Em terra de moleiros, aprende-se, desde cedo, a aproveitar o vento a nosso favor. Em S. Miguel de Machede, no interior do Alentejo, com moinhos e noras como pano de fundo, a imagem faz ainda mais sentido. Vivem aqui menos de mil pessoas e o número só tem diminuído segundo a contabilidade oficial, em vinte anos, perdeu-se metade dos habitantes. Na década do betão e das autoestradas, foi também a estrada, belíssima e a poucos metros, que levou muitos deles para Évora, a 17 quilómetros, com a ajuda da rodoviária do Alentejo e as suas quatro carreiras diárias a partir daquela freguesia.
Desde então, esse palavrão que é o despovoamento ganhou ali corpo e dimensão, tornou-se o espelho da interioridade, marcada por uma imensidão de idosos a viverem sozinhos e por escolas quase sem crianças.
Só que entre estes micaelenses há uma espécie de gaulês irredutível, empenhado em enfrentar esse fantasma que é a desertificação humana. Se bem o pensou, melhor o fez e, há 15 anos, criou a Suão Associação pelo Desenvolvimento Comunitário. A julgar pelo grupo de avozinhas que descobrimos à entrada do sítio, correndo atrás de meia dúzia de bolas amarelas num campo de jogos, o futuro pode ser mesmo muito diferente.
O máximo com o mínimo
José Bravo Nico, 49 anos, o presidente da direção da Suão, é um filho da terra e não a imagina entregue à sua sorte. “A nossa terra não é uma simples expressão do quotidiano”, gosta de repetir. “É a tradução de um laço que mantemos com um território e uma comunidade.
E isso implica o compromisso de os manter vivos”, insistindo que não há fatalidades à natureza rude e mínima é preciso responder com esperança, com esta ideia de fazer o máximo com o mínimo. “Queremos viver aqui as nossas vidas, com estas pessoas, neste tempo”, sublinha, para depois precisar que Suão é também o título de uma obra referencial da cultura alentejana escrita por Armando Antunes da Silva, descreve a eterna luta local contra a natureza e circunstâncias sociais adversas.
No campo relvado à nossa frente, os jogos estão quase a terminar. Teresa Engana, 35 anos, a professora daquelas seniores ativas ou melhor, ativos, já que há um senhor, tímido, no grupo, mostra-se orgulhosa: “Fazem tudo o que lhes digo.” Rosa, 74 anos, Mónica, 80, e Joana, 63, confirmam: “Esta é uma das coisas boas que a gente tem.” Mas a ginástica constitui apenas uma das componentes do Curso de Educação de Adultos que a Suão criou: há a pintura, a informática, a gastronomia… E é só um dos projetos”, prossegue Bravo Nico, que é também professor na Universidade de Évora, onde, como doutorado em Ciências da Educação, teorizou o que aqui pôs em prática um trabalho postulado no livro Educação e Formação de Adultos no Alentejo e apresentado publicamente no início do mês. Passeando-se por entre os livros da biblioteca da Escola Comunitária, que dá vida ao espaço ocupado pela associação, o mentor dos projetos elenca-os de cor.
“Também temos o Gabinete da Papelada: quem tem um problema que não consegue resolver pelos próprios meios, é aqui recebido por duas funcionárias que tomam conta do caso. Se for uma questão burocrática, é remetida para um jovem que estude ou trabalhe em Évora, para que este a resolva”.
Outro exemplo? “Já tivemos uma Brigada da Assinatura, em que os mais novos ensinavam os mais velhos, que nunca tinham ido à escola, a assinar.”
Na hora do estudo, os mais novos ajudam-se entre si e recebem apoio dos mais velhos
Solidariedade entre gerações
É uma solidariedade que também funciona ao contrário. “No Circuito da Aldeia, por exemplo”, continua Bravo Nico, citando o programa que a Suão oferece aos meninos da cidade, que ali vão ouvir o senhor Jerónimo e o senhor Florival falar sobre variedade de hortícolas, ou saber com o senhor Epifânio o que é o Jogo da Bola do Aro, uma brincadeira tradicional que já poucos conhecem.
“E aprendem a fazer pão, visitam a adega, comem a nossa sopa de tomate…” São três da tarde e eis que um bando de miúdos entra, de rompante, por ali dentro, com os seus livros e cadernos. “Hoje é o dia do Gabinete do Desenrascanço Estudantil”, anuncia, enquanto os miúdos se instalam.
Dispõem de três horas para estudarem e fazerem os trabalhos de casa, ajudando-se uns aos outros, tudo supervisionado pelas duas funcionárias da instituição. “Se não viéssemos para aqui, estávamos em casa, sozinhos”, reconhecem Carolina, 13 anos, Carla, 16, Marco, 14 e Daniela, 11 anos. “Mas não é só estudar: às vezes, também fazemos coisas divertidas, como pinturas faciais e assim…”, conta a mais novinha.
“Somos uma ajuda local e um forte apoio no combate ao abandono escolar. Por sua conta, eles desinteressavam-se muito mais depressa”, concedem Dora Pacheco, 27 anos, e Patrícia Ramalho, 32, as duas funcionárias.
“Ao fazermos a mediação entre a família e a escola, somos também um pouco seus encarregados de educação.”
Esta vida no campo foi imaginada por José Bravo Nico
Numa geografia de afetos
Há ainda uma outra família que cresce ali.
Agora, a Dora e Patrícia, juntou-se Nazaré, 19 anos, um sinal de que é possível gerar emprego e oferecer estágios. Durante o próximo ano, a rapariga, que fez um curso profissional de multimédia, tem como desafio agregar as fotos antigas e as histórias que elas guardam porque uma das preocupações da Suão é guardar o património.
“E há muitas coisas que é preciso resgatar da oralidade”, recorda-lhe Nico Bravo, explicando que é urgente entrevistar as pessoas que ainda se lembram de São Miguel de Machede de antigamente e digitalizar-lhes as fotografias, antes que tudo desapareça.
Na verdade, a primeira tarefa de Nazaré vai ser angariar notícias e publicidade para o Menino da Bica, o jornal que fazem sair todos os anos, para contar como foi. “É tão importante produzi-lo como lê-lo”, anui o ideólogo do projeto, contente por estar também a criar uma escola de liderança, feita de direitos e deveres, e aberta a todos os que quiserem, mesmo que não sejam um dos seus 215 sócios.
Os cartazes nas paredes dão conta das visitas de estudo, das peças de teatro e dos mercados populares que vão animando os dias de São Miguel de Machede. Aproveitando os mais variados financiamentos ao dispor das instituições de solidariedade social, das associações juvenis e de desenvolvimento local, a Suão, que tem as três valências, já ganhou diversos prémios, dinheiro que investe, novamente, para fazer crescer outros projetos acaba de ser reconhecida pela EDP Solidária, que vai entregar-lhe 10 mil euros para serem usados em 2014.
“A nossa fileira é a educação não formal”, sintetiza José Bravo Nico, orgulhoso desta ideia de criar futuro com base nos laços entre as várias gerações e grupos de uma mesma comunidade. “A Suão é um laboratório onde testamos o futuro que queremos para o mundo rural, uma geografia de afetos que só funciona se todos participarem.” O sonho, claro, é ser sustentável. Quem é que não quer um futuro assim?