Mas teatro é o que eu vejo aqui: pessoas a tentarem enforcar-se, a discutirem, gente em aflição…” Quando a abordaram para integrar o elenco de uma peça, Sara Torres, calor da América Latina à flor da pele, hesitou… Com o tempo a passar lento, lá acabou por pegar na caneta e compor a carta que gostaria de receber no estabelecimento prisional de Santa Cruz do Bispo, em Matosinhos, onde cumpre pena por ter sido correio de droga. A partir daí, o entusiasmo foi em crescendo.
O desafio da escrita, lançado a Sara e às 14 companheiras de teatro (e de prisão), serve de mote à peça Inesquecível Emília, desenhada no limite entre a realidade e a fantasia que se desprende de cartas escritas com o poder da imaginação.
Em palco, elas, as reclusas, são simultaneamente atrizes e autoras dos textos e das canções com melodias que espelham a sua diversidade cultural (há uma guineense, duas venezuelanas, duas mulheres de etnia cigana). E contam com uma colaboração de peso: Manuela Azevedo, vocalista dos Clã, canta com elas algumas músicas. E representa: “Aceitei, pela possibilidade de poder aprender mais uma arte que admiro e com mulheres que têm a mesma experiência de teatro que eu… Tinha curiosidade de perceber que emoções iriam ser evocadas por elas.
Emocionou-me perceber que não há nenhum tipo de queixume, só vontade de serem femininas, de se afirmarem como mulheres, livres de pensamento.” Dentro de um vestido de lentejoulas cintado, Manuela é a mestre de cerimónias de um inusitado (ou talvez não tanto…) cabaré.
“Tem a ver com os espaços de liberdade, com a forma como eu, estando numa prisão, posso encontrar um lugar de liberdade interior”, sugere Hugo Cruz, que assina a conceção e direção artística do espetáculo.
Esse exercício, com asas, de tocar através de cartas fantasiadas o que parece impossível, motivou respostas várias, com remetentes da esfera familiar, institucional ou… transcendental. Houve quem imaginasse receber uma carta da mãe, que a visita mas não tem coragem de dizer o que sente, como Tânia. Quem, como Andreia, assinasse com o nome da filha, um texto em que esta lhe contava como tinham sido as férias e a peça de teatro da escola em que participou.
Nádia imitou a linguagem formal do tribunal, numa missiva que decretava a sua liberdade. Aurora idealizou a comunicação da Ordem dos Advogados, a dizer que o magistrado que a enganara havia sido punido…
Na carta que deu nome à peça, Zara Gavires passou para o papel o sonho (entretanto concretizado) de que o namorado, com quem se zangou quando juntos foram apanhados a traficar droga, lhe escrevia a jurar ter sido ela o mais importante amor da sua vida. Mas houve, também, quem levasse as fantasias mais além e se deixasse surpreender pelas palavras de confiança de um anjo da guarda…
‘A roupa fica-lhes bem’
No intervalo do ensaio, é, porém, outro o guarda que observa, junto da porta, as atrizes. Ouvira, certamente, minutos antes, a euforia das mulheres que vigia a cantarem a música do momento, “Ai se eu te pego/Ai, ai se eu te pego…”. Corpo imóvel, discurso seco, acaba por partilhar o que lhe vai no pensamento: “A bata transforma-as um bocado.
A algumas, a roupa fica-lhes bem.” Nesta altura, as mulheres que tão bem conhece parecem outras: envergam vestidos pretos, calçam sapatos altos (muitas não os calçavam há anos…), têm cabelos soltos a enquadrar rostos sorridentes…
O cenário não está completo, falta o jogo de luzes. Mesmo assim, não fosse a presença do guarda (que acabará por se sentar a assistir compenetradamente ao ensaio) e seria difícil encontrar sinais do local onde nos encontramos. O salão de festas dos guardas, onde decorrem os ensaios e onde, nos próximos dias 14, 15 e 16, se sentará o público, é um espaço amplo, com grandes janelas, mesas e cadeiras de alumínio.
Tem, agora, a um canto, a guitarra de Miguel Ramos e o piano de Eurico Amorim.
O espaço de liberdade de que Hugo Cruz falava parece passar, também, por mostrar as rotinas, os dias decalcados uns dos outros que se vivem atrás das grades.
“Historicamente, o cabaré era uma roupagem para se fazer política, dizer certas coisas”, recorda.
Quando a sirene toca, interrompendo o som festivo, a música transmite uma atmosfera repetitiva, pesada. Os cabelos apertam-se; o lado sensual e a individualidade de cada uma das mulheres fica escondido atrás do cor-de-rosa perturbador das batas. Tem, então, início um jogo de linguagem gestual e olhares vazios durante a formação de filas constantes: para lavar os dentes, ingerir a medicação matinal, tomar o pequeno almoço, trabalhar, receber chamadas do exterior….
Uma carta a sério
Durante os ensaios, Cecília Ribeiro, 48 anos, chega a acreditar que está em liberdade. Faz-se-lhe luz no rosto, ao dizer: “É como se fosse mesmo uma atriz e estivesse num teatro. Sonho muitas vezes com o espetáculo, imagino o público a chegar, os fotógrafos, os jornalistas.” Representar trouxe-lhe segurança, outra forma de lidar com as pessoas: “Confio mais em mim e no diálogo com os outros “, nota. Talvez até no contacto com a filha mais velha, de 26 anos. Imaginou que ela lhe escrevia a pedir perdão por nunca a ter ido ver à prisão. Tânia Muñoz mudou desde há três meses e meio: “Nós montámos tudo com a ajuda dos técnicos, foi importante perceber que somos capazes.” Aprendeu a autocontrolar-se, a pedir desculpa, a assumir os erros. “Sobretudo a não ser impulsiva”, frisa.
É esse o sentido da PELE, um espaço de contacto social e cultural portuense, empenhado em desenvolver competências através do teatro comunitário. Inesquecível Emília é o resultado de um trabalho de quatro meses ao abrigo de um projeto europeu (PEETA) cujo objetivo consiste na certificação de competências básicas através de iniciativas artísticas em comunidades prisionais. Uma experiência piloto a ser implementada, para já, em apenas cinco países: Áustria, Itália, Holanda, Turquia e Portugal.
No caso de Sara, com quem abrimos o texto, o importante não era tanto o remetente ou sequer a mensagem. Era o meio. O que ela queria, mesmo, era receber uma carta verdadeira, escrita à mão, com um selo do país onde nasceu há 23 anos, a Venezuela, e onde deixou a família, os filhos de 6 e 8 anos. As notícias chegam-lhe semanalmente, pela mão de uma “visitadora” que lhe leva impressos os emails enviados pelos mais próximos, mas… “Eu queria ter o papel, ver a letra, a cor da tinta. E ouvir o guarda a dizer o meu número: 116.”
Mais informações em www.apele.org