‘Tudo o que eu tenho trago comigo. O título da Nobel da Literatura Herta Müller poderia ser uma afirmação de qualquer uma das pessoas em situação de sem-abrigo acompanhadas pela Associação Conversa Amiga (ACA), antes de usarem um Cacifo Solidário, um lugar seguro para guardarem as suas coisas. Um lugar que lhes permite voltar a ter uma chave no bolso. Ainda que não lhes garanta um teto, é um regresso às responsabilidades.
Existem 12 Cacifos Solidários em Lisboa, instalados na freguesia de Arroios, há dois anos. A 4 de dezembro será inaugurada mais uma dúzia de cacifos em Santa Apolónia e já está garantida a instalação de outros tantos no Rossio. Até 8 de dezembro decorre uma campanha de crowdfunding para financiar seis dos 36 novos cacifos que a ACA espera instalar nos próximos meses – foram angariados 4300 euros dos cinco mil pedidos. Os espaços são entregues por períodos de um ano, mas há regras a cumprir, como garantir a sua limpeza e ser acompanhado pela ACA. A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa estima que existam 816 sem-abrigo na cidade, 440 a dormirem na rua e os restantes em centros de acolhimento. Fernando Domingues, José Manuel Saraiva e Manuel Sanhá são vizinhos de cacifo e também das ruas de Arroios. Ao abrirem a porta dos seus ‘armários’, na verdade, não tinham vontade de falar dos objetos lá guardados mas na vida inteira que não cabe dentro destas caixas metálicas amarelas.
‘Não desisti. Se me aparecesse um emprego, ia já amanhã’
“Houve um tempo em que eu andava com maços de notas no bolso. Era dos melhores clientes da pastelaria Versailles. Quer dizer, eu não, o partido. Eu estava ao serviço da AD [Aliança Democrática]. Cheguei a andar armado para garantir a segurança do Soares Carneiro durante as presidenciais [1980] e conduzia grandes ‘bólides’, mas nunca tirei a carta. Na política, acho que a única coisa que não fiz foi colar cartazes, mas mandei colá-los à porta do Nuno Abecasis quando o partido se queixou que não havia cartazes suficientes nas ruas de Lisboa durante a campanha para a câmara. Quando soube da morte do Sá Carneiro fui disparado para Camarate. Nunca tinha visto corpos carbonizados, as pessoas encolhem muito. Nunca me esqueci dessa imagem no meio dos destroços. Agora, a minha vida é nada, ou quase nada. Antes tinha de andar com a mobília atrás, agora, com os cacifos, é muito melhor. Já perdi a conta aos telemóveis que me roubaram ou que perdi, mas há sempre alguém que me oferece outro. Tenho um clã de amigos que me ajudam. Às vezes vou ao hotel, é como eu digo quando durmo em casa deles, outras durmo ao pé da Igreja [de Arroios]. Antigamente, andava com fotos dos meus filhos, tenho dois, uma rapariga e um rapaz já adultos, mas agora guardo tudo na cabeça. A separação da mãe do meu filho foi muito marcante para mim. Custou-me muito, mas acabou. Há meia dúzia de anos que vou e venho da rua. Se me aparecesse um emprego, ia já amanhã. Na rua os dias são todos iguais, hoje está a ser bom porque estou aqui a conversar, nos outros leio jornais e revistas, mas isso também satura. A rua é um círculo vicioso em que a pessoa se vai embrenhando. Vamo-nos adiando. Mas eu ainda não desisti. Só desisto quando morrer.”
‘Vou entregar o cacifo para ele melhorar a vida de outra pessoa’
“Quando só temos a rua, não temos onde guardar nada. Antes de ter o cacifo roubaram-me duas vezes os documentos. Guardo tudo ali porque é seguro. Já perdi a chave umas quatro ou cinco vezes… Mas estou a melhorar a minha vida e vou entregar o cacifo para ele melhorar a vida de outra pessoa. Durmo no Exército de Salvação e quando começar a receber o RSI [Rendimento Social de Inserção] vou alugar um quarto. Não é fácil encontrar porque os mais baratos estão todos ocupados. Nasci na Guiné-Bissau e vim para Portugal com o 25 de Abril para melhorar a minha vida. Era militar do Exército Português, estive quatro anos na guerra. Eu estava por quem mandava em mim e pagava no fim do mês. Este bocado da orelha direita que me falta foi um tiro de um soldado do PAIGC. Mais um bocadinho ao lado e não estava aqui. A guerra são segredos. Para nós e para os outros. Marteleiro foi a minha última profissão. Há dois anos dormi pela primeira vez na rua. O que mais me custou não foi o frio, foi ter a consciência que podia estar a trabalhar, mas não encontrar nada. A minha família está na Guiné-Bissau, eu nunca mais lá voltei. Tenho duas filhas, a mais nova está lá, eu fiquei no tempo em que ela era bebé. A mais velha veio para Portugal, não a via há 30 e tal anos. Ela é que me procurou. Disse-lhe que não tinha nada, mas que ela devia procurar emprego. E ela conseguiu um trabalho.”
‘Uma pessoa sabe quem é e de repente já não é ninguém’
“Costumo estar ali na Rua Alves Torgo, de frente para o nº 26, o prédio onde vivi 33 anos. O edifício era antigo, deitaram-no abaixo e fizeram um novo, nessa altura mudei-me para um quarto no nº 14, sempre na mesma rua. Desde que vim de Caminha [Viana do Castelo] para trabalhar, sempre parei por aqui. Quando cá cheguei tinha 10 anos. Já tenho 52 anos disto. Às vezes penso que mais valia não ter nascido. Vivi bem, trabalhei muito e agora não tenho nada. Tenho 33 anos de descontos, mas não recebo nada do Estado, nem o RSI [Rendimento Social de Inserção]. Não sou mendigo, ladrão também não sou. Vou-me governando como posso. Faço uns biscates, mas cada vez há menos. Ninguém tem dinheiro. Não sei bem como isto me aconteceu, tudo ajudou. Uma pessoa sabe quem é e de repente já não é ninguém. Quando perdi o emprego no ferro-velho deixei a casa onde estava. Antes tinha estado numa empresa de limpeza que trabalhava para a TAP. Andava no meio dos aviões, mas nunca voei em nenhum. Nessa altura tinha um gira-discos, que ficou no nº 26, para ouvir o Tony de Matos e o António Mourão. Era no tempo em que ia ao Salão de Lisboa ver filmes de cowboys, pagava cinco escudos e ficava lá a tarde inteira. Agora já não há cowboys como antigamente, quer dizer, há os que estão dentro. Nunca falhei uma eleição, mas arrependo-me de ter votado no Sócrates. A quem mora num prédio os cacifos não fazem falta, mas para a gente isto faz muita falta. Antes era só olhar para o lado e a roupa desaparecia toda. Há cada vez mais insegurança e às vezes somos nós próprios… os sem-abrigo. O que lá tenho guardado não é o que preciso, é o que tenho. Que eu saiba não tive filhos, fiquei viúvo há muitos anos, já me esqueci quando foi, ou melhor, não me esqueci, mas não gosto de me lembrar disso.”