“Estávamos em 1967. Em cada mil crianças que nasciam, 70 morriam à nascença ou no primeiro ano de vida. Em cada 100 mil mulheres, 70 morriam anualmente por causas relacionadas com a gravidez. Destas, grande número morria em consequência de um aborto clandestino.Lá fora, os organismos internacionais falavam cada vez mais de planeamento familiar. Mesmo no seio da Igreja Católica, o debate era grande sobre a posição a tomar em torno da pílula contracetiva comercializada a partir do início dessa década.
Em Portugal, mesmo num contexto de ditadura, com censura e repressão das organizações cívicas que não agradam à moral puritana do regime, um grupo de pessoas decide fundar a Associação para o Planeamento da Família. Alguns eram católicos, outros não. Uma parte eram médicos e médicas, algumas enfermeiras. Outra parte eram cidadãos e cidadãs que, ão estando ligados profissionalmente à saúde achavam que deviam intervir porque existiam problemas sociais inadiáveis. E porque sabiam que alguém tinha de agir, senão tudo ficaria na mesma.
Este grupo move-se também por valores – o direito à saúde, os direitos das mulheres, os direitos humanos, o direito à liberdade de expressão e de organização. Mas não se ficam só pelo debate, ou pelo protesto. A APF começa a formar profissionais de saúde, a disseminar conhecimentos técnicos, e começa a intervir nos bairros pobres da capital, falando às mulheres de coisas de que ninguém falava. Sobretudo falavam da contraceção, mas também da gravidez, dos cuidados a ter. Iniciam mesmo, na sua sede, uma consulta de planeamento familiar.
Depois foi o 25 de Abril, alguns membros da APF ocupam cargos de decisão política e técnica sobretudo nos serviços de saúde. Tentam passar a mensagem do direito ao planeamento familiar e da necessidade de este ser integrado nos serviços de saúde o que veio a ser alcançado em Março de 1976.
A APF tem como missão contribuir para que as pessoas possam fazer escolhas livres e responsáveis na sua vida sexual e reprodutiva incluindo a promoção da parentalidade positiva. 46 anos depois, a APF continua a debater, a intervir e a propor novas políticas, se for o caso. E foi muitas vezes o caso. Nos anos 80 e 90 foi a questão da educação sexual nas escolas, do acesso dos jovens aos serviços de saúde.
Foi depois a luta contra a SIDA e contra a discriminação das pessoas infetadas com VIH. A luta contra o aborto clandestino e pelo direito ao aborto legal e seguro foi outro tema desde os anos 80, que só se veio a resolver mais tarde, após o referendo de 2007. Mais recentemente outros temas de debate, de intervenção e de estudo tais como a mutilação genital feminina, o combate ao tráfico de seres humanos ou o cumprimento dos compromissos assinados elo Estado português, nestas matérias de direitos sexuais e reprodutivos.
Em todos estes temas, a APF promoveu o debate público, investigou e apresentou as suas propostas. Mesmo se hoje existem equipas de profissionais que, de Norte a Sul, executam os projetos e atividades, a APF continua a integrar dezenas de cidadãos e cidadãs que, voluntariamente contribuem para a sua missão. São profissionais ligados aos serviços de saúde, às escolas, a universidades e centros de investigação. Participam ativamente nas estruturas de direção, em grupos de estudo e nos debates internos.
Partilham com os profissionais os seus saberes, as suas experiências, as suas ideias, os seus desejos. Dão a cara pela organização defendendo publicamente as suas causas. 46 anos depois, Portugal tem um quadro legal aberto e progressista no que toca aos direitos sexuais, ao planeamento familiar, à educação sexual e à IVG. A saúde reprodutiva está incomparavelmente melhor. A mortalidade materna é hoje de 5,6 por 100 mil e a mortalidade infantil é de 3,4 por mil. Somos o 2º país do mundo no uso de contraceção e a nossa taxa de aborto é mais baixa que a maioria dos países europeus.
No nosso país, as pessoas vivem hoje a sua sexualidade de forma mais livre, mais informada e mais saudável. Muitas coisas mudaram mas há sempre trabalho por fazer, sobretudo junto dos grupos sociais mais vulneráveis. Há leis que ainda estão por cumprir. Há barreiras que ainda persistem e que urge ultrapassar. Há muita gente que desconhece os seus direitos. Há desigualdades com base no género, na condição social ou na orientação sexual. Por tudo isto, a cidadania ativa continua e continuará sempre a ser necessária.
Por tudo isto, a APF tem sido, desde a sua fundação em 1967, um espaço de cidadania ativa e uma componente essencial nesta história de sucesso e de mudança positiva.”