A entrada numa cadeia não tem nada de anormal. As portas não se abrem com ruídos estranhos e as fechaduras são menos complicadas e mais velhas do que as das nossas casas. Pode haver uma campainha mais ruidosa, sim, mas aquele barulho de chaves a baterem umas nas outras é mito. Não há snipers em torres, nem fardas especiais. Quando o portão principal de uma cadeia se abre para alguém entrar, seja jornalista, guarda, médico, empresário ou uma visita semanal, é como outra porta qualquer.
A diferença sente-se lá dentro. Para começar, todas as pertenças ficam em cacifos, à entrada. Telemóveis, carteiras, chaves, tudo. E é preciso passar pela máquina do raios x para garantir que não entra nada que possa ser usado como arma. Mas nem isso é extraordinário. Em 2011, a entrada no Kremlin, mesmo para elementos da comitiva do Presidente da República, de visita à Rússia, obrigava a todas essas medidas de segurança. Nem os casacos podiam entrar. Só blocos de notas e canetas. Como aqui.
Depois de entrar, é como se houvesse vários mundos. O mais marcante é a ala residencial, com celas umas a seguir às outras, portas com ferrolhos gigantes (na prisão feminina são cor-de-rosa), quartos individuais, duplos ou camaratas. É uma zona de acesso condicionado, sempre com um corredor largo a meio, e onde se faz o “conto” (a contagem dos reclusos) de manhã, ao almoço, à tarde e ao início da noite.
É um dos espaços onde se sente o peso da cadeia. O outro é o recreio.
Por mais rinques de futebol, campos de básquete, jardins ou hortas bem tratadas que haja no recreio, a presença dos muros e das cercas é permanente e sente-se que estão ali para limitar alguém.
Os outros dois espaços, o da escola e o do trabalho, fazem o contraponto e dão uma falsa sensação de normalidade. Sair da cela para ir à escola, mexer em livros e cadernos, ter um professor que não é um guarda ou ir a uma formação profissional e trabalhar em serralharia, carpintaria, costura, artesanato, lavandaria, biblioteca, estofaria, culinária, é quase como estar fora da prisão.
E ainda há aqueles casos de reclusos que já estão em regime aberto ao exterior e que trabalham mesmo fora de grades, saindo sozinhos de manhã para regressar à tarde, em liberdade parcial.
É sobre este lado quase normal da vida nas prisões que “fala” esta reportagem.
EMPRESAS NA PRISÃO
Houve um dia em que Cesaltina Correia, 48 anos, mãe de quatro filhos, não se imaginava presa. Mas hoje, depois de quatro anos passados em Tires, é a alma de uma parte desta cadeia exclusiva para mulheres. Ali sobreviveu a um problema oncológico, perdeu a farta cabeleira, voltou a recuperá-la e deu largas à sua veia criativa.
Desde que dois empresários assinaram uma parceria com aquele estabelecimento prisional, comprometendo-se a dar trabalho de artesanato a um grupo de reclusas, Cesaltina transformou-se numa espécie de encarregada da fábrica, sendo a fábrica uma pequena sala com máquinas de costura, agulhas, linhas e tecidos. “Ela ensina-nos tudo”, diz Zelda, uma das “formandas”.
Em Tires, são várias as empresas que criaram núcleos de trabalho no interior da prisão. A by Luís Nogueira (roupa e artigos em burel), a Anita Piquenique (produtos para o ar livre) e a Reklusa (malas e mantas) são três das que estiveram presentes no dia da visita da VISÃO. Dão emprego e salário a mais de 20 mulheres. Tudo sem sair da prisão.
Mas há outros casos, tanto em Tires como pelo País fora, de empresas ou associações que assinaram parcerias com os serviços prisionais no âmbito do Programa Nacional de Reabilitação e Reinserção, criado em 2013 uma das meninas dos olhos da então ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz.
Dados da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais comprovam que, em 2014, num universo de 14 100 reclusos, já havia 9 149 em ocupação estruturada: 3 393 a estudar, 709 em formação e 5 047 em atividades laborais, dos quais mil a trabalhar por conta de entidades externas.
ASSISTÊNCIA TÉCNICA ESPECIAL
Em Coimbra, por exemplo, a TecniDelta emprega um grupo de reclusos que faz a assistência técnica de todas as suas máquinas de café (de estabelecimentos comerciais da Zona Centro). E a Unicer também lá manda arranjar as suas máquinas de pressão, bombas de refrigeração, cabeças de extração ou manómetros.
“Os equipamentos que usamos em festivais são rastreados, arranjados e limpos aqui, antes de serem utilizados outra vez. Se for preciso substituir peças, são estes senhores”, explica Carlos Breda, da Unicer, enquanto aponta para as bancadas cheias de material de trabalho. A equipa da Unicer conta com seis reclusos que, antes de serem estagiários, frequentaram o curso de formação em refrigeração e climatização. “Chegámos a ter uma unidade de manutenção no exterior, mas a qualidade aqui é a mesma ou melhor, porque somos nós que damos a formação”, diz Carlos Breda.
As vantagens para as empresas são evidentes: têm “funcionários” que trabalham sem distrações, ganham um salário aquém do praticado no exterior, o espaço de trabalho é cedido pela prisão e ainda cumprem um papel social, como benfeitores. Para os presos, os benefícios são outros: o trabalho especializado contribui para a sua formação e pode ser reconhecido lá fora, o salário é um pouco melhor do que se fossem simples “formandos” e o bom comportamento será sempre fator relevante quando a pena for revista. “Além disso, andamos mais distraídos, ajuda a passar o tempo”, diz um dos alunos do curso de serralharia, também da prisão de Coimbra.
Um parêntesis: andar distraído ou estar ocupado não significa deixar de pensar em fugir. Em Coimbra, ficamos a saber que, na maior parte do tempo, os reclusos pensam em estratégias para escapar da cadeia. “Mesmo que não tenham qualquer intenção de o fazer”, diz Orlando Carvalho, o diretor do estabelecimento.
PERIGO DE FUGA
Alguns não se ficam pelos pensamentos. Paulo Ratinho, 45 anos, já fugiu duas vezes, a última das quais em Aveiro, numa altura em que Orlando Carvalho era lá diretor. “Matutei, matutei e fugi”, conta. Na altura, trabalhava como faxineiro no bar e começou a juntar bidons trazidos pelos “funcionários” da lavandaria para uma zona de arrumações. O bar tinha uma arrecadação que dava para um pátio, nas traseiras, junto ao muro. Foi aí que o Ratinho empilhou os bidons, em escada. O resto, já se sabe: “Saltei o muro e fugi.” Dois dias depois, foi apanhado na sequência de um acidente automóvel.
Antes de se estrear numa cadeia, Paulo era empregado de balcão. Nasceu no Funchal mas vivia em Aveiro, onde tem companheira e irmãos. A sua primeira pena não foi muito pesada, mas as fugas não ajudaram. “Agora apanhei seis anos e nove meses por causa de uma precária.” Dito assim, nem parece justo…
A verdade é que houve um dia em que o Ratinho foi passar o fim de semana a casa e pediu o carro emprestado a uma vizinha. Como nunca tirou a carta (a primeira vez que foi preso tinha 17 anos), ficou em pânico perante uma operação STOP. Também tinha bebido.
A decisão precipitou-se. Em vez de parar, acelerou e foi perseguido a alta velocidade. Pelo caminho, tentou abalroar o carro da polícia que respondeu com tiros. O espetáculo terminou em acidente, mais uma vez, e o Ratinho viu a sua pena agravada. “Cá dentro, é um recluso exemplar, bom trabalhador, cumpridor e bom profissional. Quando sai, tudo lhe acontece”, diz uma das diretoras-adjuntas de Coimbra.
Há casos desses, em que a vida lá fora é um “inconseguimento”, como diria Assunção Esteves, e o regresso atrás das grades uma certeza, senão uma necessidade. A reincidência, nas prisões, é como as portas, os muros e as cercas. Está sempre presente.
Fátima Corte é diretora, em Tires, há dois anos. Gere uma cadeia feminina onde, além das 437 reclusas, há 24 crianças até aos três anos. Muitas das mulheres são estrangeiras e foram detidas no aeroporto, suspeitas de serem correios de droga. Outras foram vítimas de violência doméstica até se transformarem em homicidas dos maridos. Há as que roubaram carros ou burlaram alguém. E há, também, o incrível caso de uma idosa que cumpre seis meses de prisão efetiva por não ter pago a multa respetiva a uma máquina de jogos mantida ilegalmente no seu estabelecimento comercial.
O mais difícil para a diretora é desenhar-lhes um plano de vida fora da cadeia, convencê-las a entrarem em programas de desenvolvimento moral e ético, e, apesar de tudo isso, vê-las regressar. “Sinto que, aqui, estamos a fazer tudo certo. O esqueleto está bem montado e a preparação para voltarem à sociedade é bem feita. Mas ainda falta dar o salto e criar as pontes”, diz. “É preciso que a formação dada cá dentro se transforme em empregos lá fora.”
FAZER PONTES
Em Tires, como em Coimbra, as pontes ainda são uma exceção. Mas já existem. A empresa Monte da Lua, que emprega várias mulheres em regime aberto ao exterior, contratou recentemente uma jovem que fez o curso de jardinagem na prisão. E do curso de cozinha também saiu uma reclusa para um restaurante do CCB. “Esta articulação com o exterior faz todo o sentido”, assume a diretora.
Dos 499 presos de Coimbra, 22 trabalham fora das grades, na sequência de protocolos com as câmaras da Mealhada e de Coimbra, a Fundação Mata do Buçaco, o Museu Monográfico de Conímbriga e o Jardim Botânico da Universidade de Coimbra. Há também brigadas no exterior, acompanhadas por guardas, como a que envolve quatro homens na recuperação de uma sala de audiências do tribunal da cidade (onde alguns dos reclusos terão sido julgados).
Novo parêntesis: Todos os presos que recebem um salário, seja por frequentarem cursos de formação ou por terem um emprego, têm uma conta bipartida: de um lado ficam os fundos que serão aplicados na sua reinserção social; do outro fica o dinheiro para as despesas correntes, como a ‘cantina’ (uma espécie de supermercado semanal, na gíria da prisão).
M. e A., de 40 e 47 anos, são dois dos reclusos de Coimbra que trabalham em regime aberto, no exterior da cadeia. Significa que chegaram a uma altura da sua pena, já muito próxima do fim (um deles prevê sair em maio), em que merecem a confiança do sistema. Não quiseram identificar-se, para proteger a família, mas deixaram-se fotografar com as mãos na terra. São ambos reincidentes.
Todos os dias, depois de tomarem o pequeno-almoço, M. e A. têm autorização para sair pelo portão, descer a rua em liberdade e ir trabalhar para o Jardim Botânico. Sem guardas. À tarde, regressam à prisão, mas não como quem regressa a casa. ”Eu costumo dizer que às cinco da tarde, quando volto à cadeia, cai-me a ficha”, diz A.
A entrada numa cadeia parece normal… a quem lá entra pela primeira vez, sabendo que não fica. A esses, é a saída com a bagagem do que se vê, ouve e sente lá dentro que custa. A todos outros, difícil é o regresso.