“Não, não temos de colocar o ónus da responsabilidade pelos desastres automóveis apenas nos utentes. As ruas e estradas têm de ser desenhadas e mantidas de forma a protegerem-nos e até a desculparem os nossos erros. A petição que lançámos há já vários anos, que se chamava “Contra a guerra civil nas estradas portuguesas” pedia à Assembleia da República exactamente que as estradas só pudessem abrir ao público com a garantia de que não iriam potenciar os desastres. O princípio de que todo o ambiente rodoviário deve ser desenhado de modo a proteger quem o usa é para nós essencial: significa que o estado assume a sua quota-parte de responsabilidade e pode assim exigir, com credibilidade, aos utentes que se comportem também de forma responsável. Um dos nossos maiores problemas em Portugal é que, apesar de as auditorias de segurança rodoviária estarem previstas no Plano Rodoviário desde 1998 e de o estado ter transposto para o direito português a respectiva diretiva europeia em 2010, ainda não existe regulamentação das auditorias de segurança rodoviária, e portanto ainda não é possível assegurar que as vias não potenciam ou agravam as colisões, despistes e atropelamentos.
Dito de outro modo: quando compramos, por exemplo, um iogurte no supermercado o estado dá-nos uma garantia mínima de que esse iogurte não nos vai envenenar. Mas quando entramos numa rua ou estrada o estado não nos garante qualquer mecanismo de prevenção contra a existência de defeitos no pavimento, traçado ou sinalização. Basicamente, não temos a garantia de que as estradas e ruas que usamos não contribuem para os desastres rodoviários graves.
Do que falamos é de um dever ainda não assumido do Estado. E por isso reclamamos que as estradas ofereçam condições mínimas de qualidade e que não contribuam para nos matar. Comparemos com o que acontece na Suécia, o país com a menor taxa de sinistralidade no mundo: um dos factores de sucesso do seu programa de combate à sinistralidade foi precisamente a admissão de que a relação do estado com a sociedade implicava uma responsabilização na oferta de vias que minimizam o impacto dos erros e infracções na condução. E, claro, devemos perguntar-nos porque razão um país com a mesma população que o nosso, e com um território muito maior tem seis vezes menos quilómetros de auto-estradas do que nós. Houve uma opção de mobilidade e de investimento público nas infra-estruturas rodoviárias que passou sobretudo pela melhoria da qualidade dos espaços públicos e pela redução da velocidade automóvel – um factor essencial para a redução da sinistralidade grave.
Em Portugal gastámos o que tínhamos e o que não tínhamos a construir auto-estradas. Neste momento, já foram construídos mais de 2/3 da terceira auto-estrada Lisboa-Porto. E fizemo-lo descurando a necessidade de investir na reabilitação do espaço público urbano e nas vias nacionais e municipais, para melhorar a oferta de transporte público e proteger os utentes frágeis – peões, ciclistas, motociclistas. Veja-se o caso do terrível triplo atropelamento de Novembro de 2007, junto ao Terreiro do Paço, em Lisboa, em que uma condutora abalroou o semáforo, ceifando três pessoas que atravessavam a rua na passagem para peões. É evidente que ela é culpada por circular a 120km/h ali. Mas se falarmos de responsabilidade e não apenas de culpa, percebemos que a CML e o Metro de Lisboa têm graves responsabilidades: a CML construiu uma via rápida onde a cadência de verde nos semáforos permitia, à noite, velocidades superiores a 130km/h, e desembocava de repente numa zona de obra não sinalizada, com o pavimento totalmente degradado. E esta situação manteve-se assim durante mas de 10 anos, o que não poderia acontecer se houvesse regulamentação de auditorias de segurança rodoviária.
Na nossa perspectiva, as pessoas interagem no meio rodoviário como ele lhes diz para o fazerem. Se o condutor percepciona uma via rápida, mesmo que não seja, acelera. A CML rasgou nos últimos anos a cidade com vias rápidas, em vez de oferecer protecção aos peões. Foi uma opção política que se reflecte em falta de qualidade de vida, e em falta de segurança para quem não circula de automóvel. Em Lisboa, 60% dos agregados famliares não têm automóvel e 30% dos munícipes têm mais de 60 anos. Lisboa é uma cidade de peões e utentes de transporte público. A autarquia é governada, não a favor, mas contra os seus habitantes.”