Assim que se sentam numa mesa do restaurante Everest Montanha 2, em Lisboa, pedem um “chá picante”. Têm saudades do Nepal. Mas não por muito tempo: antes do fim do mês, estão de regresso a Kathmandu. O trabalho de Pedro Queirós, 35 anos, e Lourenço Macedo Santos, 33, está ainda a começar.
Lourenço: Só viemos cá porque queremos chamar mais atenção para a causa.
Pedro: Ainda temos muito para fazer lá.
Os dois amigos chegaram ao Nepal na noite de 24 de abril, após uma longa viagem de mochila às costas por vários países asiáticos. A aventura, julgavam, estava perto do fim. Quinze horas depois de aterrarem, o chão tremeu, matando quase nove mil pessoas.
Pedro: Nos primeiros dias, tudo parou. O abastecimento de água, comida, eletricidade, recolha de lixo. Os estrangeiros tentavam abandonar o país. Mas os nossos passaportes tinham ficado numa agência de viagens local. Quando os recuperámos, três dias depois, já tínhamos andado pela cidade e visto o caos: gente a dormir nas ruas, filas de 500 metros para a água e para a comida…
Lourenço: Aí tomámos a decisão: aplicar todo o dinheiro, 1 700 dólares [1 500 euros] cada um, a apoiar as pessoas.
Pedro: A nossa primeira compra, nessa manhã, foi 50 quilos de arroz e 400 bananas. Voou tudo em cinco minutos. No mesmo dia, tivemos de voltar ao supermercado mais duas vezes, comprar mais 200 quilos e depois 400 quilos de arroz. Enchíamos táxis e organizávamos filas para distribuir.
Entretanto, Pedro, com viagem marcada para 1 de maio, publicou o seu NIB no Facebook para quem o quisesse ajudar a ajudar.
Pedro: As pessoas perguntavam: ficam aí até quando? Ainda vale a pena ajudar?
Lourenço: Mas nós tínhamos visto gente morta na rua! Pessoas a pedir-nos massa, arroz, leite para bebés. Como é que podíamos ir para a praia beber cerveja?
Não podiam e não foram. Com os fundos a crescerem e os amigos do Facebook a multiplicarem-se, Pedro e Lourenço redobraram os esforços. Levantavam-se às sete da manhã e nunca se deitavam antes das três, quatro da madrugada. Com a ajuda de uma associação local, a BPW, “profissionalizaram-se”. Aprenderam a regatear nas lojas.
Pedro: Caíamos em cima deles. Colchões a 100 rupias? Não. Faz isso a 50. É o teu povo.
Desenrascaram uma carrinha de caixa aberta, diversificaram os alimentos de acordo com os costumes nepaleses e passaram a comprar também bens não alimentares, como pensos higiénicos. Tudo com dinheiro português.
Lourenço: Um dia, o Pedro, que anda sempre com os lápis de cor atrás, pegou num cartão, pintou a bandeira nacional e escreveu “Obrigado Portugal”. Era uma maneira de agradecer às pessoas que tinham contribuído.
A imprensa internacional descobriu-os. A história passou no Japão, na Austrália, nos EUA. Foram capa da VISÃO. Voluntários do Brasil, do México, de Espanha e de Malta juntaram-se-lhes, entusiasmados com o exemplo. Logo perceberam que estava na altura de passar à fase seguinte.
Pedro: Começámos a pensar na reconstrução do país, tendo em conta as monções que aí vinham.
Lourenço: Fora de Kathmandu, vimos vilas completamente devastadas. Ficámos ainda mais tocados.
A “Missão Obrigado, Portugal” passou a concentrar-se em duas novas vertentes: um campo de refugiados (Campo Esperança) para 350 pessoas de uma vila próxima, que procuraram refúgio na capital, e a construção de casas temporárias, para enfrentar as violentas chuvas das monções.
Lourenço: Caíram muitas casas, mas cada tenda que montamos é uma vitória.
Pedro: Temos aproveitado as competências de quem chega. Voluntários que vêm só por uma semana são encaminhados para o Campo Esperança, onde podem brincar com as crianças, dar aulas, comprar comida. Uma arquiteta chegou precisamente quando estávamos a pensar avançar com as casas temporárias.
Lourenço: Estamos agora a construir duas ao mesmo tempo, com assinatura portuguesa. Quando voltarmos, já estarão prontas.
Pedro: E vamos ter mais.
Lourenço: Sim, isto é um projeto-piloto. A Saudade 1 e a Saudade 2. Mais tarde, vamos analisar e replicar.
Com a sobrevivência garantida, era tempo de se concentrarem na dignidade dos nepaleses.
Pedro: Instalámos uma televisão no Campo Esperança, organizámos um show de talentos para as crianças…
Lourenço: De repente, estava o campo todo a cantar, a dançar e a recitar poemas. Foi uma tarde mágica. Isto é fundamental para as pessoas esquecerem um bocadinho a desgraça e terem dignidade. Terem vida.
A missão humanitária dos dois portugueses corria tão bem que algumas organizações não governamentais, com dinheiro e meios mas emperradas pela burocracia, já se juntavam a eles.
Lourenço: Nós temos dois milhões de dólares que vieram de Itália e podemos dar o transporte, mas não temos comida.
Pedro: Eles tinham paletes de comida no aeroporto, mas não conseguiam tirá-la de lá.
Lourenço: Nós levantávamos o dinheiro e comprávamos comida. Em menos de 24 horas, arranjámos oito toneladas de lentilhas, arroz, sal, que depois foram transportados de helicóptero.
O trabalho continua longe de estar terminado. Pedro e Lourenço preparam-se para fazer as malas e regressar ao Nepal, onde devem ficar, pelo menos, até ao Natal. Os seis meses sabáticos que haviam tirado para a viagem pela Ásia esticaram, deixando-lhes as carreiras em suspenso. O plano de iniciarem as suas próprias empresas, cuidadosamente delineado, foi adiado.
Pedro: Se começar o meu negócio aos 34 ou 35… São cinco minutos da minha vida.
Lourenço: Sim, seis meses não é nada. E isto está a dar-nos uma enorme bagagem em organização, liderança, gestão, marketing…
Pedro: Este é o nosso maior projeto.
Quase duas mil e quinhentas pessoas já contribuíram para a causa. Mas a responsabilidade não os assusta: nem têm tempo para pensar nisso.
Lourenço: Ainda não parámos. Mesmo em Portugal. Estava a ler o Shantaram antes disto e não lhe consegui voltar a pegar.
Pedro: Eu gosto de pintar e escrever, e também nunca mais.
Com os 27 mil euros angariados pelos dois amigos (que guardam cada fatura do que gastam, e pagam as suas refeições do próprio bolso), já foram ajudados 50 mil nepaleses. Mas muito, muito mais há a fazer.
Pedro: Peço às pessoas: organizem jantares de angariação de fundos. Criem movimentos.
Lourenço: O dinheiro lá rende. Com o preço de um metro quadrado em Lisboa construímos uma casa para uma família no Nepal.
O apelo tem resultado – Pedro e Lourenço até já receberam poupanças de crianças que partiram os mealheiros para ajudar o Nepal.