Estávamos cansadas de estudar muito e intervir pouco.” Cidália Queiroz e Marielle Gros, 64 e 62 anos, precisam de poucas palavras para explicar o que as levou a passar dos livros à ação. Sociólogas e professoras no Instituto Superior de Serviço Social do Porto (ISSSP), deixaram de se contentar com o contributo que davam através do ensino. Quiseram ir mais além “intervir na pobreza, procurando não a reproduzir”, testar a teoria na vida real.”O desafio é muito maior”, começam por avisar, sentadas à mesa do gabinete que partilham no ISSSP. Encontrámo-las às voltas com os estatutos jurídicos da empresa de limpezas e restauração que vão constituir para dar mais oportunidades de emprego aos utentes da Qualificar para Incluir (QPI) nome da associação que fundaram há uma década e hoje acompanha 480 famílias beneficiárias do Rendimento Social de Inserção (RSI) de bairros problemáticos do Porto.Mas falar da empresa ou do desejo de politizar a população com quem trabalham, incutir-lhes um papel ativo nas medidas que se lhes destinam, seria como começar um livro pelo fim… Um inquérito a 500 jovens de bairros sociais, para avaliar os seus percursos escolares, realizado pelas duas docentes, em finais dos anos 1990, fê-las lançar o que seria a semente da QPI. “Foi aterrador ver que a reprodução da pobreza era fatal pela ausência de formação profissional “, recorda Marielle. Surgiu, assim, o projeto de acompanhamento de jovens do 2.° Ciclo do então ensino recorrente, sinalizados por escolas do Porto Oriental.”Trabalhávamos durante o dia os miúdos que estudavam à noite. Havia tempo para orientar o estudo e praticar atividades extracurriculares”, explica Cidália, realçando aspetos como “gerir a pontualidade, o respeito pelos outros, incluindo os professores”.Bruno Marques tinha 15 anos. Hoje tem 25. “A minha vida começou aí”, analisa agora, sentado, à hora do lanche, no refeitório da QPI. “Se não fosse este apoio, não teria estudado. Já tinha chumbado três vezes por faltas, as minhas companhias eram muito agressivas… conheço bem os bandidos do Porto.” As extintas Oficinas de S. José, onde vivia desde os 7 anos, “eram piores do que um armazém… se fosse de mercadorias, ainda haveria organização”, comenta.Terminou o 12.º ano, tirou, depois, um curso técnico de Topografia, mas o seu sonho é ser engenheiro civil. Duas vezes por semana, frequenta, na associação, as aulas de preparação para o exame de Matemática, de acesso ao ensino superior, dadas por um professor voluntário.À tarde, é Bruno quem conduz o acompanhamento escolar de crianças do 1.° Ciclo, filhas de beneficiários do RSI, que frequentam a QPI no final das aulas.”Faço com elas o que a Sandra Coelho [assistente social] fez comigo”, diz, a rir, fitando uma das mães que encontrou na associação. “A Sandra era dura connosco.
Mas era uma dureza positiva, com objetivos muito concretos.”
Apoio à medida
Bruno Marques assistiu de perto às mudanças na QPI. Quando foi expulso das Oficinas de S. José, por pôr em causa o que lá se passava, Cidália acolheu-o em sua casa, com outros dois jovens da associação, hoje já na universidade.Em poucos anos, a QPI alargou as suas ações, graças a protocolos assinados com a Segurança Social. Chegar a todo o núcleo familiar era a finalidade. “Queríamos pegar na pobreza persistente, nas gentes a quem faltam qualificações escolares, mas também de vida, profissionais “, recordam Cidália e Marielle.Para as requalificar, sabiam que não bastava atuar no interior das pessoas.Impunha-se trabalhar a sociedade: “Criar mais oportunidades para esta população, o que implicava negociar com instituições.” Junto de diferentes entidades, batalharam por um sistema adequado à realidade daqueles cidadãos.Chegam a ir falar com presidentes de escolas, diretores de turma das crianças que frequentam o ensino regular. Nos cursos de alfabetização e nos de formação profissional, dinamizados em parceria com vários centros, a resposta passa por ter uma assistente social (e uma estagiária do ISSSP) a acompanhar cada turma, em permanência.Não veem outra solução: “Não se pode ministrar um ensino padronizado a estas pessoas”, alerta Cidália. Marielle acrescenta: “A escola só as faz sentir ainda mais incapazes.” No último andar do bonito palacete que a QPI ocupa, no centro do Porto, decorre um curso profissional de apoio à comunidade, com equivalência ao 9.° ano.Vânia Nunes, 21 anos, é uma das alunas.Já a tínhamos visto passar com um bolo de aniversário, confecionado para uma colega pela cozinheira Adelina Oliveira, que ainda é do tempo em que o ISSSP funcionava no edifício (continua a ser o instituto a pagar a renda da associação). A meio da escadaria, Vânia parou para mostrar às fundadoras a fotografia do filho de poucos meses, Martim.Conhecem-na bem. A história de Vânia é feita de avanços e recuos, tal como a de muitos que por ali passam. Chegou à QPI depois de, aos 13 anos e apenas com a 4.ª classe, ter sido expulsa da escola onde andava. “Era má pessoa, batia nas colegas, respondia aos professores…”, admite, com um sorriso maroto. “Aqui, aprendi que, assim, não iria a lado nenhum.Comecei a acreditar em mim, a pensar que está nas minhas mãos ter uma vida melhor.” Conseguiu completar o 6.° ano na associação, mas, no início do 7.°, desprezou os conselhos das técnicas que a seguiam de perto. Desistiu.
“Via as minhas amigas a trabalharem e quis o mesmo. Desejava comprar roupa, telemóvel, sapatilhas, cigarros…” O exemplo ilustra bem a convicção de Cidália, quando diz ser “incrível o esforço que pedimos a quem tem muito pouco “. Quatro anos longe da QPI haveriam de levar Vânia a arrepender-se da decisão: “Muitas pessoas que estavam aqui comigo, quando entrei, estão agora na faculdade e a trabalhar em bons hotéis…”, observa. Ela até gostaria de ir mais longe no seu percurso que o desânimo aparece sempre que alguém abandona o projeto. Mas vibra quando lhe dizem (e já o ouviu vezes): “Aprendi mais aqui num ano do que em todos os que andei na escola.” Até às aulas de Educação Física, Clara assiste. “A nossa presença é importante para garantir a assiduidade, a pontualidade, a atitude correta na sala, para nos certificarmos de que aprenderam os conteúdos.” Se for preciso, ela intervém durante a aula, para descodificar a linguagem dos professores.
A soma das partes
O que se faz na QPI é cumprir o que está escrito na lei, mas nem sempre se concretiza.Traça-se um plano de inserção adequado a cada beneficiário do RSI, abrangendo o agregado familiar, caso exista. E o não cumprimento do acordado pode levar à suspensão do subsídio.Valoriza-se a pessoa logo no primeiro contacto com a associação. Quem chega, não é tratado como um número, uma folha de papel. A entrevista com a assistente social tem hora marcada, nada de esperas. Mas o processo nem sempre é pacífico, como revela Sandra Coelho: “Chega aqui gente que já recebe o RSI há anos e nunca teve de tomar nenhum tipo de iniciativa. De repente, essas pessoas ficam revoltadas quando se lhes pede algo em troca. As instituições permitiram que se instalassem naquela medida, que a entendessem como um direito, sem contrapartidas.” No 2.° andar, na sala onde decorre a formação de adultos, que confere equivalência ao 6.° ano, não é difícil ouvir alguém dizer “Não tenho mais nada a aprender”, como Jorge Teixeira, 55 anos, um ex-motorista afastado da profissão por um acidente. Margarida Oliveira, a assistente social que acompanha os alunos, está habituada a reações como esta: “Com o tempo e o trabalho, a ideia de obrigação vai-se desmontando. Desenvolvem o gosto pelo conhecimento, o espírito crítico, criam novas relações.” Aconteceu com Aurora Cunha, 44 anos.Quando chegou, há quatro anos, nem o nome sabia escrever. Nunca trabalhou, passou a vida a olhar pelos oito filhos.Hoje, alimenta o sonho de tirar o 9.° ano e encontrar emprego como cozinheira.”Achei que não ia conseguir aprender nada”, confessa, “mas enganei-me.” Está “agradecida” à Segurança Social.Mesmo que o mercado de trabalho não lhe sorria, a QPI já mudou, em Aurora, a forma como se vê e se relaciona com os filhos: “Agora, ajudo a mais nova, de 8 anos, a fazer os trabalhos de casa e ela ajuda-me a mim.” A preocupação da QPI passa também por aí, pela formação parental. Todas as dimensões são trabalhadas: a saúde, a alimentação, a habitação. Cidália e Marielle lamentam não ter meios para mudar tudo o que gostariam. “O RSI é uma medida que tem o seu interesse. Mas as potencialidades aumentavam bastante se fosse articulada com outras medidas, sobretudo habitacionais, que tirassem as pessoas dos guetos”, alerta Marielle.Para as fundadoras da QPI, acabar com a pobreza é “uma utopia ao alcance da sociedade “. Basta, talvez, aprender o que o professor Francisco Beirão ensina às crianças, na sala de Música, onde, em círculo, criam um padrão rítmico: “É uma forma de perceberem que o todo depende da soma das partes.”