Chove. Chuva grossa e vento frio, de inverno, apesar de o outono ainda estar para durar. Maria sai do carro e já Antónia Machado, presidente da Cedema, a espera com um chapéu para a abrigar. Logo trocam beijos e abraços como duas amigas que não se veem há tempos. E o curto caminho entre o carro e a porta da entrada faz-se à conversa, em passos apressados, para fugir à chuva. “Olá pessoal”, cumprimenta a primeira-dama quando chega ao lar O Telhadinho para começar a sua visita de cortesia.
Maria entra tão à vontade no centro de dia (o qual, em breve também será residência), que sente necessidade de explicar. “Eu sou da casa”, diz, enquanto pousa a mala e vai perguntando pelas pessoas conhecidas a Lisete, a utente autora do sol de cerâmica que decora uma zona de refeições na sua casa do Algarve, e o Tó, o filho de 48 anos de Antónia Machado.
Está tudo bem desde a última visita da madrinha Maria Cavaco Silva, a 22 de abril deste ano. Nessa altura, a mulher do Presidente da República veio inaugurar o lar e há uma placa a comprová-lo. “Eu gosto pouco de colocar primeiras pedras. Já coloquei algumas, mas gosto mais que os projetos se concretizem”, assume a primeira-dama.
Fazer pontes
Nos quase nove anos que o seu “mandato social” já leva, Maria não só viu nascer O Telhadinho, nas encostas de Famões, arredores de Lisboa. Também assistiu, por exemplo, à abertura da Casa Ronald Macdonald, em Lisboa, e da Casa dos Marcos, um projeto de Paula Brito e Costa, presidente da Associação Raríssimas, que abriu no final de 2013, na Moita, e que contou, recentemente, com a visita da rainha Letícia de Ortiz.
Madrinha que é madrinha e a primeira-dama tem muitos afilhados (instituições sociais) não falha estes eventos, mas, na verdade, o seu envolvimento não se resume ao dia de cortar a fita. “Eu faço pontes”, diz, à VISÃO, explicando que, não tendo orçamento próprio nem equipa específica, o que tenta é apresentar umas pessoas às outras, promover networking e dar voz a quem a não tem. Às vezes, basta patrocinar encontros e pôr as pessoas em contacto, como aconteceu com a associação Pais em Rede, que, apesar de já existir há vários anos, intensificou a sua atividade depois de um encontro em Belém.
“Na sétima edição do torneio de golfe Portugal Solidário [2013], patrocinado pelo PR, nós beneficiámos das receitas angariadas “, conta Maria Antónia Machado, da Cedema, instituição que gere O Telhadinho.
Foram 35 mil euros. Um pequeno exemplo do poder de Maria.
Um lugar na História
Em Belém, o seu poder deixará marcas. Ou não tivesse sido ela a bater-se pela ideia de tornar o primeiro andar do palácio e a zona residencial acessíveis a pessoas em cadeiras de rodas. “Parece impossível, mas se o PR quisesse receber alguém, em cadeira de rodas, não podia fazê-lo condignamente”, diz Maria.
O primeiro passo foi ligar a rua à Sala das Bicas, por onde passam todos os convidados do PR. Seguiu-se um elevador desse nível para a zona privada da residência oficial, onde Maria e Cavaco oferecem, por vezes, almoços ou jantares, mas nunca pernoitaram. “No dia da inauguração, dei um lanche a um grupo grande a que eu chamo os meus amigos das cadeiras de rodas.”
Uma plataforma elevatória, com espaço para uma cadeira e um adulto, e um elevador interior são o legado de Maria, na arquitetura de Belém. Mesmo que não fizesse mais nada, a mulher de Cavaco Silva já ficaria na história por isto. Mas faz. E não esconde a sua causa: os cidadãos com diferença.
Independente de dar o seu alto patrocínio a instituições de todo o tipo, é pelos cidadãos com deficiência e pelas organizações que lhes prestam apoio que o seu coração bate mais forte. “Quando vivi em Inglaterra com o meu marido, nos anos 70, um casal amigo nosso tinha uma filha diferente, a Joana. E eu vim de lá muito desperta para essa realidade, que, na altura e naquele país, já se vivenciava de outra forma”, conta.
Hoje, Maria orgulha-se do trabalho feito em Portugal, nesta área, e já o mostrou a primeiras-damas de outros países que fazem questão de conhecer os nossos bons exemplos. Durante a segunda visita oficial de Letícia a Portugal, quando esteve na Casa dos Marcos para assistir ao II Congresso Ibero Americano de Doenças Raras, ficou claro o interesse da rainha espanhola em replicar aquele modelo em Espanha.
Trabalho de gabinete
Como mulher do Presidente da República, uma boa parte do trabalho de Maria Cavaco Silva também se faz no gabinete, numa ala do Palácio de Belém, onde estão a sua adjunta e uma secretária.
É rodeada de fotografias de família ou de momentos importantes, como o dia da tomada de posse do marido, enquanto PR, que Maria prepara discursos ou aulas (recebe muitos convites para dar aulas pro-bono, sobretudo no estrangeiro), organiza palestras, noites de poesia e congressos (como um encontro anual, em maio, dedicado às mães), marca reuniões ou promove eventos, recebe convidados e gere a agenda.
É também ali que são tratadas, por exemplo, as inúmeras cartas/e-mails com pedidos ou desabafos. Nem todas as mensagens têm resposta, mas é tudo lido e quando o assunto o justifica, o pedido é encaminhado para o órgão competente.
As missivas ajudam a traçar um retrato do País. “Há dias recebi uma carta de uma senhora que me falava das enormes dificuldades que tinha, dos seus dois cancros, da sua doença rara e acrescentava que estava em depressão profunda. Não é de admirar”, conta Maria. É também através da mulher do PR, que o País deprimido chega a Belém. Todos os anos, Maria recebe uma visita especial:: um padre francês, Joseph Galerne de seu nome, que é colecionador de presépios. A primeira-dama é, ela própria, uma grande colecionadora: tem cinco centenas, mais coisa menos coisa, representando 37 países.
Frequentemente, aceita expô-los, numa perspetiva solidária, como acontece no próximo sábado, 29 de novembro, em Castelo de Vide. Pelas 18 e 30, é por si inaugurada, na Igreja de S. João Batista, a exposição O Presépio -Coleção de Maria Cavaco Silva e as receitas dos ingressos revertem a favor da Conferência de S. Vicente de Paulo do Castelo, uma instituição social da região.
Voltando à visita do padre, reitor da paróquia de Guiscriff, na Bretanha, a primeira vez que veio a Belém foi em 2009. Chegou numa carrinha, que também servia de dormitório, e trouxe um pequeno estábulo com as figuras tradicionais, para oferecer à primeira-dama. Ela deu-lhe outro, em troca, e a experiência repetiu-se em 2011 e 2012. Na altura, o sacerdote ainda mal falava português, coisa que melhorou com o tempo. E como não a conhecia, demorou a dizer-lhe que trazia outra encomenda, enviada por um dos seus paroquianos. Maria espantou-se quando soube o que era: um saco de batatas. Mas aceitou.
Madrinha e voluntária
Na página oficial da Presidência da República há um espaço dedicado à primeira-dama, onde é possível acompanhar a sua agenda de trabalho, ver reportagens fotográficas sobre os eventos em que participa e ficar a conhecer os projetos que apoia, nomeadamente através do seu alto patrocínio (um selo azul, que parece um coração).
E se há iniciativas em que a presença da mulher do Presidente é quase obrigatória, independentemente de quem esteja no cargo (caso do Bazar Diplomático, da Procissão de Nossa Senhora da Saúde, do Prémio Mulher Ativa ou do Pirilampo Mágico), outras há que nasceram da sua vontade de se associar àquela causa em particular.
Há dois meses, esteve no Instituto Português de Oncologia de Lisboa a entregar batas a 59 novos voluntários da Liga Portuguesa Contra o Cancro. Há dois anos, em Moçambique, deu uma aula na Escola Josina Machel, onde havia lecionado quando viveu em África, e ofereceu 200 livros à biblioteca escolar. E ainda em 2012, foi ao serviço de leitura para deficientes visuais da Biblioteca Nacional oferecer a sua voz e gravou um audiolivro – o conto A Casa do Mar, de Sophia de Mello Breyner Andresen.
N’O Telhadinho, o lar visitado no dia em que a VISÃO acompanhou Maria Cavaco Silva, a primeira-dama só não lê para os utentes. De resto, senta-se à mesa com eles, conversa, mexe, tira, põe, olha, cheira, pergunta sobre o que estão a fazer. “Isto parece o Halloween”, diz ao entrar numa sala onde se fazem colagens e pinturas. “Eu pensava que vinha para o Natal.”
Está tão descontraída que até canta o fado. Depois de lhe apresentar a namorada, um dos utentes, José, começa a entoar Canoas do Tejo, de Carlos do Carmo, e é Maria que o ajuda a terminar: “Canoa, por onde vais? Se algum barco te abalroa, nunca mais voltas ao cais, nunca nunca nunca mais”, cantam. “Aí está uma mulher autêntica”, diz José. Aplausos. Sorrisos. E Maria Antónia Machado, que sonhou toda aquela obra, emociona-se.
O Telhadinho foi o seu último bebé e sabe-lhe bem vê-lo ser acarinhado pela mulher da principal figura da nação. O primeiro bebé, António, nasceu há 48 anos, com síndrome de Down. Foi a pensar no futuro das pessoas como ele, depois de verem os seus progenitores e cuidadores partirem, que Antónia pôs mãos à obra e arranjou forma de projetar, financiar e construir esta casa orçamentada em mais de 1,5 milhões de euros.
Cumprimentos ao marido
No dia anterior à visita de Maria, uma equipa da Presidência passou pelo Telhadinho para preparar o encontro do dia seguinte e para se certificar de que a segurança da primeira-dama estava garantida. Uma obrigação desnecessária.
Ali, todos gostam dela e os estranhos têm entrada dificultada. Ali, Maria está em casa. Até apaga as luzes todas dos sítios por onde passa. “Eu sou a apaga luzes de Belém, sabem? Mas estou em boa companhia, porque já percebi que o Papa Francisco faz a mesma coisa”, brinca a primeira-dama.
Difícil é ir-se embora de Famões. Maria Antónia não a deixa sair sem lhe oferecer um chá, uns bolinhos, um ramo de flores, um presépio, uma caixa de madeira para guardar o presépio e um convite: “Estamos a contar consigo para a festa de aniversário da Cedema, a 17 de fevereiro, na Malaposta “, atira. “Só se eu não estiver cá”, responde Maria.
No regresso a Belém, a primeira-dama leva um recado. “Cumprimentos ao seu marido”, diz um dos utentes mais jovens. “Com certeza. Vou dizer-lhe: o Pedro, que é um grande golfista, coisa que tu não és, mandou-te cumprimentos.” E explica: “Quem não é um grande golfista é ele, não tu, Pedro.” Todos se riem e acenam adeus, a partir de uma mesa, no refeitório, onde tomam o pequeno-almoço.
Maria sai do lar, em Famões, e regressa ao Palácio de Belém, onde o marido acaba de dar posse a uma nova ministra e dois secretários de Estado. No seu gabinete, garante a primeira-dama, não entra política. Será?