um choque.
A herança ajudou-o a pagar os estudos, mas não chegou. Logo no primeiro ano do curso, começou a fazer comédia stand-up em bares, para pagar a faculdade.
O confronto com o ambiente de uma universidade privada desperta-lhe inseguranças: “Houve uma altura em que os meus amigos tinham tudo: boas casas, bons carros, telemóveis. E eu morava num bairro pobre em Campanhã. Ao início, sentia alguma vergonha de levar ali os meus amigos ricos”, confessa. Até que um dia tomou uma decisão: “Os meus amigos vão gostar de mim por ser um tipo fixe e não por aquilo que eu tenho.” A casa passou a estar sempre cheia, todos queriam lá ir. Havia petiscos, podia fazer-se barulho e “sentiam-se boas vibrações no ar”. “Não é o sítio onde tu moras que faz ti melhor ou pior pessoa.”
TARDES A GUARDAR CABRAS
No caso da eurodeputada Marisa Matias, 40 anos, estudar sempre fez parte do seu percurso natural, independentemente dos esforços que o caminho exigisse. Até pela proximidade à Universidade de Coimbra. Como seria de esperar, a também dirigente do Bloco de Esquerda não gosta de cultivar o cliché dos “pobrezinhos felizes”, mas quando recua à infância na aldeia de Alcouce, em Condeixa-a-Nova (Coimbra), a memória traz-lhe um desfiar de histórias alegres. Caminhar mais de quatro quilómetros com os vizinhos até à escola primária? Uma diversão. Ajudar na apanha da fruta? Era certo que acabava de barriga cheia. Participar na apanha da azeitona? A tia Isabel encarregava-se de espalhar rebuçados pelo chão para as crianças receberem a devida recompensa pelo trabalho.
A mãe da ex-candidata à presidência da República era empregada de limpeza e o pai guarda-florestal. A maioria das coisas que chegavam à mesa vinha da horta ou dos animais que se criavam, e isso implicava muito trabalho. Os três irmãos tinham de colaborar. Quando terminavam as aulas, ainda no 1º ciclo, era habitual guardar as cabras da família mas, entre os livros que requisitava na biblioteca e os cadernos da escola, invariavelmente manchados de terra, era quase certo que se distraía e deixava escapar alguns animais. “Perdi as cabras algumas vezes, mas não era nada de trágico. Havia sempre alguém que as encontrava!”, conta, divertida. Aos 16 anos, Marisa Matias era trabalhadora-estudante. Ajudava a pagar os estudos e as contas da casa. Deu explicações, trabalhou num bar, foi rececionista, secretária e fez limpezas.
Apesar da sua biografia, não acredita “que uma pessoa precise de ser pobre para lutar contra a pobreza”. É certo que não conhece a pobreza só em teoria, mas não crê que isso lhe dê “superioridade moral”. Mas “viver as coisas ajuda-nos a compreendê-las melhor”.
GERAÇÃO “SUPERLETRADA”
À semelhança de Marisa Matias, doutorada em Sociologia, a cientista Elvira Fortunato, 52 anos, também foi a primeira “superletrada” da família. Um feito marcante, sobretudo pelos efeitos multiplicadores: “Foi estimulante para os meus primos e para o resto da família, que, depois, tentaram copiar os sucessos dos pioneiros. Acabo por ser um exemplo a seguir e também um orgulho.”
Nascida e criada em Almada, para onde os pais se mudaram vindos de Alcanena (Santarém), a mentora do revolucionário transístor de papel foi incentivada pelo pai a continuar a estudar. “Ele nunca me deu uma prenda quando passava de ano. Dizia sempre que o que eu estava a conseguir seria a minha melhor prenda.” O pai da cientista trabalhava numa loja de souvenirs no ex-líbris da cidade, o Cristo Rei.
Elvira Fortunato faz parte de uma geração de mulheres “superletradas” que, ao contrário das mães, pôde prosseguir os estudos. Se, em 1980, as mulheres doutoradas eram praticamente metade do número de homens com este grau, em 2013 houve mais 258 doutorados do sexo feminino (1463) do que do masculino (1205). “A minha mãe trabalhava em casa, não tinha emprego. E eu sempre achei a independência monetária e profissional muito importante. Isso só se consegue com mais habilitações, como tenho dito à minha filha.” No laboratório, a investigadora diz não haver impossíveis e procura seguir a mesma máxima na vida: “Se vivermos num ambiente mais problemático, temos de trabalhar mais para vingarmos, mas também são as dificuldades que nos fazem ir mais além. Se eu não tivesse tido dificuldades no meu percurso científico, provavelmente não teria chegado onde cheguei.”
O SINDICALISTA EMPRESÁRIO
Superar dificuldades sempre foi um dado adquirido para António Saraiva, 63 anos, atual presidente da CIP Confederação Empresarial de Portugal. Os pais trocaram o Alentejo por Lisboa, no início dos anos 60, em busca de uma vida melhor. Dos 6 aos 11 anos, António Saraiva viveu num quarto com a família no Largo do Contador-Mor, perto do Miradouro de Santa Luzia, em Lisboa. Os pais ainda moram na mesma zona, na Rua da Saudade, onde o empresário também viveu até casar, aos 21 anos. Ainda hoje participa nos jantares mensais que juntam “os miúdos de Santa Luzia”.
Filho único de um sapateiro e de uma trabalhadora agrícola, foi contra a vontade do pai que começou a trabalhar nos estaleiros da Lisnave, aos 17 anos. A ida para a empresa traçou-lhe o destino de forma inesperada. Nos estaleiros, passou de operário sindicalista a empresário de sucesso. Depois do 25 de Abril, envolveu-se nas lutas sindicais (orgulha-se de ter contribuído para o primeiro acordo social do País). Cumpriu o ensino secundário à noite e, aos 25 anos, candidatou-se no regime ad hoc a Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. A exigência da luta sindical impediu-o de terminar o curso. Promovido a diretor comercial, tornar-se-ia o primeiro administrador de uma empresa do Grupo Mello sem licenciatura.
Envolveu-se de tal forma que, quando lhe comunicaram a alienação da empresa, anunciou-se comprador. “Foi um impulso.” E assim se tornou empresário: comprando a empresa a prestações e pagando com o trabalho. “Se eu fosse um atleta, seria um maratonista. Tendo em conta o meu ponto de partida, os outros iam uns metros à frente na corrida e eu tinha de os apanhar.” Admite que sentiu algum preconceito quando foi eleito presidente da CIP, o primeiro não licenciado, mas está pacificado com a questão: “O título é importante porque mostra uma especialização mas, se nos deitarmos à sombra dessa especialização, seremos a lebre que todas as tartarugas vão apanhar.”
HINO DE VENCEDOR
Correr é uma tarefa complicada para Telmo Martins, pelo menos, quando carrega o pesado contrabaixo de um lado para o outro. Mas o jovem músico, de 21 anos, evita usar a palavra “sacrifício”. No seu lugar põe “calma” e “paciência”. No Casal de São Brás, Amadora, onde vive, já todos o conhecem (o instrumento não passa despercebido).
Cruzou-se com a Orquestra Geração, que leva aulas de música a escolas de contextos vulneráveis, na EB 2,3 Miguel Torga, uma das primeiras a acolher o projeto. Estava no seu segundo 7º ano, o único que repetiu. Cresceu com a mãe e seis irmãos. Passavam muito tempo em casa porque a mãe os queria sossegados. “Pintávamos as paredes, jogávamos futebol em casa. Éramos seis, tínhamos de fazer traquinices.” O bairro sempre esteve conotado com a criminalidade, mas Telmo nunca ali viveu com medo. Exceto das duas vezes em que ouviu tiroteios.
A paixão pelo contrabaixo levou-o à Escola Profissional Metropolitana. “No início, senti algum afastamento das pessoas. Eu era dos únicos pretos que lá estudavam.” Mas acredita que na música há menos racismo “porque toda a gente conhece grandes artistas pretos”. Vem-lhe à cabeça Miles Davis. Antes de se candidatar à faculdade, parou dois anos para melhorar a técnica. Durante esse período, começou por trabalhar numa mercearia, mas a Orquestra Geração resgatou-o e deu-lhe trabalho como monitor de outros miúdos. Depois de ter tocado ao lado da Orquestra Gulbenkian, de participar num ensaio com o maestro Gustavo Dudamel, de tocar no La Scala, em Itália, e de dar formação a jovens músicos em Londres, Telmo não tem dúvidas de que quer ser contrabaixista profissional. É aluno da Escola Superior de Música de Lisboa e tenta não perder o sono enquanto espera para saber se terá direito a bolsa de estudos. Com a mãe desempregada, a alternativa será ir trabalhar algo pouco compatível com as essenciais cinco horas de treino musical diário. Mas não lhe passa pela cabeça desistir. Tal como Telma Monteiro, Telmo Martins sente o mesmo desejo de superação. A tal chama sempre acesa.